quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Noite de primavera

 


Final de campeonato lá no brejo,
vagalumes inventam constelações.

Gato acha brinquedo com insetos voadores,
cigarra quando foge erra o caminho.

Sapos aproveitam e formam gangue,
besouros não têm o charme de Lennon & McCartney.

Suzana, a lagartixa,
é quem limpa meu quarto ultimamente.

CRiga.


  


quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Letras raras

 


Tenho vergonha de expor tristezas,
recônditos incompreensíveis.

Ninguém compra a flor que começa a murchar
deixando um perfume de morte no ar.

A maçã com aparência da pele idosa
mas ainda saborosa
dependendo do desejo dos dentes
e da língua.

Há na garrafa empoeirada do boteco do Centro
impregnada a história de um dia
em que o alcoólatra era um cara legal.

Há na foto desbotada colada no relicário
aquele mais doce segredo
que o viúvo já esqueceu.

O casaco que arranha a pele no brechó
já aqueceu um poeta em seu auge.

O vinagre já foi vinho
e a cruz a redenção –
mas o padre desistiu.

Hoje não tem missa
porque o coral do corpo de Cristo
se vendeu ao rock inglês.

E a multidão no estádio grita
a feliz unanimidade
de um ingresso muito caro.

Raro
é o pulso magoado
escrever um dia melhor.

CRiga.



quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Saudosismo na ponta da língua

 


Há na gente essa língua lambendo,
dente mordendo lábios. Vontade.
Jazz do bom.

Há um olhar no imaginário horizonte,
a busca pela juventude com respostas.
Tuas costas sobre meu peito,
a transa no verão.

As mãos dadas são sinceras,
não tenho mais olhos pr’outras belas,
é verdade, meu amor, são só para você!

Enquanto a gente aprende o encaixe,
os garotos quase na adolescência
voltam a curtir o Lego guardado
no guarda-roupa sempre mofado.

O entalhe do punhal sobre o cedro
é o mesmo da faquinha fajuta do 1,99.

Corta pra gente o pão de hoje,
alimento do sempre
o mesmo bom antigamente.

CRiga.


terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Morrer de amor num filme de ficção

 


Vou quebrar os teus cristais.
Rasgar o teu retrato.

Amaldiçoar o teu nome.
Dizer mentiras sobre ti.

Roubar as chaves da tua casa.
Queimar a tua casa!

Vou passar pelo beco escuro
negar a esmola, olhar com pena.

E finalmente
não irei ao teu enterro...

Ao lado do teu eterno leito
enterrado há muito muito tempo
eu já estarei te esperando.

Com flores e um novo roteiro
pra juntos a gente encenar.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)


quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Provisória arte

 


Enquanto seus sonhos vão dormindo
Eu os esquento com meus panos de chita.

CRiga.


consciência

 


o meu Senhor
é a minha Senhora.

CRiga.


Anticéptico

 


Amor
É anticético.

CRiga.


Rapadura

 


Para o sonho acontecer
você tem mesmo que encarar o sol.
Receita de bolo, escuta rapaz:
se desandar, a culpa é da mão.

Tem bolo pra entregar às 4 da manhã.
Não tem pão hoje, estou atrasado.
Ônibus lotado, tem gente que conversa
sobre algumas doces felicidades.

O atalho machuca o joelho.
Ouse na letra, que você convence!
É andando que a dor às vezes
sente vontade de sorrir.

Diga o bom dia da madrugada
com aquele sorriso de sol de meio-dia.
Dê um pó guaraná que seja
pra que ele atenda todos os seus fregueses.

É que depois daquele morro de florestas incertas,
há o vale aberto do teu sonho te sorrindo
e te dizendo

“vem que eu só venho se você for junto”.

CRiga.



1º de dezembro

 


Aquela velha e morna sensação
De que o primeiro dia
Do último mês
Renova qualquer esperança
Nem que seja a suaves prestações
Ou num pedido de perdão.

Quem tem dívida negocia
Pra daqui a um mês
Pagar um novo carnê.

Quem espera abre a janela
Há de quebrar aquela esquina
Quem te roubou beijo na juventude.

Pra quem gosta de contar
Agora são vinte e quatro
Até de novo rezar a reza mais alto.

Pra quem gosta de comemorar gritando
Seja o que for, são trinta festas de reis
Até a noite virar o dia de recomeçar,

Aquela nova e quente sensação
Do primeiro dia
Do primeiro mês.

CRiga.




quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

terça-feira, 30 de novembro de 2021

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Fronteira

 


O trem na periferia rosna implacável,
é um monstro de aço.

Estremece feito terremoto
as casinhas de papel.

Sacode os frágeis tapumes
em forma de abrigos
da favela fantasma.

Mas a arquitetura improvisada,
arte eternamente sem dinheiro,
não cai.

Imponente (do seu jeito) joga nas caras
a sofrida sobrevivência.

Porque a pobreza é assim:
enquanto não descarrila o trem
pra dentro da favela fantasma,

tudo é
cotidianamente
apenas transparente.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Bienal

 


Palavras me roem o calcanhar,
eu caminho sílabas acertando o passo.

Comem pela beirada,
correm licor pelo canto da boca.
Corroem, ácido sulfúrico,
o recheio do bombom.

Palavras se movem se inovando
a cada segundo, eu respiro frases
filtrando a poluição.

Palavras morrem no fim do dia
no fio do cabelo
silabando
sibilando baixinho
obrigado
uma poesia.

CRiga.


quinta-feira, 18 de novembro de 2021

Quando eu quero dizer adeus

 


Levo margaridas colhidas da calçada
e uma foto da juventude.

Lembro das capas dos discos de rock
amaldiçoadas pela doce inexperiência.

Eu cito um Vinícius
e te deixo aquele velho volume rabiscado
do meu primeiro Carlos Drummond.

Trago a aliança tortinha
guardada na caixinha
de acalmar as emoções.

Boto um disco na vitrola,
tem Chico e tem Caetano.

Não há tempo nem coragem
de virar pro lado B.

O quadrinho na parede canta.
Longe de casa
há bem mais de uma semana.

CRiga.




Ladrões

 


Desde tempos que busco na memória
nossa história não é das melhores.

algozes nos matando nas trincheiras
freiras nos amaldiçoando pelos caminhos
ninhos de cobras nossa cama
lama nos campos nosso lar
mar de baleias e peixes mortos
tortos anjos bebendo cachaça
praça de guerra nossa derrota
nota fria e falsa identidade
cidade que nunca é nossa
fossa no balcão dos bares
ares de inverno polonês
inglês defeituoso na fronteira
cadeira elétrica e masmorra
que porra de mil vidas nós levamos!

Mesmo assim
insistes me acompanhar.

Porque me amas desse jeito
feito filme
desde tempos imemoriais.

CRiga.



quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Vibe

 


Vida te empurra.
Então me atropela.

Vide na bula.
Então me cura.

Então me culpa.
Me liberta.

São vedados os olhos da lágrima.

A verdade só abre a porta
pra paz poder se instalar
na decoração do novo lar.

CRiga.



quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Pacto

 


Não sou santo
pastor
nem bom cristão
.

O marketing ganha dinheiro
inventando cartilha de político
e reza de religião.

CRiga.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Ele não era um cara legal

 


Ele não é o cara
dos grandes feitos.

Nem o cara
que tudo arranja.

Ele não é o cara
que conta piadas.

Nem o cara
que vai salvar a festa.

Ele não é o cara
do tapa na cara.

Nem o cara
pacifista da manifestação.

Ele não é o cara
que toca guitarra.

Nem o cara
que gosta da sua música.

Não é o cara
da esquerda.

Muito menos o cara
da direita.

Não é o cara
da moda.

Nem o cara
popular da roda.

Ele é o vidro que corta
em vez do falso brilhante.

CRiga.



segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Cigana

 


Não poderás mais escrever poemas,
pois tuas mãos ficaram entre as minhas pernas,
e dentro de mim compunha
o que poeta nenhum ainda conseguira
descrever em simples palavras.

Não poderás mais cantar tuas canções,
pois tua língua ficou nos bicos dos meus seios,
na minha língua, nos meus lábios,
boca, pescoço, peitos, ventre, púbis,
até a eternidade!...

Não poderás mais ver o pôr-do-sol,
pois teus olhos viram meu espírito
viver no teu corpo e sentir a tua carne,
chorar de prazer quando me tocavas
e de tristeza quando partias.

Tenho certeza, não poderás mais nada!
Por isso sei que voltarás para buscares
tudo o que te pertence.
Inclusive eu.

CRiga.


terça-feira, 26 de outubro de 2021

O idioma do desejo

 


Não adianta chorar
sobre a bebida derramada
na noite dos cantores.

Bebida doce,
e a menina enrolava a língua
num púbere castelhano
e num inglês de pop sueco
moreno latino americano.

Nem teve a chance
de enrolar a língua
também por doce embriaguez!

Não adianta se desculpar
pela espanhola derramada
entre os beijos, línguas
que não queriam tradução.

Queriam apenas a luta ardente,
entre as bocas, o desejo –
único idioma então corrente.

CRiga.



quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A egotrip da vingança

 


Vou viver no limite íngreme
da minha alma que já não é tão pura.

E se você não vier de branco
feito anjo me salvar do devaneio,
vou ser mármore tão negra.

E se você não sorrir
e se você não me ouvir
e se você não me abraçar
e se você não existir...

E se você não vier?

Se você não vier
vou renascer das cinzas do que já sou.

Eu sou as cinzas que boiam no teu ar,
que aterrorizam teus olhos sem cor
numa trágica noite de inverno,
depois do vento insano sem direção
invadir a tua casa decorada
morango de prateleira.

Só que você, metódica,
limpa a tua casa com talento,
lava o rosto petrificado
com sabonete neutro, água morna
e vai dormir,
como se não existisse o dia
que você me deu um beijo.

Como se eu não existisse,
como se eu fosse pedra vulgar
ou mármore tão negra.

Como se eu fosse ressuscitar
sem limites
no teu seguro lar tão puro.

Como se eu fosse o retrato velho
sobre a triste escrivaninha de cedro
esquecida no sótão escuro.

Como se eu fosse vírus
esperando tua hemorragia
me libertar do desespero.

Como se eu fosse o fóssil
daquele tiranossauro rex
que um dia quis ser bonzinho.

Como se eu fosse fácil,
como se eu fosse frágil,
como se eu tossisse sangue
feito poeta do Romantismo.

Vou viver no fútil limite
desta alma que só queria
ter você de fato um dia.

E se você vier assistir a meu desespero,
vou sorrir sarcástico,
dar adeus com a cabeça,
virar as costas
e voar sobre o penhasco.

E só sobrará teu eco dissonante
entre as montanhas seculares
naquela trágica noite de inverno:

“eu amo você...cê...cê...”

E ficará esperando resposta
no limite íngreme do penhasco,
e ficará esperando eu voltar de branco
feito anjo,
pra te salvar da tentação
de vir comigo devanear.

E ouvirá só o som da lágrima
contra a rocha seca,
que não ressoa eco
nem alivia a dor.

E rezará por mim
e pedirá minha proteção,

e lembrará os dias
em que nunca fui anjo
e quando roubei um beijo teu.

E desejará com a alma
eu não estar te vigiando
e continuar não sendo anjo
só pra roubar outro beijo teu.

E você viverá no limite íngreme
da tua alma então tão negra,

perdida no vale das pedras
mármores tão puras,

perdida nas noites escuras
que eu fundei
enquanto amei você.

CRiga.