segunda-feira, 4 de julho de 2016

Sem raiz


Nasci na Vila Carrão, fomos pra Santana, papai morava junto no apartamento. Infância feliz, apesar dos beliscões. Corria de zumbis me assustando nos corredores do jardim – “amiguinhos”. Tinha helicóptero do Falcon, uma sonata laranja e disquinhos da Disney. Minha irmã andava de tamanco de pau à noite, levou surra por causa do barulho. Também levou surra porque apagou sem querer a luz do quarto – eu tinha medo de dormir no escuro.

Na casa alugada pros avôs maternos que foram morar com o tio do Butantã, fomos pra Água Fria. Casamento esfriou, papai faliu e foi embora depois de queimar retratos no canto do quarto e deixar mamãe socando o sofá da sala enquanto chorava e eu não sabia o que fazer. Papai visitava a gente de domingo, ficava até a noite, levava revistinha da Mônica, ensinou a gente a ler – minha irmã complementava a lição, do meu ladinho, lendo revistinha e corrigindo. A tevê era preto e branco, não podia desligar sem o seletor do canal estar no número 5 – “senão quebra, menino!” Numa noite de visita papai queria ouvir o filme, eu e irmã não parávamos de falar – ficou bravo, deu soco na barriga da irmãzinha.

Uma estada em Novo Horizonte, a merenda da escola era leite em pó e eu quis ajoelhar no pau de tampinha pra ver como é que era o castigo. Moramos com avós paternos, meio ano só.

Arrastados de volta à capital, ao feio Campo Limpo, casinha pequena, quarto-banheiro-cozinha e sala fora, medo de voltar depois do filme de terror: “mãe, vem buscar a gente?”. Mas um quintalzão! Festa junina com a família, cana e pé de ameixa, molecada, piscina Regan, morreu Coquinho porque não deu tempo de mamãe chegar com o remédio. Veio a Susi, que minha mãe deu pra longe, mas eu a vi atrás de um portão, o novo dono chamado um novo nome, e Susi abanando o rabo pra gente. Depois o Rex, que fugiu. Lá tinha uma fossa mal tampada com uma bancada velha, você batia em cima e as baratas pipocavam aos lados. Dormi com barata. Botei tênis com barata. Eu não tinha quase nada, nem bola, tive que chorar pra mamãe separar dinheiro contado do salariozinho. Também tinha que esperar muito pra poder ir ao barbeiro cortar meu cabelo (às vezes um tio me dava dinheiro) ou comprar na feira o Montreal que eu vi no Sílvio Santos. Brincando na rua, eu esperava mamãe voltar do trabalho, faxineira de ônibus de turismo e aos sábados do alojamento dos barrigas-verdes. Tarde da noite eu a esperava, mas brincando, no ponto de ônibus da avenida perigosa. Como é que nunca nada aconteceu?

Subimos a Serra até Taboão, perto da tia que cuidava do vô. Casa boa, pouco tempo, vovô e vovó já moravam junto. Um muro mal feito quase caiu sobre mim. Meu padrinho comprou um Dodge “hat” nacional, marrom, demos volta. Um doberman avançou no Tobi, e eu arrastei meu cachorrinho pra dentro do portão enquanto o pretão agarrava no pescoço dele. Não morreu, salvamos. Eu voltava da escola, três da tarde às sete da noite, e comia sopa de mandioca fria que minha vó fazia. Rançosa. Gostava era do macarrão com molho de pimentão igual dos barrigas-verdes!

Descemos de novo, de novo pro feio Campo Limpo. Mamãe e nós num quarto, avós e uma tia noutro. Seis numa casa velha, de assoalho e porão, cheia de baratas, assombrada, mamãe sempre gritava à noite um pesadelo. Na vizinhança, a madrasta matou a enteada e a enterrou no quintal, deu até no Gil Gomes. Eu andava muito de bicicleta nos quarteirões, voltei a estudar na escola da primeira série, conheci Roberval e o rock and roll. Adolescente. Ganhei rádio do meu pai, minha irmã uma vitrola nova três em um. Ganhamos vídeo-cassete usado de duas cabeças, e minha irmã chorou – também quando ganhou bofetada do meu pai.

Outra casa mais acima, subimos de novo a Taboão todo mundo. Vovô dormia na sala sem uma perna, e eu brincava de ônibus em sua cadeira de rodas saindo pela casa enquanto esperava mamãe voltar no ônibus de verdade. Paixão de moleque, colei bilhetinho no portão da vizinha e fui flagrado pelos olhos na veneziana. Galé, um alemãozão meio retardado, num domingo pediu socorro na porta de casa (não tinha portão o quintalzinho da frente, outro perigo!), correndo das abelhas da barroca depois de ir atrás de pipa. Botei pra dentro, passei álcool em suas costas – mas Tobi morreu duro no quintal do fundo, eu me esqueci de pô-lo pra dentro e salvá-lo das abelhas!...

No Taboão era perigo, e de volta a uma casa mais abaixo, entraram à noite no quintal, roubaram roupas e botijão. Casa feia, cheia de mofo. A casa vizinha era invadida. Mudamos cinco casas pra baixo, uma bem maior, meus padrinhos e meus primos mudaram pra Pinhalzinho e nos deixaram lá, saudades deles!... A tia que morava com a gente saiu grávida, casou pra morar pior, mas a linda filha a gente criou. Comecei a trabalhar, a namorar, a descobrir coisas acompanhado embaixo da coberta. Tinha mesa de pingue-pongue e sessões de filme aos finais de semana, com muitos amigos. No sobrado, vovô podia dormir embaixo no antigo escritório do padrinho. Eu e o vizinho na madrugada levamos vovô ao pronto-socorro, chegou já morto. Fui eu quem arrumou sua caixinha secreta onde jazia intacto o Sonho de Valsa que eu lhe dera na noite anterior.

Morava em Taboão, trabalhava longe, Barueri. Estágio em jornal, ônibus até Osasco, só trem sucata da CPTM e a visão do inferno de Carapicuíba. Depois, jornalista formado, já tinha carro e a dor do primeiro amor quebrado – eu acelerei, demorou pra melhorar... Só o tempo me deixou sereno, carro agora 1.8, mas sem tanta pressa – uma barba da paz e uma camisa azul viajaram à Ilha do Mel, e carregaram pro sul os discos e a vitrola. Teve festa de despedida no sobrado. Minha mãe ouvia Zeca Baleiro e desatava a chorar de saudades.

Curitiba, cidade bonita, gente de fato fria – “quem diz que essa cidade é sorriso deve ter visto a placa de ponta-cabeça”. Casinha pequenina de pau, aranha marrom e a vizinha rock and roll. Vendi quase todos os meus discos e meu som. Arrumei emprego em jornal seis meses depois, no segundo tempo da prorrogação da grana acabar de vez. Depois outra casinha, maiorzinha, de fundo, churrasco com grana emprestada do pai ou da irmã pra cerveja, um quintalzão de dar inveja – mamão, figo, um ratinho camundongo e um cachorrinho chamado Van Gogh. Água na bica Chico Mendes, domingo de feirinha no Largo da Ordem, ia a pé trabalhar, Vila das Mercês, árvore, árvore, árvore!

Mal tive tempo de reclamar do frio, e foi então que me chamaram de volta do sul, Barueri. Montei casa alugada, tinha rato que passeava no muro quando não era o pitbull. Outra casa alugada onde o trem passava atrás, depois um apartamentinho mofado de 44 metros quadrados, e hoje um apartamento maior ainda não nosso, bom lugar, nem parece Barueri... A partir daí, lugar nenhum que não aqui, sem vontade de escrever pra esse bulevar feio, essa fonte feia, essa falta de amigos. Talvez meus filhos façam amigos, a sorte deles pode ser melhor. Cidade mais besta.

Há plantados amigos e discos na bela Piraju do meu amor. Esperança germinar, de algo agarrar o solo e me prender por lá – raiz, raiz, raiz!...

CRiga.


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