sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Limo no fim do dia


Faca cega não corta palavras.
Há agora apenas um papel amassado
afixado na porta da geladeira
com um imã daquele bem brega.
Alma que escorrega...

Hoje desperdicei o fio falando
sobre o que não vai mudar a vida de ninguém.
Fim de dia e nem precisava nada assim
tão profundo –
bastava um mundo onde por um segundo
se pudesse sonhar ou rimar ricamente.
Há um perdido antigamente...

Não estou mais afiado. Pedra gasta.
Cerveja quente. Coca-Cola sem gás.
Vinil riscado fritando ovo insistindo gritar
na vitrola mono de uma caixa só.

Um nó na garganta...
o pôr do sol não traz o sorriso de missão cumprida
porque a louça grita silenciosa na pia –
apenas o fim do dia.

CRiga.


quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Cometa erros


Qual a primeira coisa que você escreve na contracapa do novo caderno de anotações?

Seu nome, uma frase feita, um número de telefone, me devolva caso eu me perca por aí.

Rabisca uma personagem de mangá, aquela paisagem infantil, casinha, árvore, cerquinha, lago, flor, gaivotas no sol que sorri.

As senhas pra não esquecer que você já as decorou, um agradecimento a qualquer onipresente, uma lembrança boa do dia.

A estilosa assinatura, um poema de ponta-cabeça – afinal nada precisa ser assim tão politicamente correto, o mundo anda mesmo tão chato...

Cola o adesivo que você ganhou no farol e não sabia o que fazer, é bonito e te dá aquele ar de militante das boas causas urbanas.

Ou apenas deixa em branco.

Anotar é perigoso.

Melhor postar no Facebook...

CRiga.


quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Pijama


Hoje está nublado
e resolvi ficar triste.

Eu queria era cravar a minha estaca tinteiro
no coração do tirano
o outono inteiro.
Emprestar o tempo que acumulei
a quem precisa tirar moedas do nariz,
comprar uma vida apenas honesta
e mais feliz.

Nada além da impossibilidade de tudo
é que me faz assim
tristonho.
Não ser o alquimista que sopra o ouro
fazendo um sol qualquer aparecer.

Não ter pra onde correr, homem feito
se escondendo pelos cantos, trincheiras,
soldado raso num pijama.

CRiga.


terça-feira, 27 de agosto de 2019

Tumulto


Meus olhos procuram você
e você me acusa
de não pagar o teu passado
com a moeda do assassinato
dos meus sonhos,

e meus olhos continuam
no tumulto
ainda procurando aquela você.

CRiga.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

A ditadura da desconstrução


A mesma velha receita do destruir –

discursos combinados
ataques arranjados
um vale-tudo que engole
o caolho que tem fome.

CRiga.

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Tossindo sangue


Colecionava selos
de cartas não respondidas.

Na caixa do correio um ninho,
alimentava pássaros e ilusões.

Da janela,
as estrelas cadentes que contava
eram desejos que não valiam a pena.

Na calçada,
pra cada sorriso não devolvido
mais uma moeda na cartola do artista.

Em casa, em qualquer lado,
uma parede vazia.
Um Renoir havia debaixo da cama.

Doíam amores de ficção –
o que era verdade
virava invenção.

Viveu encostando as costas
no mofo do porão.

Morreu tossindo sangue
romancista de plantão.

CRiga.



quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Você precisa decorar aquela velha canção


Há um céu azul de nuvens desintegradas, morrendinho, o sol tá indo pro Japão. É quando a gente torce pro sol ficar mais um pouquinho e dar mais uns acordes no imaginário violão.

Mas vai ficando escuro, aos poucos, e a noite faceira dá aquele sorrisinho de tou chegando… É quando pinta a dúvida se você nasceu pro dia ou pra noite…

Mas logo vem o veneno: aquele ar difuso, aroma cortante na brisa fresca, musical, que nunca vai te agredir, nunca vai deixar de sorrir feito figura de mãe te sorrindo na lua. É quando a rua começa a te chamar, colega, amiga, amante! E você vai, sem pressa, sem compromisso, criança tateando aprendendo a andar, cair, levantar de novo, sorrir, cantar, amar por um segundo, chorar, tomar o sorvete e a água da madrugada - e finalmente se acalmar.

Algo parecido com sono vem te perturbar. E você reluta, nunca a tarde dessa noite vai te derrubar! E você levanta, dança feito louco na avenida vazia, até queria ouvir alguém buzinar. Amigos cantam uma velha canção, você não sabe a letra inteira, mas acompanha no refrão.

É quando você vê aos poucos a cor do asfalto mudar. Mais claro, algumas poças denunciam uma luz que não a dos postes amigos de apoio. E como fazia tempo  você não olhava mais ao céu, resolve conferir se a ampulheta ainda corre na lua e nas estrelas - mas um azulzinho marinho insiste em desbotar a noite.

O sol começa a gargalhar na sua cara, soberano, vencedor. Pra você acabou, meu chapa, o português já tá assando a primeira fornada de pão.

É quando você vira de lado, vê a motinha pipocando na esquina entregando os jornais com as notícias de ontem. Mas, como sempre nunca derrotado, você toma de volta do universo louco a ampulheta parada, sequestrada. E num gesto a la mais doce revolución, fincado último soldado da trincheira, vira de novo a areia correndo a vida tudo de volta:

Cadê o violão do novo luau? Cadê a letra daquela velha canção que você ainda precisa decorar?


CRiga.


terça-feira, 20 de agosto de 2019

Ele não era um cara legal


Eu não vi as flores nascendo do asfalto
que é só onde sei procurar.

Na mesma galeria ninguém me disse nada
algo que eu pudesse guardar.

Eu não ouvi a música da moda
nem sou o idiota popular da roda.

Eu sou é o vidro que corta
em vez do falso brilhante.

CRiga.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

O missivista


Meu antigo amor,
minha amiga, meu sonho que passou.
Recheado e enfeitado
com tudo o que aprendi.

Nada aprendi!

Minha doce impressão
de amor abandonado na esquina.
Por que só quando a gente envelhece
sonhos resolvem nos corroer
e os olhos aceitam o perdão?

Não me reencontrei.

Eu perdi a ideia de quem és.
Perdi rumos, ouvi rumores.
Um cabelo feito pra reconquistar
e uma juventude toda pela frente,
recomeçar.

Minha cara, meu segundo rosto.
Te escrevo o sangue inútil
deste cansado coração descompassado
sem mais letras.
Aguardo novas notícias tuas
num selo antigo carimbado de ilusão.

Triste coleção.

CRiga.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Arrasta-se a vida


Eu vi as mãos desatarem.
Corações descompassarem.
Rimas desrimarem.

Malas intactas vazias no armário –
não vão levar as roupas embora
mas também não farão mais as viagens.

Eu vi amigos caminhando pelos cômodos
do grande apartamento,
como se nunca os quartos tivessem sido um dia
por eternas noites
um só.

É certo que uma hora até aquele amor cansa.
A dança nos terraços vira patética lembrança.
A vida vira o dia a dia do “bom dia” de um estranho
e nada mais.

CRiga.



quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Sessenta e sete leões


Eu vi o leão.
Feroz, forte, indestrutível.
Leão de mil patas e dentes
vencendo guerras, vencendo gente.

Leão de mil vidas, imortal.
Um leão tão lindo e tranquilo
passeando pelo meu quintal.

Da janela agora eu vejo o leão.
A juba mais curta pode não ter
aquele mesmo charme da juventude
carregando filhotes em fotos coloridas.

A força pode não ser
aquela mesma que venceu no dente
a selva de pedra indiferente.

E o rugido...
Mais para os monossílabos
que aquele eco eloquente
mudando o curso dos rios.

Aquele brilho do olhar de felino caçador
talvez esteja mais para o mar,
marejado,
que para o horizonte,
novo horizonte.

Lá no monte acima da grande praia
ensaia uma caverna
um hibernáculo.
Ensaia um leão cansado.

Mas é leão!

Leões têm este hábito tranquilo
de caminhar sobre a relva, seu reino,
como quem fosse fácil presa.
Sem pressa, um belo poeta loiro e altivo,
como se qualquer um pudesse o fotografar.

Leões têm esse jeito de se cansar às vezes.
Descansar. Até de se deitar na relva
quase querendo desistir de continuar.

Juba, força, rugido, olhar.
O leão chega até a pensar
que um bom leão pode sim recuar.

Mas é leão!

Sua intensa natureza não lhe permite.
O que seria do charme sob a juba experiente?
O que seria do rugir sem eloquência?   
O que seria do olhar
que determina o caminho do sol?

O que seria do sol sem poder brincar
de derrubar reinados,
sem brilhar sobre a velha juba
de um leão guerreiro rei?

CRiga.




quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Casulo


Há uma sensação que persigo
abrigo, dever cumprido.

Há uma sensação que devo muito.
Perigo, eterno medo de desiludir.

Ninguém nunca me viu por dentro.
Daqui saem etílicas borboletas,
secos dragões sem fogo cujos sorrisos
são sinceros e preocupados.

Haverá memórias de fogueira.
Distantes, não farão revoluções.
Dúvida é se existirá um jardim amnésico
cujas rosas não peçam documento
pros beija-flores da madrugada.

Eu tenho idade, só não tenho tempo.
Quero beijar sem culpa, de barba,
voar sem horários de museu.

Não quero crianças fingindo interesse,
nem a cor forçada na exótica fotografia
calando as verdades das minhas rugas –
elas poderão com falsa propriedade
recitar poemas e apenas te enganar.

Nunca pisei o chão da maioria dos pés.
Nunca vivi o tempo das verdades eternizadas
enlatadas numa festa de jubileu.

Eu durmo num casulo eterno.
Inferno pra mim
é me tornar.

CRiga.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Duas camas (poesia sem mais poesia)


Eu não vejo onde
recuperar-me
recriar-me.

Portanto não precisa mesmo
me dar mais a tua mão
enquanto “juntos” caminhamos.
De perdido basta o homem
que nunca mesmo se encontrou.

Não precisa mesmo mais do fogo,
eu compreendo.
E é difícil romper os laços
há os nós e mais percalços.

Quero mesmo é chegar cansado
mais tarde, um trabalho que paga pouco –
assim está o Brasil
assim estamos nós, faz tempo.

Teu sono é muito leve, eu sei,
é preciso reservar a cama
que hoje sobra em outro quarto.

Os erros e um Brasil
mais questões psicológicas
psiquiátricas
gastam aquele papel do cartório
e também o mesmo chão que a gente pisa
num apartamento caro e alugado.

Eu compreendo.
Apenas amizade não aquece.
Só não esquece que um dia
a gente quis apenas acertar.

Antes eu fazia poesia pelas esquinas
ilhas e avenidas.
Hoje caminho reto sem sorte
apenas pra enganar a morte
nesta meia-vida de duas camas.

CRiga.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Não mais a gente no sofá


Polir os discos que ficarão pra você.
É bom lavar de vez quando.
O tempo junta pó nos sulcos
risca solos de guitarra 
apaga sorrisos de fotografia.

Ensinar a ligar a vitrola.
Não é legal colocar no automático.
A alma vive do preciso exercício 
até a faixa certa
até o ponto G.

CRiga.


sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Garotos conectados


A modernidade sempre chega –
e sempre chega faltando com as mesmas coisas.

Porque apesar dos discursos
e conceitos modernos cheios de palavras em inglês,

Tudo gira em torno de uma inteligência
que os algoritmos nunca conseguirão depurar –

Emoção que desencanta e trava máquinas
e de fato resolve conflitos.

Quem quer crescer de verdade precisa segurar
o ritmo do encantamento com si mesmo,

Observar um pouco mais –
há um mundo inteiro de humanos de verdade
ficando para trás.

Eu não tenho in box
nem out box,

Eu tenho é uma linda caixa de problemas
que o teu chato inglês enlatado
nunca ousaria resolver.

CRiga.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Aulas de violão


Está nas pontas dos meus dedos
o ritmo da música que resgatará
o fogo entre as tuas pernas.

Tocarei a nova que hoje eu aprendi.
Se errar de novo eu continuo, é a dica.
Vida é valsa que continua valsando
mesmo no pé trocado do salão.

E no grad finale,
as pontas dos meus dedos aprendizes
tocarão explosivas mais uma vez
as cordas no ponto quente certeiro –
a linda flor em sol maior!  

CRiga.


quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Fogo, quase morto


O fogo é bom,
mantém quente a cama da gente.

Cabe a nós atiçar a brasa junto à lenha
que a gente ainda precisa caçar.
Cabe sim a gente ver também
que tem gente que nem fogo tem.

Ou tem fogo congelado pela fome.
Comida gelada na lata do lixo não machuca –
fere mais quem esbraveja tendo teto
e alimento sobre a mesa.

Ou tem fogo contido por percalços genéticos.
Um filho que não conversa, não caminha
apenas assiste – é só amor,
mas difícil é acender fogueira qualquer
até pra comemorar um São João.

Ou nem sabe que o fogo queima –
quem não tem ninguém,
que não ama nem a si.

O fogo é bom,
mantém quente a cama da gente.
Acendamos a lenha, cuidemos de nós,
pra podermos cuidar de alguém também.

CRiga.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Precisamos de novo nos apaixonar


Prefiro apaixonar-me novamente
pelo mesmo amado ser.
Preguiça enfrentar novos defeitos
ao relevar os que já conheço bem.

CRiga.

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Futuro sarau


Há um radar no teu olhar
que rima com a poesia que circula
no ar de uma futura canção.

Eu te direi aqueles versos ritmados.
O relógio já parado da academia
irá querer congelar atmosferas.

Na nota cravada play atention!
vou segurar o ar na hora do grave
e apenas levantar a sobrancelha direita.

Daí que o verbo atropela!
É flor vermelha no casaco
e um pedido de perdão.

Daí que a súplica singela
é dor que caminha em cada tecla
e morre no último si.

Me dá aí de novo tua atenção!
Aquele radar que o olhar esconde:
me procura onde a alma capturada
longe, só voando consegue fugir!

CRiga.


sábado, 3 de agosto de 2019

Cumplicidade, simplicidade


Porque quando eu fico o louco,
o pouco que quero não é guerra,
é só fazer uma poesia.

Só a paz dos discos
voadores vinis de uma briga
que já não ouço mais.

Uma viagem de volta sempre é necessária.
Te devolve as coisas e as sensações
que valem a pena carregar.

Você sabe que a paz também é singular.
E que as pazes são plural.

A gente não erra!
Rima bota a roupa no varal
com põe esta poesia pra concorrer.

CRiga.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Um flashback


O que não te acontece mais aos ouvidos,
muitas vezes a alma escuta, lá no fundo
pedindo um segundo da tua atenção.

Há um tapete de ácaros dores encrustadas.
Debaixo não há o pó do arrependimento,
apenas o piso frio de uma inocente solidão.

O que não te acontece mais nas pontas dos dedos
talvez seja o restinho do doce brigadeiro
que a língua adolescente não aproveitou.

Há um poema que precisa te pegar no rosto,
dizer o quanto sinto muito o desperdício.

Reviro discos e canções,
e a agulha agora falha.
A ilustre amiga traiçoeira
que não deixa me sentir
mais sentimental.

Me dá uma lua risquinho no céu, um sorriso.
Me devolve aquele restinho de eternidade
um dia guardada confiante
na velha gaveta de nossa juventude.

CRiga.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

“Brilha que te quero luz, andaluz”


Nesta vida já começo ao bom calejar.
E você
começa a cutucar-me a casquinha
fazendo-me sangrar.

Você vai ganhando (acredito)
compreensão sobre este mundão.
E eu vou perdendo o jeito de te compreender
num mundinho perigoso que tem cadafalsos
regados à falta de likes no Instagram.

Tenho medo destas “doenças” da tua idade.
Quero apenas você gente do bem, como já és –
mas insistes conjugar verbos dessa melancólica
e fake modernidade.

São pessoas fracas que só se “fortalecem”
à custa de cuidar dos próprios umbigos
e das crias que crescem sem rumo nem por quê –

distraídos que resultam em tristes zumbis egoístas
que deixam-se comandar por um “ista” da vez.

Nem quero que você seja a fonte maior da força
nem da necessária cidadania:
apenas homem e ser humano de um mundo de verdade.

Você está nos chicotando a alma, tenha calma,
o futuro sempre será seu.

Cabe a mim ajudar-te a crescer.
Cabe a você ajudar-me a não encolher...

CRiga.