quinta-feira, 24 de março de 2022

Desejo

 


A entrega acaba
na morte dos sentidos.

A carne que ferve queima miolos.

Um sorriso de canto, “com licença”.
O perfume tão vivo que te encrusta,
te cimenta no banco duro da solidão.

Calafrios nas ligações elétricas.
Na pele tapete de veludo
brotam doces carocinhos,
braile de explorar
o trigal esvoaçante.

Fogo na terra, raiz que não sossega!
Brota oceano salivando a fruta
que brilha vermelha, úmida,
distraída exposta na fruteira.

Não, mantenha oca a santidade...
Melhor viver assim pela metade
afogado em si em tanto sal de mar.

CRiga.


sexta-feira, 18 de março de 2022

Namoro

 


(foto de Cauê Rigamonti, 18.03.2018,
Parque Municipal Dom José, Barueri)

Procura-se alguém que diga:
“se você morrer, quero morrer também!”

Procuram-se mãos dadas
e sílabas caladas
num olhar de praça de domingo
sem ter o que fazer.

Procuram-se primeiras vezes
e desvios na rota do trabalho.
Entregar as rosas vermelhas
roubadas daquela vizinho
que fura a bola dos meninos.

Procura-se sabor morango
sorvete derretido
de tanto só olhar,
de tanto só falar de amor.

CRiga.



quarta-feira, 16 de março de 2022

Bairro

 


Havia muitos quarteirões,
mas o trajeto automático da bicicleta
era sempre aquele quadrante exato
a rua exata, aquela casa.

Uma vez descemos a rua
mãos dadas, eu olhava pro asfalto.
Outro dia a consolei lá embaixo
dedinho machucado pelo rolimã.

Mas eu tive de mudar, tristeza,
atravessava bairros pra ver a menina.
E ela não sabia (ou fingia não saber)
por que tanto eu caminhava.

Um dia chamei a menina de “beleza”,
coisa de criança, correu atrás de mim.
Fui embora, vergonha, demorei pra voltar,
sofri as dores de moleque com saudades.

Paixão de infância falou mais alto
e voltei,
mas a casa vazia me esvaziou...
“Foi embora... pro Rio, parece...”,
disse uma amiguinha, olhos sem atenção.

Desde então cresci, vários amores.
Cresceram também as casas,
sobrados e edifícios.
Semáforos, contramão, buracos e desvios.
Tudo ficou difícil.
Tudo ficou proibido.

Estes dias passei por lá de carro,
e meu filho mal deu bola
à minha história de primeiro amor.

CRiga.


terça-feira, 15 de março de 2022

A pressa, a angústia

 


A pressa te deixa presa fácil.
O velhinho anda na calçada,

a criança brinca no parque.
Teu ritmo é teu, o mundo não gira
pra parar na tua urgência.

Certo dessa forma apenas
é o envelhecer mais cedo,
é a birra procurando bronca.
Tua pressa só vai te jogar mais rápido
na boca do pombo da praça,
no inferno da doce amarelinha.

CRiga.


sexta-feira, 11 de março de 2022

Pelas esquinas

 


Andar a pé sem esperar a hora.
Falar de flores, o jardim secou
em plena primavera.

Não há muitas coisas belas pra se falar...

As flores de plástico estão caras,
O Sol nas bancas foi vendido
e agora grita mazelas
no cancelado horário de verão.

Há sempre um brasil desses aí
que nos persegue, inconveniente!
Vire logo a esquina, fuja,
brasil mendigo te dando o pão
que o presidente só sabe pisar.

O diabo amassa o trigo
pra fornada patriótica,
e Deus amansa a massa
pros discursos da patrulha.

Dá de comer ao Brasil
arroz com feijão sem pimenta
um grão de conhecimento
um sorriso de criança
uma rosa perfumada
qualquer que seja a cor –

apenas flor, nada mais,
não vigie nem invada
meu daltônico jardim.

CRiga.



quinta-feira, 10 de março de 2022

Imemoriais

 


Desde tempos que busco na memória
nossa história não é das melhores:

algozes nos matando nas trincheiras
freiras nos amaldiçoando nos caminhos
ninhos de cobras nossa cama
lama nos campos nosso lar
mar de baleias e peixes mortos
tortos anjos bebendo cachaça
praça de guerra nossa derrota
nota fria e falsa identidade
cidade que nunca é nossa
fossa no balcão dos bares
ares de inverno polonês
inglês defeituoso na fronteira
cadeira elétrica e masmorra
que porra de mil vidas nós levamos!

Mesmo assim insistes me acompanhar
porque me amas desse jeito
feito filme
desde tempos imemoriais.

CRiga.


quarta-feira, 9 de março de 2022

Fotografando espíritos

 


A espera parece mais longa quando a chuva cai. Meus amores, minhas dores – no asfalto molhado todos perambulam com seus guarda-chuvas, cada um com sua cor em uma via sem volta.

A espera é fera que hiberna nas trevas da alma. Ruge uma dor que ecoa do fundo da caverna úmida e que cheira a mato molhado.

Quem espera sempre dança uma valsa de solidão no silêncio da casa fria. Casa com o padre, reza com o bêbado caído na esquina.

Me espera, não vai agora. Eu tenho cartões postais em branco pra gente sonhar. Um vestido de festa e outro de casamento. Um baú vazio mofando no quarto, uma garrafa intocada de licor. Uma cama de solteiro, a gente joga o colchão no chão.

A chuva da espera molhou toda a minha casa, distraída deixei janela aberta pra alguém me invadir. Eu queria ter asas pra voar até alguém. A espera parece mais alta quando o céu se abre e o sol não traz mais novidades.

A espera se transforma, com as nuvens sombrias em torno da lua, na noite que cai da minha estante e se quebra mil caquinhos, um porta-retratos ainda com foto de revista. Um anjo azul de bibelô empoeirado, lembrança de um sobrinho que nasceu, cresceu e viajou ao estrangeiro.

A espera é acreditar em filho de virgem. Uma prece, me esquece, me marca num muro, prefiro ser Madalena. Me atira na vida mas não me espere chorar. No compasso do ponteiro do relógio parado vou te atraindo pra armadilha: serei a bruxa que vai te transformar no sapo, você será meu anfíbio de estimação e terá que esperar um beijo meu te libertar de novo. Só que meus lábios secarão com o ar cortante de outono. Estaremos presos um ao outro.

A espera é o brejo feio e fedido da floresta negra das fábulas que assustam as crianças. É a impossibilidade de contar belas histórias aos casacos pendurados na cadeira da sala de jantar. É a solidão dos deuses loucos. É o dedo em todas as feridas da trouxa autocompaixão. Rasgar a carne, sangrar líquidos sem cor, chorar lágrimas imaginárias e etílicas de guaraná. E dormir soluçando baixinho esperando o despertador tocar pra espera recomeçar com o dia sem as flores à porta.

Café amargo, janela aberta, estou pronta – que venham as cartas em branco que ontem enviei pra mim.

CRiga.


quinta-feira, 3 de março de 2022

Eu sou um velho palhaço

 


Muitas já foram as histórias de palhaços apaixonados. Aqueles que já sem a maquiagem vão à porta do circo esperar a amada, que passa lotada dizendo “que palhaço idiota”. E assim nasceu a lágrima desenhada junto à tinta colorida de um rosto que preferirá sempre esconder a dor.

Eu não espero que você me ame. Pra ser sincero, nem que você ria. Tentei ser mágico só pra poder usar smoking preto, mas o coelho da cartola mordeu meu dedo e riram de mim do mesmo jeito. Tentei acrobacias no ar, caí na rede e depois, de ricochete, no chão de pó de serra. Até o leão nem se moveu quando fui eu o domador.

A dor do palhaço ninguém vê – afinal, a ideia é ver só alegria mesmo. Pobre palhaço, não pode nem se apaixonar! Fora do circo anda de bar em bar, ainda colorido, descolando um trago aqui outro ali, até cair embriagado na sarjeta e crianças chutarem seu traseiro de manhã. Hora de ser sombra.

Minhas rugas não somem mais com a maquiagem. Agora nem minha dor. Meu número no picadeiro mudou – uma tragicomédia que ninguém entende. Ninguém mais ri. Enfadonho espetáculo, eu me equilibro nos minutos e meu olhar vago denuncia a falta de saco de fazer criança rir.

É quando vê o milésimo amor da sua vida lhe sorrindo. Pula, sacoleja, cambalhota, grita. As risadas reaparecem. Ele é o palhaço do cartaz novamente! Vem a sirene, o balde de água na cara, deveria acordar do devaneio incontrolável, mas algo de arte ainda o move. Ou seria amor?

Eu te amo, você não vê nestes olhos? Não, volte pra trás, ainda tenho truques pra te conquistar. Quem é esse rapaz loirinho do seu lado? Porque você tá de mãozinha agarrada com ele? E esse beijo, não era pra ser meu? Volte, mata essa bicha louca do caralho e vem que a gente foge com o alazão do circo!... Sua puta!...

Muitas já foram as histórias de palhaços apaixonados. Poucas aquelas que deram certo. De volta ao camarim de terceira grandeza, dois por dois, um balde d’água e um espelho trincado, já nem mais chora as desilusões de cada noite. O dono do circo lhe dá a mixaria da quinzena e mais uma bronca: “um espetáculo mais esquisito que o outro. Se endireita, seu palhaço velho!”

Eu sou um velho palhaço.

CRiga.