sexta-feira, 8 de julho de 2016

O caso de Germânia e seu pequeno fuhrer


Na pequenina cidade de Germânia, dia 20 de abril de algum ano que não se sabe, o nascimento de um garoto mexeria com a triste história da humanidade. Enfermeiras e médicos reunidos na sala de parto apontavam ostensivamente o bebê ainda ensanguentado, não acreditando no que viam. A mãe chorava um misto de emoção e perplexidade, não entendia o porquê de os médicos não desembrulharem logo seu bebê, entregando o recém-nascido aos seus braços – e só não deram fim no pequeno bebê porque ela já gritava seus direitos.

Não que ela não tivesse gostado de primeira do filho. Mas de fato era estranho ele nascer de bigodinho quadradinho, um cabelo preto liso escorrido pra um canto da testa, e uma marquinha de nascença no lado direito do peito, parecendo uma suástica.

Como todos já sabiam que o bebê era fruto de estupro, e o estuprador fora o pastor de uma certa igreja muito rica com filial em Germânia, estava conjecturada a maldição: o mundo iria acabar, e as autoridades da cidade precisavam pelo menos isolar o garoto do resto do mundo.

Pronta decisão: dividiu-se então a pequenina cidade em duas. Do lado norte do muro, Germânia; do lado sul, apenas um território cheio de bosques negros, pântanos, seres do outro mundo, bandidos, monstros... Germânia Perdida. Na verdade, ninguém nunca tinha ousado se enveredar por lá, tamanho era o medo que as autoridades instauraram depois do nascimento do pequeno fuhrer – assim foi batizado. Construíram uma grande casa depois do bosque negro, só para ele e sua mãe morarem – bem longe.

O caso ganhou notoriedade quando a imprensa foi até lá. Ninguém pôde entrar em Germânia Perdida, sequer entrevistar a mãe. Mas as autoridades fizeram questão de publicar a foto que tiraram, com o pezinho do bebê carimbado e o nome: “Fuhrer de Germânia”. E toda sua história foi contada como aquela revista tradicional e aquele programa de tevê dominical à noite sabem bem fazer: entrevistas, fotos, históricos e o apelo de fim do mundo como as autoridades de Germânia acreditavam.

Depois vieram as redes internacionais. Também a emissora daquela igreja muito rica, e a reportagem (sem menção ao estupro) virou mega especiais de televisão. Pronto: instaurara-se o marco do fim do mundo, e ao mesmo tempo o que todos que gostam de Big Brother, pastores ricos, padres pedófilos, petróleo do oriente e capitalismo canibal procuravam há séculos como missão: a salvação. 

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Assim, como o mundo iria acabar mesmo, autoridades mundiais decidiram dividir riquezas. Os países da África nunca viram tanta prosperidade, tanta gente sorrindo como aqueles comerciais norte-americanos. Não havia mais fome nem seca.

Usaram os metais das bombas e das armas para construírem casas modernas para o proletariado miserável das metrópoles. Em cada hospital do mundo um leito especial de tratamento para cada doente, fosse de qualquer classe social. Faliram as máfias de planos de saúde, seguros, sindicatos, bancos e igrejas – ninguém mais tinha problemas, todos viviam muito bem sem elas.

Os maiores governantes finalmente decidiram assinar um mega acordo ecossustentável – não poderiam deixar que o mundo acabasse por causa do aquecimento global. Menos gases nocivos, mais árvores, mais reciclagem, mega investimentos na despoluição dos velhos rios - anos depois já seria possível ver crianças e adultos nadando no verão tranquilo, sem aquecimento global, também nas grandes metrópoles.

O mundo experimentava a evolução e a paz que a história da humanidade nunca registrou.


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Em Germânia Perdida, poucos foram os anos até o pequeno fuhrer crescer. Ainda com o bigodinho e o cabelo caricato, já era rapaz, sua mãe na cadeira de balanço envelhecera cedo demais por causa do abandono do mundo. Não havia tevê nem rádio nem jornais que pudessem dar notícia. E o fuhrer, rapaz de seus dezoito anos, hormônios ativos como qualquer outro de sua idade, insistiu atravessar aquele limite negro que a mãe tinha amaldiçoado também com monstros, bandidos, fantasmas... Mas qual diferença fazia? Fuhrer nunca tinha visto qualquer um, nem em gravura nem de outra forma. Sua marca de nascença mudara com o tempo – tornou-se algo parecido com um trevo de quatro folhas.

Nem fantasmas nem monstros nem bandidos nem ninguém. Fuhrer pisou em muito barro, ganhou muitos arranhões, mas chegou ao fim: um grande muro. Aproveitou os galhos de uma velha árvore, subiu e conseguiu apoiar-se no topo da construção. Viu muito longe crianças brincando no campo, casais de namorados, gente passeando e nadando num rio. Sorriu seu sorriso estranho de fuhrer andrógino. Seus hormônios o mandaram descer.

Caminhou, caminhou... passou entre as crianças, entre os casais de namorados, entre os jovens nadando no rio. Ninguém o notou. Todos eram muito felizes, cantavam, davam as mãos.

Num canto da praça a única coisa diferente daquilo tudo: um feio prédio caindo aos pedaços, sujo, falido. Dentro dele, seres humanos diferentes, cabelos desarrumados, gritavam, mãos selvagens ao alto, e um pastor lá na frente esbravejava um fim de mundo próximo, pecadores que deixaram a igreja falir, e um messias ao contrário, mensageiro do fim do mundo – “poucos são os que vão se salvar”.

Viu o jovem fuhrer adentrar sua igreja. Olhos arregalados, em vez de esbravejar conclamando um linchamento, foi perspicaz quando seus próprios olhos reluziram cifras: “eis que o mensageiro do fim do mundo vem até nós, irmãos! Ele quer ser um de nós! Ele nos procurou para entregar-se a Deus, aleluia, aleluia!”.

Fuhrer nada entendia, deixou-se levar pelos braços até o altar, deixou-se ajoelhar e, simplesmente atônito, compartilhar. E todos agora davam dinheiro. Gente de fora não queria acreditar, e muita gente voltou a enriquecer aquela igreja com a nova mensagem de conversão do maior inimigo da humanidade.




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E a notícia correu toda a cidade, até chegar aos jornais de todo mundo, caindo como uma bomba: a história de Fuher e sua mensagem de fim de mundo, agora era mais uma das históricas invenções daquela igreja safada para arrancar mais e mais dinheiro de fiéis. Todos teriam sido enganados. Não há e nunca houve fim de mundo.

Revoltados com a notícia, governantes retiraram seus esforços humanitários dos países mais pobres. Desativaram acordos, reinstituíram a fome, a miséria, a poluição, o desmatamento desmedido, o caos da saúde pública, a Igreja Católica salvadora e seus padres pedófilos todos perdoados, tomaram de assalto as reservas petrolíferas que deveriam ser de sua propriedade por força de capital. O mundo voltou a ser o mundo.
***

Alheio a tudo, fuhrer apenas conseguiu fugir daquilo que lhe fazia mal – mãos batendo as suas costas, injeções que o deixavam tonto, jejum, muita leitura, gritaria nas noites da nova igreja agora reformada e ampliada, o templo. Fugiu correndo na distração dos pastores contando os dólares do dia.

Correu entre mendigos, putas e marginais em direção de Germânia Perdida. Escalou o velho muro, ainda lá, intacto, e do outro lado pôde ver: pastores amigos nadavam numa piscina nova, sua casa fora demolida, sua mãe varria o novo jardim cimentado, mulheres nuas corriam com taças de champanhe e copos de uísque, muita fumaça de cigarro e drogas à vontade.

Desceu de volta, ainda mais atônito, e quedou-se feito mendigo ao pé do muro, sem saber o que fazer e pra onde ir, sem entender nada deste mundo que parecia bom quando saiu. Apenas uma lágrima escorreu pelo seu rosto branco, um sussurro de menino perdido e olhos agora paralisados no infinito. 

Uma prostituta que passava ali, conhecida nos novos becos como Eva Marrom, comoveu-se com a cena e com o rapaz diferente. Deu a mão direita a ele, ajudou-o a levantar-se, e mãos dadas foram à casinha dela logo ali ao lado, em outro beco imundo.

Já no meio da salinha minúscula, luzinha fraca, ambos sentados sobre o carpete esfolado e cheio de pó. Com o carinho de mãe e amante, cortou o cabelo e aparou o bigode quadrado do jovem fuhrer. Acariciou seu lindo rosto de menino, e beijou-o. Beijaram-se mais e se entregaram no chão mesmo.

Juraram-se eternos, felizes para sempre, ela ainda prostituta no sustento do agora novo lar matrimonial, ele voluntário de um orfanato que cuidava de filhos órfãos de pobres judeus, enquanto manchetes davam o início da terceira guerra mundial. E, com mais destaque, o mais novo vencedor do Big Brother. 

CRiga.




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