sexta-feira, 31 de março de 2017

Solidão dos dedos


Ácido,
o passado às vezes corrói a pele,
e eu sinto, sinto muito – 
as mãos calejadas perderam o fogo
escondido entre as tuas pernas.

De um outro lado você passeia os dedos loucos,
à meia-luz, sozinha,
à frente da tela de um computador.

E eu sei, há a dor,
ácida navalha sangrando lágrimas
num gozo frio de solidão.

CRiga.


quinta-feira, 30 de março de 2017

Filosofia do jeito que dá


Tento do jeito que dá, e dá certo. Nem há tanto tempo pra errar, mas o que há não será medíocre areia de ampulheta. Os discursos já sei de cor. Não interessa se você me acha louco – pouco sei que não sou. Posso não estar entre os que batem perna e pastas modernas nas avenidas centrais. Só trago a necessária pena pra corrigir excessos sem espírito. Fico entre os que têm o olho clínico sagitário, não entre as pupilas que tremem loucas à luz artificial. Vendem conhecimentos mecânicos. Só ofereço apenas a alma das coisas, e um pouco de corda pra você me puxar. Manter-me longe do precipício. É até possível que lá no fundo eu recrie a taverna. Que eu viva no inferno. O céu mecânico apenas engole a carne, a Carne Fraca da PF. Produto embutido no supermercado decadente da felicidade aparente. Não sou profeta, tento poeta. Não sou das gerações das últimas letras do alfabeto – sou de todas, lindas, amigas, amantes. Nunca mal escritas numa vida que insiste dar importância às palavras inglesas que só traduzem o vazio do trabalho moderno. Posso não estar nos trend topics, mas estou em casa pensando: o repórter do jornal da TV Globo agora diz “tá”– vai tá certo seu filho escrever assim no vestibular? Menos mecanismos, por favor. E mais amor às letras.

CRiga.


quarta-feira, 29 de março de 2017

Janaína


Quem ouviu o grito
ouviu a noite
e ouviu a vida inteira.

Os sapatos traziam pó
na volta do dia de trabalho,
as vitórias dos dias do Leão,
que é amigo
pai e mãe.

A roupa disfarçava
mas ela era a mesma menina,
a mesma.
A mãe estava no quarto
lendo Alan Kardec
com medo de descer a escada
dar um beijo de boa noite
e contar histórias de família.

Ah, menina!
O mundo é belo assim como você,
e eu te amo!
Eu quero rever a tua luz
os teus olhos azuis brilhando
e teu jeito de ensinar irmão a ler
com revistinha em quadrinhos.

Quero ver teu altar e tua felicidade
brilhando feito Jesus ressuscitando,
quero estar sempre ao teu lado
aprendendo a ler
a vida inteira
a noite inteira
feito irmãos conversando
até o dia raiar
sempre mais bonito!

CRiga.
24 de setembro de 2002,
Poemas também são feitos pra lembrar
Pra fazer lembrar, querida Jan!


terça-feira, 28 de março de 2017

Quarenta e dois


Espinhosa mata que machuca,
faz tempo que me atravesso.
O excesso não cura, nem o escuro
de um quarto ao meio-dia.

Sei de todos os segredos
até dos que não me contaram,
e eu sei porque sou puro.
Na lente do escritor há uma história,
mas esta fica pra depois –
uma varanda de conselhos e moços,
haverá ouvidos gentis.

Eu sei o caminho, eu já trilhei
com menos responsabilidade.
Sei das pedras, só tenho um sorriso
e a mesma safira sincera de confiar.
Vou correr contra o vento,
respirar o bafo gelado, viciado,
prazer em reconhecer!

Não há segredo nem na morte.
Há pedras – e o poeta já sabia muito bem.

A música mais triste não entristece,
e é melhor esquecer por enquanto
este Brasil, Vandré enlouqueceu
e todo mundo esqueceu de plantar.
Eu preciso comprar sementes...

Nem que não haja o mesmo sol,
é outono, vou curtir o vento cortante.
Há mesas juvenis na calçada, um convite.
Eu ainda sou o mesmo, me espera,
quero as boas novidades pra te contar!

CRiga.


segunda-feira, 27 de março de 2017

Pijama


Hoje está nublado e resolvi ficar triste.

Eu queria era cravar a minha estaca tinteiro
no coração do tirano o outono inteiro.
Emprestar o tempo que acumulei
a quem precisa tirar moedas do nariz,
comprar uma vida apenas honesta
e mais feliz.

Nada além da impossibilidade de tudo
é que me faz assim tristonho.
Não ser o alquimista que sopra o ouro
fazendo um sol qualquer aparecer.
Não ter pra onde correr, homem feito
se escondendo num pijama...

CRiga.


sexta-feira, 24 de março de 2017

As simples letras pepitas de acalmar


Não adianta mesmo coçar-se
coisas que não são tuas.
Níqueis sem rostos de presidentes
caem dos bolsos furados –
nada paga a paz de espírito.

Há um Brasil que tolhe direitos,
e até ser simples neste garimpo
custa caro como o desperdício
na Assembleia Legislativa.

Há valor às minhas letras,
não caras nem bancando
a coluna social.
Nem raras que sustentem
o carnê do falso lar.

Vá lá! – é preciso mesmo
muita simplicidade, meu amigo!
Não me venha com o faxina
que virou empresário
e até um deputado!

O valor que se paga é pepita d’alma,
a minha alma!
Ladrilha pedrinha de brilhante
ao meu amor que não passou.  
Se essa rua se essa rua fosse minha
eu não vendia, eu não vendia.

As letras pagam meu cobertor de ouro,
a alma é nua!
Esperança menina que orbita boba,
solta, singela num poema.

CRiga.


quinta-feira, 23 de março de 2017

Tarde de outono


Perdido na tarde do velho outono
conserto – sei –  à linhas nobres
as letras de bons amigos meus.

Corrijo até destinos, reencaixo rumores.
Eu só não queria sentir o frio da tarde
e seu desânimo de fim de vida.

Fazer o que se gosta é bom.
As sombras do tirano me lembram
apenas que não sou mais um robô.

A vida segue, é esta que te acontece –
a avó velinha que morre assim singela.
A torcida por um menino empatar o jogo.
A bronca no garoto que perdeu a hora.

Ainda te amo, garoto. Te amo mulher,
te quero, ainda espero as tuas 17 horas 
finalmente me salvar.

CRiga.


quarta-feira, 22 de março de 2017

Exorcismo


Não quero as letras de tuas mazelas.
Não quero te dar trela, envelhecer.
Não quero te atribuir estrelas.

Mas insistes me perturbar, diabo de terno,
lobo podre em pele de temente
e brochinho de parlamentar.

Eu não tenho nada, mas tenho tudo
não estando do lado perdido.

Eu não rezo e não engano.
Você ora ferrenho,
engana e se engana.
Simples assim.

Tem gana em iludir
iludir-se, pobre coitado da faxina
que venceu na vida
e perdeu no caráter.

No cateter
da tua fodida personalidade sorridente,
corre apenas água morna –
aquela que nem quente nem fria
só faz vomitar.

Eu preciso de um exorcismo.
Você me plantou as labaredas do inferno
na pele que coça
e um diabo no corpo.

(e eu que fui procurar imagens dos teus vícios
e tantas tantas encontrei...)

CRiga.



terça-feira, 21 de março de 2017

Sintomático (parte dois)


Se a pele ferve a verdade da alma.
Se a calma não faz parte deste corpo que sofre.
Se o medo corrompe até o pensamento mais forte.
Se o tirano ainda domina sua estima e sua sorte.
Se a morte não é alternativa.
Se o sol resolveu entregar-se ao conveniente outono.
Se o sono é o amigo traiçoeiro que te acorda.

Se a corda sempre rompe pro lado mais fraco.

Tome cuidado. Um trago. Uma cerveja.
Tenha certeza que o se passa.
Mate um de cada vez, tiros certeiros ou não,
monte guarda no saguão, aponte sim o inimigo.

Nada é simples. Nada é certo.
Eu estou muito triste. Ando.
Eu não devia estar aqui.
Eu não devia estar assim.
Nada mais.


CRiga.


segunda-feira, 20 de março de 2017

Um passeio a boa vista


Eu procuro a paz, um clichê, que seja.
Um passeio pela boa vista, um rio o ano inteiro.
Eu procuro saber se tenho jeito, se no peito
o coração aguenta, se consegue resgatar
os passos tranquilos pelo Paço.
Eu apenas faço de conta que sobrevivo -
eu insisto procurar-me
meu lugar sou eu.

Busco em mim os dias
em que finalmente me veja sem pressa,
homem livre, peito aberto
num passeio pela boa vista.

CRiga.



O tamanduá


É que eu quero saber
se mereço teu querer
destruir, destruir-se
maremoto, terremoto
no nobre formigueiro.

Mas você existe
subexiste
sobrevoa
urubuza.

Chamusca
chafurda
fode
vomita
engole.

Eu ainda vou escrever
sobre o ser que habita
seu habitat particular.

CRiga.


quinta-feira, 16 de março de 2017

Anencéfalo



Pré-nasci, sou assim sem cabeça
eu penso com o coração...
e por isso nem sei se sinto dor
depende de minha mãe:
se ela sofre me dói também
e prefiro acabar com a dor;
se acredita me alivia
e me dá mais um dia.

Quem disse que não a vejo?
Eu vejo sim, o rosto dela
em mim,
e mesmo que eu não saia vivo daqui
ninguém sai vivo de lá também.

Depende de minha mãe...
Eu não sei nada, nem pensar -
e ela também não, tudo bem:
só sei que ela quer o melhor pra mim
só sei que ela quer o melhor pra ela também...

...há melhor no pior, mamãe?


CRiga.


quarta-feira, 15 de março de 2017

Corujice...


Apresentação do pequeno pianista Francisco Rigamonti (por acaso, meu filho), acompanhado da linda bailarina Carolina Gaspar, no Teatro Municipal de Barueri, segunda, 13. Performance linda e emocionante de Pour Elise, de Beethoven. Orgulho!

CRiga.


terça-feira, 14 de março de 2017

Capturando vento


Preso ao calcanhar do retardatário –
pensa estar entre os primeiros.

Inflando o ego de um balão furado –
pensa ainda ter ar para voar.

Abrindo caminhos aos rincões do nada –
pensa ter estrelas pro seu vazio vazio céu.

Quem preso, inflando, abrindo,
come calado sua pedra no sapato.
Mas sabe bem quem prepara e serve
o prato justo de quem tem a consciência.

O retardatário balão dos rincões no nada
captura vento
e semeia tempestade.


CRiga.


segunda-feira, 13 de março de 2017

Pureza


Eu vejo uma bela história de amor
sem toda tanta dor que senti.

Mas eu nem tenho este direito...
Não se pode querer postar os pares
nos lugares perfeitos da tua fotografia.

Não adianta adiantar-lhe
o olhar aos lábios –
a boca dela por enquanto só denuncia
a pisada na marca da amarelinha.

CRiga.


sexta-feira, 10 de março de 2017

Separação


São as pétalas que descolam,
caem antes tapete ao altar.
Ervas daninhas são o jardim,
antes cúmplice da cumplicidade.

O peixinho morreu, boia no aquário,
e até o gato chora a falta de fome.
O vizinho quer encher o saco,
quer botar o copo na parede...

Não há louça empilhada na pia,
par ou ímpar, não há mais refeições.
Não levaram as crianças pra escola
triste folga, vamos brincar lá fora.

O quarto escuro cheira a suor envelhecido
e o espelho do banheiro foi quebrado –
azar maior é visita sem aviso,
compromisso de diretoria.

Retratos que sorriem pares da memória
estão virados sobre o pó da estante.
Há um instante em que morrer é bom,
mas há também um som diferente
pra cada lágrima que cai –

eu hoje esqueci você um pouco mais
que o quase nada de um ontem qualquer.

CRiga.


quinta-feira, 9 de março de 2017

Um tombo na madrugada


Mergulhado
se esquece que a morte vem
trotando, avisando.
Uma voz rouca ao telefone.

Às vezes apeia o cavalo
deixa aproveitar o chá das cinco
com as rosquinhas de leite
que enganam o espírito.

Mas uma hora volta no pó da estrada
chega de madrugada, silencia os grilos.

Põe as cartas marcadas sobre a mesa
e não adianta protestar –
é sua assinatura ali grafada
as fotos então queimadas
num canto do velho quarto.

Caem ao chão o rosário,
a Nosso Senhora negra que dava medo
e o livro de Alan Kardec –
deixa quem fica defender quem vai,
leva quem nunca perdeu a fé.

Mergulhado nas gotas diárias do ácido,
se esquece que o seu corpo também padece.
Antes a morte leva alguém.
Depois, leva você também.

CRiga.



quarta-feira, 8 de março de 2017

Ao meu surdo coração


Lá em cima do piano
tem um copo de virtude.
Quem bebeu foi um filho meu
por Elisa, São Francisco.
Um menino de sorriso
solto assim no ar.
Um talento pra tocar
até surdos corações.


CRiga.


terça-feira, 7 de março de 2017

13 anos


Não se sabe se existe pior.
Porrada na cabeça. Parada cardíaca
lança-perfume e cocaína.

Vida rasa, perspectiva?
Talvez risse, que alegria?
Talvez nem comesse,
começasse a ser bandido.
Talvez só brincasse,
ninguém nunca viu.

Menino moleque,
pivete menor abandonado.
Criança, criança, criança –
onde estão os braços do país,
os abraços de seus pais?

Mataram, matou-se o menino.
Que importa?
Poderia ser seu filho...

CRiga.

Morte de adolescente no Habib's foi causada por lança-perfume, diz laudo

Proibido falar tirania


A surdez do antigo rei não é nova,
e como todo bom rei na barriga
do trono arrota e esbraveja soberba.

Por isso não precisa dizer ao rei
que o pântano engole o agricultor.
Que ele procura sim um ouvido
só disposto a ouvir, uma mão amiga
que o tire de lama que o envelhece.

Todo reinado acaba, mas a enxada
é só trocar o cabo –  
ninguém pensa em dar com ele
na coroa emprestada.

Só renovar o trabalho no campo
e desatolar as botas já furadas.
Colher das sementes já plantadas
a paz que pareceu um dia tão distante.

Igual àquela paz de varanda,
casal às cadeiras só olhando
almas sorrindo dentro do milharal.

Igual a um reino cujo único decreto
afixado à arvore mais velha,
seja proibir a simples menção
à palavra tirania.

CRiga.