quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Sintomático (parte 2)


Pleno sol de primavera
E um sorriso do verão.

Preciso mesmo é de um dia de chuva grossa
O som das gotas contra a janela.
Cama. Calma. Um sono que vem e vai, silêncio.
Meia luz. Sem culpa.

O dia as pessoas nem nada vão parar
Para você passar com sua tristeza disfarçada
Sua alma pesada, sua vista cansada.
Com tanto a se fazer o precipício soletra
O nada, poeticamente
Pateticamente.

E eu não posso pular. Não quero pular.
A pele denuncia a bigorna sobre os órgãos
Fervilhando pequenos vulcões em cordilheiras.
As unhas acendem as lavas às vezes vermelhas
E o coração silencia em letárgico descompasso.

Pleno sol de alma daltônica e afônica.
E um sorriso sem graça que provoca afta.

CRiga.



quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Sintomático



Corre ácido sulfúrico
na veia violeta.
Sangue venenoso,
maldizeres, maldições.

Não leve a mal o corpo que demonstra,
ele só se veste, na pele branca,
das feridas que a alma tem.

CRiga.



terça-feira, 27 de novembro de 2018

Vontade de escrever? Minta um pouco…



Você pode escrever sobre o que quiser. Só não escreva sobre si mesmo – esta pessoa em que você nunca pode confiar…

Se insistir, mentirás. Mentirás até que convenças a ti mesmo que a verdade a gente inventa só pra ser feliz. Uma verdadezinha inventada não faz mal pra ninguém, vai…

Então escreva sobre a vida dos outros. Invente vidas batendo de frente, gente morrendo no final da história. E espíritos de almas mal-resolvidas que resolvem atormentar outras tão mal resolvidas quanto. E ponha uma saída triunfal, daquelas que levam a bengala de cedro de verdade da sala – um vivo veria apenas a bengala boiando boiando atravessando a porta aberta. Isso tudo dá prêmio de literatura na cidade onde moro.

Use muita metáfora, muito código, muita escrita que parece sem nexo – parece chique não fazer-se entender, porque às vezes até dão prêmio pra isso na ABL.

Ponha uns versos no meio, tipo poeta maldito. Palavrões também parecem adequados na modernidade.

Separações, amores imperfeitos. Não esqueça da menção a uma música antiga.

Fosse escrever sobre si, a verdade é que ninguém talvez quisesse saber. E, convenhamos, não fica bem: você ficar sozinho numa tarde chuvosa, com aquele papelzinho besta às mãos, perdido num ponto de ônibus qualquer, sola e guarda-chuvas furados, um terno velho cheio de bolinhas e um conhaque pela metade. Faça-me o favor de parar com esse melodrama, batidamente lindo, mas melodrama de escritor maldito. E caia logo à sarjeta, deitado junto à centena de cacos e uma folha de papel molhada na poça. Ninguém vai chamar o resgate. Assim você vai morrer.

E se os borrões no papel permitirem, aí estará um novo sucesso de literatura. Mas você já estará morto. Mas você não deve querer morrer. Por isso, viva a vida de outrem, que morre e revive conforme a conveniência do seu acordar. Mas mate um a cada dia, e faça (re)nascer outro pra morrer no próximo amanhecer de asfalto molhado. Assim você mata a vontade de escrever outra bobagem, e não corre o risco de ser traído por si mesmo – essa pessoa em que você nunca pode confiar.

CRiga.



segunda-feira, 26 de novembro de 2018

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Juventude morta



Enquanto aguardo teus seguintes passos nesta nossa conhecida multidão, vou me perdendo, imaginando, não tendo quem me dê a mão. De vez em quando cantando velhos temas inteligentes, vou tentando te seduzir – mas teus ouvidos se fazem pamonhas de Piracicaba, e tudo vira aquele trouxa discurso de mesa comunista que não comunga nunca com teu lindo cabelo falsamente ruivo.

Tento um texto de um livro de um clássico de um antigo, pra ver se as retinas brilham como num filme italiano cujo final não me lembro mais. E aí tão pura como a juventude esguia, você apenas desvia o olhar apreciando quem chega e quem sai, interessada nas novidades que não trago mais.

Tento resistente, no discreto desespero, a selvageria dos palavrões bem colocados num discurso, junto a um sarcástico sorriso que aprendi com falidos intelectuais. Mas teu smartphone fala mais alto vibrando, um Whatsapp de piada pronta, uma afronta à arte da conquista, uma farsa da modernidade, feito eu, feito nós.

O inalcançável é o agora, as noites de novo vão embora, e nada mais nos resta pra esperar – apenas um tchau, valeu, te envio o link da solidão dos modernos. E um certo nem me procure, véio, o céu tá lotado de estrelas, e daí?, por que a gente precisa se ver por aí?

CRiga.



quinta-feira, 22 de novembro de 2018

Scape


Pede socorro a uma boa lembrança,
chora no escuro doenças modernas.

Roubaram a paz de espírito.
Cotidiano chama pedindo emprestado
um molho de tomate pro jantar.

É que escrever significa pra ela
não ter nada pra fazer no dia que passa.

Precisa oxigenar as engrenagens.
Deixar de molho os esforços,
deixar as dívidas pra pagar depois.

Precisa acreditar nas parcas imagens –
um vidro de carro embaçado,
um casal fazendo amor.

Reivindica cenas encharcadas –
o beijo ardente do reencontro
tomando aquela chuva de verão.

CRiga.



sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Vou dar um tempo


Tempo é o deixar de remoer.
É moer de novo
meter a mão na terra
plantar e paciência.

Tempo de rever amigos
se rever
reviver
remoçar?

Às vezes a solidão é mais comprida...
Sabe, quando ela guia tua mão pro cabo do telefone?

Mas o tempo é de não ser bobo!
Apenas amor...

Tempo de se apoiar no balcão
e de não esquecer que você tem uma promessa.

Lembra aquele tempo que a gente ficava conversando?
Lembra aquela conversa de nunca se separar?

Tempo também acaba.
Acaba com a gente
se acaba.
Ele transita entre professores de literatura
e a palestra do especialista semana que vem.

Não dá mesmo nenhum tempo
de a gente se ver um pouco antes?


CRiga.

quarta-feira, 14 de novembro de 2018

Toada de um amor vagabundo


Desmazelo
vovó diria
até o dia
que eu pedisse desculpas a Glorinha.

Amor cachorro…

Depois diria: “essa menininha é ouro”.
E eu dando no couro
mas evitando bisnetos dela –
no meu tempo santa é a camisinha.

Bandido!

Depois brigaria de novo.
Glorinha que era minha deu pra outro!
E vovó não sabendo de nada
disse o que parecia tudo:

Glorinha dá pra quem quer
e você que não a trate bem
que vai virar piada também
na cama de quem a comeu.

Peguei um trem.

Então matei Glorinha
e na volta chupando sorvete
apontei a mesma arma para vovó:

Mate que sou mesmo velha...
Pelo menos no inferno onde vou
ouvirei com gosto feito mãe ausente
Glorinha falando que amava você,
que doce diabinha!

Que graça que a vida tinha?

Vovó só morreu de velhice
e nem pito me trouxe na cadeia
antes de a corda amarrada no teto
dar cabo de minha vida
naquela cela fria.

Glorinha?
Virou santa e ganhou devotos
com pôsteres de borracharia.

CRiga.


(4º lugar no Prêmio Barueri de Literatura/2018)



terça-feira, 13 de novembro de 2018

Casa na árvore


Calhou que era sexta-feira 13, e os quatro amigos se encontrariam à noite na casa de árvore. Brincadeira macabra, mas bem propícia ao encontro naquela data – ouija, à luz de uma única vela. Ou o “jogo do copo que anda”, como diziam os mais antigos. Pela falta de um tabuleiro original, foram mesmo na onda dos mais velhos – papeizinhos recortados com as letras rabiscadas a Bic, um “Sim” e um “Não” e um copo americano sujo de guaraná.

Pelos dedos de um dos garotos o copo andou. Depois de anotadas as mensagens do tal espírito, ficou marcado que a brincadeira continuaria às seis da manhã do sábado 14, mas cada um à beira de um edifício no centro da cidade. Um passo à frente ao precipício e eles virariam a notícia que explodiria em espanto e morbidez – “Suicídio coletivo de adolescentes choca o País”. Algo bem mais vistoso que aquele caso de outro garoto que se matara um ano antes também dando um passo ao nada, do topo de um edifício, num sábado de sol. E ninguém nunca soube por que.

Depois do “jogo”, cada um fez seu juramento ante o toco da vela, a juíza que selou aquele pacto estranho. Reviram locais e horários, e cada um foi para sua casa matutando pensamentos. Entre os 13 e 14 anos de idade, quase todos pensam de forma semelhante. Mas o sábado já estava próximo demais – o que rolava na cabeça de cada um daqueles garotos?

O primeiro, o que comandou o copo no joguinho macabro de sexta, estava em seu posto no dia e hora marcados. Olhou para o topo dos outros edifícios procurando os amigos, não via ninguém – e pela distância nem daria mesmo para ver. Trêmulo, deixou escapar lágrimas de um medo juvenil, de uma cabeça confusa com brincadeiras, pactos e notícias de jornal. À beira do precipício só tinha que dar mais um passo. Hesitou. Explodiu num choro convulsivo. Virou as costas e correu de volta, menino assustado, talvez para cama dos pais ainda dormindo, talvez para o cemitério visitar um certo amigo seu.

O segundo chegou com o velho skate a tira colo. Olhou o brilho do sol daquele sábado, lembrou da brincadeira de sexta e tinha certeza que encontraria os amigos na pista do parque municipal. Deu um sorrisinho de cumplicidade, meia volta e foi embora curtir o half pipe com um hip hop no fone de ouvido. Ali em cima, de vontade, apenas a de nunca mais fazer promessas impossíveis de se cumprir. Não esquentou e para sempre foi feliz.

O terceiro nunca ia bem com horários, e como todo o adolescente a preguiça de levantar da cama falou mais alto. Acordou depois das 8 da manhã, olhou o relógio e nem se preocupou: virou o corpo para revezar o sono de outro lado na cama. Acordaria com o grito ao portão de casa e a mãe batendo na porta – “tem um amigo seu te chamando pro parque!” Levantou com cara enrugada e perguntou ao amigo sobre o pacto de sexta. “Da brincadeira? Sei lá! O copo andou empurrado pelo dedo, acreditou que foi espírito? Ora!” Ele confiou e também foi ser feliz.

O quarto garoto... Bem, a história deste era mais triste. Preso ao copo americano na casa de árvore, nunca convenceria seus amigos a brincar com ele num sábado de sol.

CRiga.


segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A chuva como um soco na cara



Queria agora que chovesse a chuva confortante
dos fortes que também choram.
Água pesada que faz barulho no asfalto ladrilho,
aquele cheiro fresco que se perdeu na juventude.

Água benta rebatizando o espírito cansado.
Chuva que encharca a camiseta e o casaco
eu e você
em diferentes estações.

Água que dilui lágrimas etílicas,
lágrimas que ardem no machucado.
Meu rosto tem coragem de encarar a tempestade,
a idade tem medo de se afogar num copo vazio.

Queria agora que chovesse a primeira chuva,
aquela água que purifica, perdoa e lava o sangue.

Essa tempestade de primavera 
só condena a gente à louca espera
de se alcançar em algum verão.   

CRiga.

(Primaveras se atracam
e a chuva vira lágrima:
pai e filho se machucam
e dispersam os verões)




O inimigo vem para o jantar (a canção de um sonho bem real)



Durante a ceia escassa de nossa aldeia
Você trouxe o vinho da bebedeira
Brindou como um velho amigo que voltou.

Na noite do nosso sono confiante
Você portou-se como um amante
Roubou o ouro e apenas acusou.

De manhã jogou o velhinho de lado
Cercou o jardim com arame farpado
Botou soldado raso vigiando as flores.

Meio-dia tomou a casa de assalto
Gritou “todos de mãos pro alto”
E fez seu escritório em nosso quarto.

Daí
No novo almoço fez ode à tirania
Enfiou goela abaixo uma soberania
Prendeu padre, parente e vizinho.

Daí
Rasgou a Bíblia e a Constituição
Sorriu arrogante na televisão
E deu de ombros ao que estava escrito.

E aí?
Como aceitar o novo inimigo?
E deixar solto o velho bandido?
Ignorar a verdadeira paz?

E aí?
Como acreditar no falso profeta?
E encarar a face do poeta?
Os nossos dias já não voltam mais.

CRiga.

(Sonhei com invasão de marcianos
e acordei com um Brasil
depois das eleições...)



quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Pra quem quer olhar


Os olhos não mentem. Isso é fato.
Sentem muito quando sofrem
e quando querem riem alto.

Eles olham no fundo da alma,
acalmam, eles também abraçam,
beijam e até te comem...

Os olhos se vestem de lápis e rímel,
óculos escuros e lentes mentirosas –
são perigosas as suas meninas.

Farol no caminho dos cegos,
tortos quando o amor os cega.

São pretos castanhos azuis verdes
amarelos e até vermelhos.
A morte na verdade tem olhos brancos.

São francos quando a alma os aperta.
Os olhos enxergam até a bebida
escondida debaixo do casaco.

Os olhos não negam a facilidade
e nem a doce boba felicidade
quando olham com o coração.

Flecham. Fecham a avenida.
Moem. Destroem a rival.
Sambam no feriado de carnaval.
Rezam fechados pedindo colírio
e perdão.

O padre tem olhos severos
destes que inventam o olhar de Deus.

O diabo tem olhares sinceros
destes que convertem até os ateus.

CRiga.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Poesia sem adjetivos


Olha nos meus olhos, me descubra
me desnuda
mas não bata o martelo –
meu advogado se chama tempo.

Sem metáforas ou adjetivos –
apenas a verdade que sou.

CRiga.



segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Basta chacoalhar


Tem aquele solzinho que resiste,
A necessidade de falar contigo
E dizer que há outras estações.

As fotos me avisaram, o amor é nosso
Mas a vida inteira também é.
Às vezes a gente se atrapalha no passo
Chuta pedra, ignora a flor na calçada.

Mas também tem parque e visita de domingo
Um bom papo, boas lembranças
Nossas ainda eternas crianças!

Todos nós temos medo, é o enredo.
Tem medo que às vezes aterroriza
Pesadelo daqueles de chamar a mãe.

Pode me chamar. Pode me contar.
Nosso coração é do universo,
Basta azeitar as engrenagens –

Ele vai conspirar tão novo
Feito o relógio do vô Inocêncio
Que ainda insiste funcionar.

CRiga.