quarta-feira, 31 de março de 2021

Santo feijão, rogai por nós

 


Do alto de minha pequeneza
digo verdades intrínsecas
(como se eu soubesse o que é intrínseco)
que algoritmos não conseguem mentirizar.

O que eu sei é que o corpo vai se acabando
com o tempo que mói a gente.
Há o feijão que não deixa esmorecer,
mas não o futuro macio pra descansar
com a comida que hoje só luta sobre a mesa.

O que sei é que tem jovem e gente de roupa melhor,
que já têm e sempre terão –
comida, futuro pra descansar
do trabalho que deve dar
sorrir e falar tanto na tevê.

É que depois vem a novela
e a gente esquece do lutar.

Eu nem sei o que é algoritmo...
sei que a gente lê na tela do celular
que o mundo vai acabar
e que a gente tem é que trabalhar.

CRiga.



segunda-feira, 29 de março de 2021

Apenas tristeza

 


Fisgadas nas já pesadas asas molhadas,
o oceano negro louco tenta te engolir
no voo contra o vento-tempestade.

Pangaré casmurro, o coração
cavalga um pulso manco
sobre as geleiras de um apocalipse.

Araponga louca que chora alto
no corredor vazio da cabeça bigorna,
a testa suada se arrasta no asfalto.

Falta a chuva de afagar a alma,
o abrigo implodiu, o sapato furou.

Aí vem o outono
seu bafo seco gelado
faca cortando rostos na noite
e um nada de bom pra sentir no dia.

CRiga.


sexta-feira, 26 de março de 2021

Sweet dream

 


Passei então a ver-te todos os dias
em todos os olhares, lugares
e pensamentos indecentes,
depois que acendeste em mim a juventude quase morta
num beijo adolescente.

Vi você nova colega de trabalho
uma amiga de uma amiga
uma atendente de papelaria
estudante de psicologia
ninfa sorrindo do canto da festa
mas este ano não pulei o mesmo carnaval.

Vi minha juventude dar lugar aos dias de semana
os dias que você ama matar, sedenta,
andando muito lenta pela praça sem graça
fingindo procurar alguém firme pra ficar.

E eu morri de velhice precoce,
de tosse e de frio
em pleno verão ardente.
Morri de tudo o que você possa imaginar.

Só não morri na hora de acordar de novo
ligar o carro quebrado de pneu furado
acelerando, insistindo não te matar
um pouquinho que fosse,
até o apito da fábrica de velhos
começar a me chamar.

CRiga.



quinta-feira, 25 de março de 2021

Desejo

 


A entrega acaba
na morte dos sentidos.

A carne que ferve queima miolos.

Um sorriso de canto, “com licença”.
O perfume tão vivo que te encrusta,
te cimenta no banco duro da solidão.

Calafrios nas ligações elétricas.
Na pele tapete de veludo
brotam doces carocinhos,
braile de explorar
o trigal esvoaçante.

Fogo na terra, raiz que não sossega!
Brota oceano salivando a fruta
que brilha vermelha, úmida,
distraída exposta na fruteira.

Não, mantenha oca a santidade...
Melhor viver assim pela metade
afogado em si em tanto sal de mar.

CRiga.


terça-feira, 23 de março de 2021

Mirasssol 0x1 Corinthians

 


Em Volta Redonda, no Rio de Janeiro,
a gente arredonda primeiro
e emplaca um jogo de graça
terça-feira na tevê.

E faz um povo feliz
sem mais dente pra sorrir.

E o futebol, sorrindo sem graça,
se descobrirá mendigo no amendoim abandonado
não recolhido
na cadeira do torcedor de carteirinha.

Nesse negócio de vírus paralisando o mundo,
a gente não divide a bola, só a bolada
daquela grana da emissora.

CRiga.



Quarentena

 


Eu estava sozinho
e com todas as nossas pessoas.
E você na consciência dizendo:
temos que nos manter cidadãos.

Mas aí eu fiz questão
de ver o sol nascer,
porque nada era mais importante
que sentir-se vivo
e único.

Unicamente dos versos
diversos
reversos
nos dias vermelhos
azuis
e todas as cores
dos amores
das pessoas
que todo dia estão comigo
distantes
amantes da vida que segue.

CRiga.


segunda-feira, 22 de março de 2021

Uma vírgula no tempo

 

A cabeça ferve letras, letrinhas.
A louça grita na pia, intrigas.
E eu insisto, aumento a fervura
da panela de pressão das ideias
enquanto corro o teclado
à procura de trincheiras.

𝐂𝐑𝐢𝐠𝐚.

sexta-feira, 19 de março de 2021

Namoro

 

(foto de Cauê Rigamonti, 18.03.2018,
Parque Municipal Dom José, Barueri)

Procura-se alguém que diga:
“se você morrer, quero morrer também!”

Procuram-se mãos dadas
e sílabas caladas
num olhar de praça de domingo
sem ter o que fazer.

Procuram-se primeiras vezes
e desvios na rota do trabalho.
Entregar as rosas vermelhas
roubadas daquela vizinho
que fura a bola dos meninos.

Procura-se sabor morango
sorvete derretido
de tanto só olhar,
de tanto só falar de amor.

CRiga.



quinta-feira, 18 de março de 2021

Bairro

 


Havia muitos quarteirões,
mas o trajeto automático da bicicleta
era sempre aquele quadrante exato
a rua exata, aquela casa.

Uma vez descemos a rua
mãos dadas, eu olhava pro asfalto.
Outro dia a consolei lá embaixo
dedinho machucado pelo rolimã.

Mas eu tive de mudar, tristeza,
atravessava bairros pra ver a menina.
E ela não sabia (ou fingia não saber)
por que tanto eu caminhava.

Um dia chamei a menina de “beleza”,
coisa de criança, correu atrás de mim.
Fui embora, vergonha, demorei pra voltar,
sofri as dores de moleque com saudades.

Paixão de infância falou mais alto
e voltei,
mas a casa vazia me esvaziou...
“Foi embora... pro Rio, parece...”,
disse uma amiguinha, olhos sem atenção.

Desde então cresci, vários amores.
Cresceram também as casas,
sobrados e edifícios.
Semáforos, contramão, buracos e desvios.
Tudo ficou difícil.
Tudo ficou proibido.

Estes dias passei por lá de carro,
e meu filho mal deu bola
à minha história de primeiro amor.

CRiga.


quarta-feira, 17 de março de 2021

Ampulheta

 


Observo e desejo ondas

apenas ondas que vão e vêm.
E não percebo que a areia
praia da juventude
um dia acaba cedo demais.

CRiga.

terça-feira, 16 de março de 2021

A pressa, a angústia

 


A pressa te deixa presa fácil.
O velhinho anda na calçada,

a criança brinca no parque.
Teu ritmo é teu, o mundo não gira
pra parar na tua urgência.

Certo dessa forma apenas
é o envelhecer mais cedo,
é a birra procurando bronca.
Tua pressa só vai te jogar mais rápido
na boca do pombo da praça,
no inferno da doce amarelinha.

CRiga.


sexta-feira, 12 de março de 2021

Pelas esquinas

 


Andar a pé sem esperar a hora.
Falar de flores, o jardim secou
em plena primavera.

Não há muitas coisas belas pra se falar...

As flores de plástico estão caras,
O Sol nas bancas foi vendido
e agora grita mazelas
no cancelado horário de verão.

Há sempre um brasil desses aí
que nos persegue, inconveniente!
Vire logo a esquina, fuja,
brasil mendigo te dando o pão
que o presidente só sabe pisar.

O diabo amassa o trigo
pra fornada patriótica,
e Deus amansa a massa
pros discursos da patrulha.

Dá de comer ao Brasil
arroz com feijão sem pimenta
um grão de conhecimento
um sorriso de criança
uma rosa perfumada
qualquer que seja a cor –

apenas flor, nada mais,
não vigie nem invada
meu daltônico jardim.

CRiga.



quinta-feira, 11 de março de 2021

O Armário do Cuco (tempero)

 


Eu abro a porta do cuco
procurando um pouco de você
pra temperar a minha noite.

Todos os cheiros. Os mais diversos!
Alguns ardem quando encaro
me arrancando lágrimas de saudade.

O armário espera por tuas mãos
organizando todos os temperos
e todos os destinos.

CRiga.
(para minha namorada)




Imemoriais

 


Desde tempos que busco na memória
nossa história não é das melhores:

algozes nos matando nas trincheiras
freiras nos amaldiçoando nos caminhos
ninhos de cobras nossa cama
lama nos campos nosso lar
mar de baleias e peixes mortos
tortos anjos bebendo cachaça
praça de guerra nossa derrota
nota fria e falsa identidade
cidade que nunca é nossa
fossa no balcão dos bares
ares de inverno polonês
inglês defeituoso na fronteira
cadeira elétrica e masmorra
que porra de mil vidas nós levamos!

Mesmo assim insistes me acompanhar
porque me amas desse jeito
feito filme
desde tempos imemoriais.

CRiga.


quarta-feira, 10 de março de 2021

“Não tenham medo de mim”

 


O vermelho sempre fala mais forte,
ainda mais quando a esperança
tem cor de morte.

Porque apesar de colorir tão belo
a áurea de tua barba ainda preta,

a cor agora é desespero,
é apenas sangue do Covid.

CRiga.


terça-feira, 9 de março de 2021

Amor ou Rivotril

 


Por que meus olhos são a procura
por tua luz anestesiando as coisas
neste escuro lindo escuro
de te esperar pra me salvar?

CRiga.


segunda-feira, 8 de março de 2021

Quando estou em alfa


 

Beto gama no delta das estrelas,
enquanto matemática é contar as horas.

Toca tua vida no piano.
A gente combina mas às vezes erra.

Planta na terra a minha pitanga.
Desculpe, eu costumo só escrever poesia.

CRiga.




Habeas Corpus

 


Estamos agora refazendo os projetos
para aquela nossa nação
e para aquele nosso Poder.

Estamos com os pés no chão,
fomos o diabo que amassou o pão.

Mas nós temos um Jesus
para cada ocasião.

CRiga.



Segunda-feira

 


Solidão é que mata!

A brisa que assovia melancólica
na fresta da porta da varanda.

O sol que ri de sua cara
numa semana que seguirá sem grandes feitos.

O barulho distante do escapamento da moto,
a raiva desses ridículos ainda é a mesma!

Daqui de cima a estrada congestionada
me dá a sensação do cárcere eterno.

Um trabalhador solitário roça o terreno
onde um dia subirão mais alguns edifícios.

Alguém irritante todo dia arrasta os móveis
na sala do apartamento de cima.

A vista que alcança o horizonte
precisa vencer prédios e casinhas mal acabadas.

O silêncio no apartamento é que mata!
Vontade de fazer tudo por você agora
e sempre um pouco mais...

CRiga.



sexta-feira, 5 de março de 2021

Fotografando espíritos

 


A espera parece mais longa quando a chuva cai. Meus amores, minhas dores – no asfalto molhado todos perambulam com seus guarda-chuvas, cada um com sua cor em uma via sem volta.

A espera é fera que hiberna nas trevas da alma. Ruge uma dor que ecoa do fundo da caverna úmida e que cheira a mato molhado.

Quem espera sempre dança uma valsa de solidão no silêncio da casa fria. Casa com o padre, reza com o bêbado caído na esquina.

Me espera, não vai agora. Eu tenho cartões postais em branco pra gente sonhar. Um vestido de festa e outro de casamento. Um baú vazio mofando no quarto, uma garrafa intocada de licor. Uma cama de solteiro, a gente joga o colchão no chão.

A chuva da espera molhou toda a minha casa, distraída deixei janela aberta pra alguém me invadir. Eu queria ter asas pra voar até alguém. A espera parece mais alta quando o céu se abre e o sol não traz mais novidades.

A espera se transforma, com as nuvens sombrias em torno da lua, na noite que cai da minha estante e se quebra mil caquinhos, um porta-retratos ainda com foto de revista. Um anjo azul de bibelô empoeirado, lembrança de um sobrinho que nasceu, cresceu e viajou ao estrangeiro.

A espera é acreditar em filho de virgem. Uma prece, me esquece, me marca num muro, prefiro ser Madalena. Me atira na vida mas não me espere chorar. No compasso do ponteiro do relógio parado vou te atraindo pra armadilha: serei a bruxa que vai te transformar no sapo, você será meu anfíbio de estimação e terá que esperar um beijo meu te libertar de novo. Só que meus lábios secarão com o ar cortante de outono. Estaremos presos um ao outro.

A espera é o brejo feio e fedido da floresta negra das fábulas que assustam as crianças. É a impossibilidade de contar belas histórias aos casacos pendurados na cadeira da sala de jantar. É a solidão dos deuses loucos. É o dedo em todas as feridas da trouxa autocompaixão. Rasgar a carne, sangrar líquidos sem cor, chorar lágrimas imaginárias e etílicas de guaraná. E dormir soluçando baixinho esperando o despertador tocar pra espera recomeçar com o dia sem as flores à porta.

Café amargo, janela aberta, estou pronta – que venham as cartas em branco que ontem enviei pra mim.

CRiga.