quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Uma vaga ideia


O som do pneu contra o asfalto molhado
é o mais caro som da solidão.

É o som que resgata o garoto que corria
que morria todo dia
renascia de vez em quando.

Aquele garoto sorria
não sabia bem pra quem.

O som do pneu contra o asfalto molhado
é a sinfonia da mais doce melancolia.
É de quando não havia dia
que o garoto não queria
ser apenas um garoto.

Mas ele era.

E era uma vez um garoto.
Não havia chuva que não fosse amiga.
Não havia amiga.
Não havia.

Ele havia de ser alguém,
uma ideia (vaga) de poesia...

CRiga.



quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Falta-me


Correr de volta o teu caminho
margaridas na calçada.

Recuperar a lucidez do amor
comprar uma passagem
pra você me acompanhar.

Não deixar teu cabelo novo
passar despercebido pela sala.

Não desviar o olhar
negar um sorriso à facilidade.

Trilhar esta cidade
em busca de um encanto, que difícil!
não o ar fedido que sufoca meu filho.

Correr de volta o meu caminho
um pedido de namoro, rosas e romance - 
a poesia em meu alcance
esquecida nos cadernos.

CRiga.



terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Eu sou um velho palhaço


Muitas já foram as histórias de palhaços apaixonados. Aqueles que já sem a maquiagem vão à porta do circo esperar a amada, que passa lotada dizendo “que palhaço idiota”. E assim nasceu a lágrima desenhada junto à tinta colorida de um rosto que preferirá sempre esconder a dor.

Eu não espero que você me ame. Pra ser sincero, nem que você ria. Tentei ser mágico só pra poder usar smoking preto, mas o coelho da cartola mordeu meu dedo e riram de mim do mesmo jeito. Tentei acrobacias no ar, caí na rede e depois, de ricochete, no chão de pó de serra. Até o leão nem se moveu quando fui eu o domador.

A dor do palhaço ninguém vê – afinal, a ideia é ver só alegria mesmo. Pobre palhaço, não pode nem se apaixonar! Fora do circo anda de bar em bar, ainda colorido, descolando um trago aqui outro ali, até cair embriagado na sarjeta e crianças chutarem seu traseiro de manhã. Hora de ser sombra.

Minhas rugas não somem mais com a maquiagem. Agora nem minha dor. Meu número no picadeiro mudou – uma tragicomédia que ninguém entende. Ninguém mais ri. Enfadonho espetáculo, eu me equilibro nos minutos e meu olhar vago denuncia a falta de saco de fazer criança rir.

É quando vê o milésimo amor da sua vida lhe sorrindo. Pula, sacoleja, cambalhota, grita. As risadas reaparecem. Ele é o palhaço do cartaz novamente! Vem a sirene, o balde de água na cara, deveria acordar do devaneio incontrolável, mas algo de arte ainda o move. Ou seria amor?

Eu te amo, você não vê nestes olhos? Não, volte pra trás, ainda tenho truques pra te conquistar. Quem é esse rapaz loirinho do seu lado? Porque você tá de mãozinha agarrada com ele? E esse beijo, não era pra ser meu? Volte, mata essa bicha louca do caralho e vem que a gente foge com o alazão do circo!... Sua puta!...

Muitas já foram as histórias de palhaços apaixonados. Poucas aquelas que deram certo. De volta ao camarim de terceira grandeza, dois por dois, um balde d’água e um espelho trincado, já nem mais chora as desilusões de cada noite. O dono do circo lhe dá a mixaria da quinzena e mais uma bronca: “um espetáculo mais esquisito que o outro. Se endireita, seu palhaço velho!”

Eu sou um velho palhaço.

CRiga.


sábado, 23 de fevereiro de 2019

Sangue venoso



Há um espaço imenso entre o coração
e o tempo.

E quando o músculo inventa
de bater pra trás,
por que será que apenas o pó
violenta a veia explodindo solidão?

CRiga.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Nuances de um dia no meio da semana


Uma lua cheia no céu, romance.
Uma música da juventude, nostalgia.
Dia após dia
o teu olhar que se desvia.

Uma irmã clama braços divinos
e a mãe que liga pedindo socorro
continua com medo dos castigos de Deus.

No quarto conversa com tanta gente
que não conhece, o trabalho é conversar.
Amargura discursar medindo palavras.

No quarto trancado a trabalho
precisa de móveis antigos pra fazer companhia.

Foi um amigo que lembrou do romance,
como é boa a letra apaixonada!
Um norueguês com voz pop dos 80
cantando a adolescência tão confusa.
Ela que vai embora não vê a hora
de não ter mais que desviar o olhar.

Há milagres que estão dentro de si, irmãzinha.
Mãezinha, ele tem só o medo de se arrepender
não ter chamado pra macarronada de domingo.

A solidão do artista das palavras artificiais
ordenha moedinhas difusas no pão de cada dia.

E no quarto trancado a trabalho
a cama cala um quase nunca mais.

CRiga.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Linotipo viciado


À tarde, quando tudo parecia
fim-de-mundo programado,
falhou a memória do computador
e falou o dono da bola murcha
que tanto fazia rico ou pobre
velho ou novo – a moda da moda
agora era o desespero.

Preferi correr, recorrer
à memória do coração,
à história sem agá.

A estória que inventamos
quando é nossa a história,
vale memória ou impressão
desde que o coração fale mais alto.

Tudo falha, meu amor.
De infalível bastam a moda
e o barulho das máquinas
quebradas ou não.

CRiga.


terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Metendo a colher


Não tenho muita certeza quanto ao pranto, se lava, se amarrota a alma com a calma de um câncer. Também não sei se é fácil seguir em frente como que faltando o dente e comendo a pedra.

Siga os cartazes: há uma lágrima pra cada coração partido! Pelo menos uma, ou pior, a lágrima etílica. Então jogue na pia os litros de uísque escocês e deixe um CD de músicas clássicas à mesa, de manhã, pra um filho lembrar da serenidade que é você.

E mesmo que os ares de uma juventude distante te sufoquem tanto agora, te machuquem os dedos loucos fincados num teclado de computador, assim aos poucos, deixe de lado reinventar a história, não existe amor errado, apenas resiste essa falta:

Da arte, cadeiras juntinhas num cinema, num teatro.

Dos bares, dois chopes e olhares eternos cruzados sobre a mesa.

Da música dos lares, talvez uma dança como antigamente sobre o piso novo da sala mais espaçosa, com saudades dos pés descalços roçando a madeira.

Da cama desarrumada, a preguiça às manhãs de domingo.

Do caminhar num dia lindo, mãos dadas nas ruas com árvores verdes dando bom dia.

De um passeio logo ali, no Pari ou em Paris.

De uma nova poesia, uma nova “nossa música”.

Ou só falta a morte – fatalmente, finalmente, fielmente – nunca mais separar vocês.

CRiga.


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

Congelaram um coração


Alguém no céu
raspa uma estrela
colhe o cristal.

Na jornada o brilho nas mãos,
na terra firme o fogo morto
da paixão que congelaram.

Assoprou, então, o pó que restou:

desperdício, desperdício...

CRiga.



quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Um Brasil sem voz


A Voz do Brasil
no rádio aqui de casa
era sempre de manhã.

Ficamos roucos.
Mudos.
Um parente que se foi.

Ninguém mais vai falar pela gente
nos ouvidos dos tiranos.

O verdadeiro Brasil perdeu sua voz.

O que será de nós
passará hoje à noite
naquela chata Voz do Brasil...

Para Ricardo Boechat

CRiga.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Separação


São as pétalas que descolam
caem antes do tapete ao altar.
Ervas daninhas são o jardim,
antes cúmplice da cumplicidade.

O peixinho morreu, boia no aquário,
e até o gato chora a falta de fome.
O vizinho quer encher o saco,
quer botar o copo na parede...

Não há louça empilhada na pia,
par ou ímpar, não há mais refeições.
Não levaram as crianças pra escola
triste folga, vamos brincar lá fora.

O quarto escuro cheira a suor envelhecido
e o espelho do banheiro foi quebrado –
azar maior é visita sem aviso,
compromisso de diretoria.

Retratos que sorriem pares da memória
estão virados sobre o pó da estante.
Há um instante em que morrer é bom,
mas há também um som diferente
pra cada lágrima que cai.

Eu hoje esqueci você um pouco mais
que o quase nada de um ontem qualquer.

CRiga.


quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

A tristeza é senhora


Vezes bate na gente
aquele saudosismo de moço bobo
perdido do outro lado da rua.

É só atravessar, meu velho,
desafiando motoristas loucos.
É a sua vez, a gente já foi moço demais
pra correr dos carros poucos.

Solidão é que apavora!

Medo de atravessar a rua
é mais o de não encontrar ninguém
do outro lado
do que morrer atropelado.

CRiga.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Fantasmas numa manhã de chuva


À cama como se fôssemos ainda amantes
ouvindo aquela linda balada do rock noventa.
E percebo, você não pode mais ficar
vamos embora, a noite precisa acabar.

Mudara a foto do porta-retratos
e eu te amei como da primeira vez.
E eu me vi mais uma vez o garoto bobo
num corredor de escola dizendo não.

Tudo invade feito onda reversa
depressa, coloca o disco da Marina!

Preciso sentir o cheiro da chuva lá fora
ouvir os pneus contra o asfalto molhado.

Recuperar-me o bom moço a correr nas ruas
com o tempo todo pela frente
para também acertar nos passos.

CRiga.



terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Tristeza


Desfila sorrateira
às vezes montada no cavalo
do duro monumento no Ibirapuera.
Ou estampada nos olhos do anjinho
da cafona fontezinha do bulevar.

É uma respiração profunda
tentando dar ritmo ao dia
e ao coração cansado.

Câmera lenta, você tenta engolir,
é café amargo amanhecido.
Um drama de atores sem fama,
uma cama que não quer te largar.

Pousa nos teus ombros as mãos pesadas
enquanto em frente a um computador
você se pergunta como se deletar dali.

Marca com as unhas pretas por dentro do peito
feito prostituta velha, bruxa fedida.
Gata preta no cio te gritando
lá no fundo da cabeça que pesa bigornas.

Beija sabor sangue, congela o estômago,
amarga a garganta, chuta os testículos.

Sopra um vento polar na nuca,
parece que nunca existiu verão.

CRiga.