sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O segredo entre os lábios


À busca-captura do espião,
anarquiza, devassa,
e na ponta da língua
arma a louca peleja de esgrima.

Depois denuncia, devaneia:
boca no mundo, sorve o abrigo,
o doce crime sabor pêssego morno
ou veluda manga da estação.

Na invasão incendeia o esconderijo
consumindo os segredos quentes,
e o fogo toma todas as paredes
até a queda depois da explosão!...

A chama que resta, então morna,
só emana saudades metafísicas...
a relva molhada, o cheiro de chuva,
o gosto da fruta que sacia.

CRiga.


Guerra santa


Na guerra,
erra ao olhar demais pra ela.

Peca,
a igreja é mais um puteiro
que a fria solução dos fracos.

Embaraços, pernas grossas,
se houvesse religião se jogaria
aos seus pés, lavaria seus pés,
adoraria.

Na terra o cheiro é mais forte,
o sangue menstrual aduba
o transe do girassol depois da chuva –

acredita é no barro,
no carro de portas abertas
pronto pra fuga
pra qualquer Paris que se invente.

Qualquer país onde a guerra
seja santa, vestida decote
e saia curta no altar.
A cada bombardeio, escondida
numa catacumba diferente, 
um perfume a denuncia. 

Beato cretino nenhum tem coragem
de abrir a santa sepultura rosa choque,
encará-la pedindo olhares e amores
além daqueles que as mãos juntas 
oram queimando ateus.

Na guerra
ele escondeu todo o seu tesouro
debaixo do véu da santa.
Véu transparente,
pobre santa desnuda
rogai por nós!...

Santa viva no bater dos sinos
anunciando, feito raios e trovões,
a agrura de um corpo
que só quer comungar prazer.


CRiga.


quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Never Let Me Down Again



Os teus olhos claros lindos espelhavam, com a alma do lado oposto, o mesmo desejo. Em vez da negação típica de quem precisa negar - por causa dos primeiros pólos contrários, ou simplesmente porque o certo era negar -, o consentimento: decidimos ser cúmplices do mesmo crime, jogando as armas ao chão, baixando a guarda e, com a bela dor de amor, amar.

Foi mais um sonho que tive.

A manhã do inverno veio com a saudade de algo que nunca aconteceu. O cheiro daquela chuva de madrugada ainda decorava o asfalto, belo, amarelas luzes dos postes ainda acesas por conta do tempo escuro, na grande avenida, reluzindo feito as noites que eu saía ao som selvagem de um rock. Ainda chovia, não a chuva da impossibilidade, mas a chuva de uma saudade incompreensível. Agora sim, algo que me dizia bem próximo, latente, à memória do coração. Apenas sentir a chuva brilhando no asfalto. E um rock no rádio do carro.

Nos flashes das luzes amarelas, em cada curva, esquina, ela ainda me olhava, me arrancava naquela manhã um sentimento perdido em outra dimensão. Me perdeu também. E eu sabia que aquilo, com o tempo de um dia no máximo, daria lugar ao presente ácido. Aproveitar então a dor de amor impossível, a ausência não sei de quem, a identidade inexistente, mas a presença tão intensa daqueles olhos a me capturar. A me salvar, talvez, debandando ao lado que conheço bem: o intenso, o pulso vermelho, a entrega ao sentimento fugaz e perecível. Mas necessário.

Quem era você? Eu tenho medo. Eu sinto um não-sei-o-quê, misto de ausência com a louca procura impossível, esquinas, asfalto, memória do coração. Premonição... Eu não posso nem te assassinar, nem te culpar pelo crime que cometemos. Nem te repudiar, nem maldizer teu nome. Eu nem sei teu nome...

“Nós estamos voando alto
Nós estamos vendo o mundo passar por nós
Nunca quero descer
Nunca quero por de volta meus pés no chão”*

Só o asfalto canta. Só meu coração lateja uma amargura típica de quem está perdido neste dia de sol sem chuva. Preferiria meus pés molhados ao sol sorrindo irônico. Nós não somos humanos, e me incluo nessa inexistência. Somos alma do tempo. Só o asfalto canta. Eu preciso chorar. As lágrimas secaram. Com a chuva. Ácida. No asfalto.

* “Never Let Me Down Again”, Depeche Mode (Music for the Masses, 1987)

CRiga.



quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O sorriso da paz


Naquela noite, a última que te vi, você me chamou à mesa, mais uma vez, pra te acompanhar no vinho tinto e seco. E você sabia, sempre soube, que eu detestava vinho seco! Preferi continuar calada, amando você do meu jeito.

Você tentou arrancar-me um sorriso com mais uma daquelas doces e marotas mentiras, mentiras bobas. E você sabia, sempre soube, que eu detestava mentiras! Preferi continuar calada, amando você, do jeito que você pensava me amar.

Naquela noite, mesmo puta da vida com você, te beijei tão intensa e eternamente como se fosse a primeira ou a última vez que beijava os teus lábios, com sabor de vinho seco e de doces mentiras. E eu sempre soube que te amei demais, desde o primeiro até o último momento que vi você.

Naquela noite, a última que te vi, você saiu com um doce “até amanhã”. Mais uma doce e marota mentira dos teus lábios, com gosto de vinho tinto e seco.

Naquela noite, a última que tuas mãos tocaram meu corpo e me dirigiram aos céus, você pegou firme no volante, saiu com o carro, e um caminhão na contramão não gostou da sua mentira boba, e dirigiu você aos céus, longe de mim. E, antes de você sair, eu vi o sorriso da paz nos lábios que beijei tão intensa e eternamente. E foi bom, mas estranho.

Depois daquela noite, meu amor, passei a amar mais ainda você.

Passei a beber e a gostar do vinho tinto e seco. Eu, que detestava vinho seco, bebia só pra me lembrar de você.

Quando me perguntavam se eu estava bem, passei a dizer que sim, mentindo. Eu que detestava mentira, mentia mesmo sabendo a falta que você ainda me faz.

Eu não sabia que aquela noite era a última que veria e teria você tão perto de mim, me amando no sofá como se fosse a primeira vez, me dirigindo aos céus que eu conhecia tão bem contigo. Agora, já não conheço mais. Se soubesse que aquela noite era a última que veria você, meu amor, trataria de beber o vinho seco (como se sempre gostasse de vinho seco), rir das tuas doces mentiras (como se não me importasse mais com elas), e trataria de não me calar por orgulho bobo, pra dizer que te amava mais do que nunca, sem me preocupar com o amanhã.

A última vez que vi você, te amei demais, pra sempre, só naquele sorriso da paz, me sorrindo de dentro do carro como que sorrisse dizendo adeus. Se eu soubesse que seria assim, meu amor, teria feito tudo o que não fiz, inclusive dizer que te amava, e que ainda restava tempo pro caminhão não cruzar o teu caminho, restava então um gole na garrafa do vinho seco pra você ficar.

Mas você não ficou. E o resto da minha vida, o resto do vinho, o tempo simplesmente secou.

CRiga.

Moribundo coração


Há poucas paixões.
Poucos ombros leves na brisa,
caminhantes tranquilos na praça.
Um brilho por vezes falso brilhante,
fácil sorriso.

Há verdades que não mudarão seus dias,
então por que digladiar?

Há mensagens que não chegam,
outras são falsas.
Outras estão disfarçadas
em codinomes de amores impossíveis.

Há de tudo um pouco
que não deixa um velho brilho rebrilhar,
uma velha rua ladrilhar.
Um velho pulso pulsar aquele sangue tão vermelho
no cateter do caráter, salvando feridos
colando cacos de corações partidos.

CRiga.


terça-feira, 25 de outubro de 2016

Coisas de Isidoro


No leito frio da companheira de uma vida
havia um cadeado velho enferrujado
por baixo do vestido novo e mofado,
guardado na goma
pra uma ocasião muito especial.

Havia também um par de chaves nunca usado
num velho chaveiro de campanha eleitoral.
E um bilhete lembrete rabiscado amarelado
escrito bem assim:

“quando quiseres prender-te a mim novamente,
não te esqueças de chamares bem alto meu nome,
mas muito, muito solenemente,
pela nossa velha casa de perdoar pecados
e de reformar o que restou de saudades”.


CRiga.


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Seu Inocênio


Meu avô era o exemplo vivo de que não há tempo para se deixar de viver. Nunca perdia a mínima chance de sair de casa, num bom passeio. Embora diabético, suas mãos enrugadas e companheiras assaltavam a geladeira e o armário à procura de doces, durante as tardes em que ninguém o vigiava. Nem por isso era tido como alguém que cometia um crime contra a saúde – ou mesmo contra os doces nunca tão bem guardados dos netos, que sempre quando chegavam ao lugar onde guardaram os doces, perguntavam bravos: “cadê meu doce que deixei aqui????” Seu Inocêncio não respondia, e os netos olhavam bravos, mas sem ira.

Seu Inocêncio não tinha maldade. Quando fuçava nos armários e geladeiras, sabia que não havia muito para se preocupar, nem mesmo com a diabetes, que o privou de tanta coisa durante tanto tempo antes de estar ali, no vaivém na casa sobre sua cadeira de rodas. Antes de perder uma das pernas, amputada por um problema sério de saúde, quando não tinha a carona de algum filho, ia mesmo sozinho passear pelas ruas da vizinhança, com seu bom sorriso de paz. Por vezes só ficava em frente à casa, olhando a rua, sentado numa cadeira.

Morávamos eu, minha irmã mais velha, minha mãe – que era quem trabalhava em casa – e minha vó. Quando um tio nosso passava lá em casa de carro, nos tempos em que Seu Inocêncio ainda tinha suas duas pernas, era quase sempre a mesma cena cômica: ele ficava de ouvido na conversa entre minha vó e algum tio, se fazendo de distraído. Por vezes ouvia que dali esse nosso tio iria a outro lugar, na casa de alguém ou no supermercado; como quem não quisesse nada, Seu Inocêncio ia pra o quarto; ao ouvir o “tchau” do tio, ele pegava seu velho chapéu atrás da porta e ia com seu passo de velhinho atrás, alcançando o carro já saindo. “Ara, Inocêncio, larga disso!”, gritava minha vó, brava com a atitude meio de intrometimento de meu avô. Por vezes, vencia e arrancava um bom passeio; por outras, era convencido que melhor era ficar daquela vez. Nunca ouvi ninguém dizer, simplesmente, “o senhor não vai”. Sempre tinha uma explicação, do tipo “olha, hoje é melhor o senhor não ir, porque não vai ser um bom passeio, tarará, tarará...”.

Isso porque, inegavelmente, embora encostado em sua velha poltrona de couro marrom, na cadeira de rodas ou mesmo sobre sua cama no canto da sala (de onde era mais fácil sua sobrevivência depois de ter sua perna amputada), Seu Inocêncio ainda era o líder daquela família, que se reunia em quase todos os finais de semana em nossa casa. Era sempre aquele clima de família unida, feliz, primos, primas, tios e tias. Isso ficou mais que claro depois que ele morreu: foram raras as vezes que toda a família se reuniu depois de sua morte. Embora ainda com contatos entre si, e algumas reuniões e visitas, nunca mais a família foi a mesma coisa.


Em uma das casas que morávamos, ele “morava” na sala. Recém amputada sua perna, enquanto eu assistia à TV à noite, com a luz apagada para não incomodar, ele gemia de dor (“ai, ai, ai...”), e chegava até a assobiar para “disfarçar” tamanha dor. Passou a ter um balde vermelho ao seu lado, onde jogava a urina de sua comadre; tomava banho e fazia suas necessidades biológicas na sala, com auxílio de minha vó. Eram cenas que aprendemos a aceitar, e até nos acostumamos. Mas quem iria saber lá no íntimo de Seu Inocêncio, o que ele sentia... Nem mesmo em sua velhice poderia desfrutar de um pouco de privacidade e paz? E sua dignidade, onde é que ele a disfarçou? Hoje isso dói mais em mim do que naquele tempo, quando eu mal entendia essas coisas...

Tanto mal entendia que, sem maldade, enquanto ele estava deitado em sua cama, eu por vezes sentava em sua cadeira de rodas e saía pela casa, brincando de ônibus. Nunca por maldade, e sim porque eu realmente achava divertido. Meu avô e minha vó nunca me recriminaram, assim como minha mãe. Também brincava de bola de meia pela casa, à noite enquanto esperava minha mãe chegar do trabalho. E Seu Inocêncio, mesmo com algumas boladas que tomava por acidente, nunca nunca reclamou. Acho, na verdade, que ele queria mais era aquilo, pelo menos um pouco de vida moleque dentro da casa fria para que tudo aquilo não caísse no adultismo que ele mesmo deixara para trás. Ele queria menos tristeza em seu canto da sala.

Depois mudamos para uma casa maior, da minha madrinha. Nos fundos, havia um velho escritório de meu tio, onde instalamos o quarto de meu avô. Um quarto só seu, e minha vó dormia com ele somente quando ele não passava bem. Eu tinha um quarto só meu, em cima, e minha irmã outro, junto com minha mãe. Para elas descerem, precisavam passar pelo meu quarto, mas eu nunca me importei, porque eu tinha um quarto só meu.

No quarto improvisado a meu avô, ele podia fazer o que quiser. Lá, se pelo menos não tinha sua dignidade totalmente restabelecida, tinha sua privacidade. Num canto da cabeceira da cama, ele tinha uma caixa de sapatos onde guardava pequenos pertences como pente, navalhas para barbear, perfumes, presentes e pequenos papéis (pequenos segredos, talvez, para se sentir mais vivo), e outras pequenas bugigangas. Era sua caixinha de utilidades. Eu a considerava sua caixinha sagrada, tão sua como sua dignidade e privacidade. Tão necessária quanto um moleque que não mais brincava em casa.


O tempo passou e comecei a trabalhar, e por isso já não mais brincava dentro de casa, nem “brigava” por causa do doce roubado. A bem da verdade, era difícil ver meu avô durante os dias de semana, porque eu trabalhava no dia e estudava à noite. Numa sexta-feira de férias escolares, saí às seis da tarde de meu emprego, com três bombons “sonho da valsa” dados pelo meu patrão. Antes de chegar em casa, já havia comido um; dei o outro para minha vó, que assistia novela na sala; o outro, dei para meu avô, sentado em sua cadeira de rodas, tomando uma sopa, lentamente, à mesa também na sala, de costas à TV e de cabeça baixa.

Ele estava com um rosto diferente, meio entristecido. “O que foi, vô? Tá sentindo alguma coisa”, perguntei, instintivamente. “Ele não está bem hoje. Tá sentindo dores...”, minha vó respondendo. Olhei Seu Inocêncio, estendi o terceiro bombom para ele, e disse: “trouxe para o senhor, mas é melhor não comer agora então, já que não está se sentindo bem. Tome, guarde, e só coma quando estiver melhor, viu...”, recomendei, sabendo que a recomendação era uma perda de tempo, pois do jeito que meu avô gostava de doces, ia comer logo logo. Eu sabia disso...

Na verdade, eu não sabia de muitas coisas naquela minha idade... Não sabia que a morte chegava às vezes pronunciada numa noite de sexta-feira, silenciosa, de madrugada. Não sabia, não entendia o que significava minha vó chamando minha mãe lá de baixo, minha mãe descendo correndo e gritando no quarto de meu vô; depois minha irmã passou pelo meu quarto, e perguntei, com medo da resposta, o que estava acontecendo. “Acho que o vô morreu...”, respondeu.

Chamamos o vizinho, e colocamos Seu Inocêncio no banco da frente do carro, desacordado. Somente eu fui junto ao pronto-socorro, e fiquei lá esperando a resposta do médico. “Sinto muito, ele chegou aqui já morto...”. Fiz com a cabeça positivamente que entendia, sentei num banco, mas não chorava. Aquilo ainda não tinha entrado na minha cabeça direito. A morte e o seu significado ainda não fora concebida em mim.

Um tio chegou uns vinte minutos depois no pronto-socorro. Perguntou sobre meu avô (seu pai), se estava vivo ainda. Respondi novamente com a cabeça, desta vez, negativamente. Ele fez que entendeu, também com a cabeça. Era talvez uma espécie de aceitação esses movimentos de cabeça e as respostas em monossílabos. Ele não chorou também e voltamos à nossa casa.

O sábado foi inteiro na organização do enterro. Minha vó não conseguiu ir à cova destinada a Seu Inocêncio, no cemitério do Morumbi, dar o último adeus depois do velório. Um tio meu me disse para ir junto de minha mãe, dando apoio a ela – era a única filha desquitada, e eu assumira um semi-papel de companheiro, de filho homem, mas menino.


Continuei minha “missão”, sem chorar. Era estranho, porque eu não segurava as lágrimas: eu simplesmente ainda não tivera vontade de chorar. Vendo a família toda reunida pela última vez naquela tarde de sábado, com comes e bebes, e todos já bem melhores, me sentia bem também. No final da noite, todos foram embora, e dormiram seus sonos de saudade. Cada um o seu, menos eu, que dormi de cansado mesmo.

Domingo. Decidi ir arrumar as coisas de Seu Inocêncio, as suas poucas coisas sobre a cama, já que a roupa seria doada, mas alguns pequenos objetos deveriam ser guardados de recordação. Peguei sua caixinha sagrada. Fui retirando aos poucos os objetos que pretendíamos guardar. Quase tudo retirado, embaixo do seu velho lenço azul jazia aquele embrulho cor de vinho, brilhante: o sonho de valsa.

Haveria neste mundo, e depois daquela sexta-feira, ser humano que não chorasse agora? Seu Inocêncio, talvez pela primeira vez, preferiu seguir um conselho e deixar de fazer o que mais gostava: comer um doce. Me senti mal, porque havia dito para ele não comer o bombom naquela noite, pensando que ele ia comer mesmo assim. Eu não sabia de nada, e, de uma só vez, eu soube o que a morte de alguém amado significava, ali, segurando o sonho de valsa que Seu Inocêncio preferiu não comer na sexta-feira. “Por que não comeu, vô? Era melhor ter partido com o gosto doce na boca, com o último doce que poderia levar da vida.” Abri o bombom, e, aos prantos, comi como que pedindo ao meu vô, lá de cima, que sentisse o gosto que eu sentia. Que sentisse que eu também sentia saudades suas.

E talvez por me lembrar assim de meu avô, “roubando doces”, “forçando” passeios, é que sempre quando sonho com ele, Seu Inocêncio está de pé, grandão, bonito, com suas duas pernas fortes, e aquele velho e bom sorriso de vô. O gosto daquele sonho de valsa ainda permanece em minha boca, assim como as boas lembranças que tenho dele. Por isso, na vida vale a gente ser moleque um pouco, jogar bola com o filho, comer muito doce com ele, sorrir sempre e chorar quando for preciso. E nunca, nunca, desperdiçar a chance de um bom passeio, ou comer um bombom.

Agora eu sabia, não tudo, mas o suficiente para um dia partir ou ver partir, sem precisar dizer “não coma o doce, não vá passear”. Agora eu sabia, mais do que nunca, que não há tempo para se deixar de viver. E foi Seu Inocêncio que me fizera entender.

CRiga.



sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Sede ao pote


Gritantes flores amarelas
não combinam, enjoam os sentidos.

Muito olho no olho
cerca demais a liberdade do coração.

Quando a falta do perdão vai caindo
sonolento,
baixe o volume da canção.

Não queira ser o umbigo do mundo,
no fundo há teu espaço
só não queira tomar de assalto.

Seja lá o que for
seja mais que a sede
mais que a fome de amor.


CRiga.


quinta-feira, 20 de outubro de 2016

“Solitude, my sacred mood...”*


Guitarrinha em uah-uah,
um violãozinho triste ao fundo,
e a voz de Ashcroft como sempre
veludo do rock inglês!

Triste triste como a solidão que canta,
linda linda canção dos sete minutos
que faz a viagem na cabeça,
acalma o coração.

Por estes dias
dá até vontade de chorar....

CRiga.

* “Appalachian Springs”, The Verve (Forth, 2008)



Perdido na floresta


sem norte
perdido
a floresta é cinza
monstros perseguem
câmera lenta
a chuva castiga
vontade de chorar
precisa chorar
precisa lavar a alma
nem que seja a base
de um balde de lágrimas selvagens...

“Sin is a line of a poem…
..But you're lost in the woods”

CRiga.

*”Lost In Woods” - The Afghan Whigs (Do To The Beast, 2015)




Remoer


O que me faz mais infeliz
é causar infelicidade.

É a incapacidade
de fazer feliz.

É a felicidade, na verdade,
ser tão objetiva
sem caber nela
o perdão.

Eu não tenho os pés no chão.
Eu não levo o mínimo jeito
de ser gente assim, tão comum,
tão feliz.


CRiga.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

A Mulher

Um santo sorriso
no canto da boca.
Encanto, apenas.

Um tanto que bóia
sem manto, pau oco.
Brisa, apenas.

Um acalanto pra boi dormir,
sem pranto, nem há idade.
Menina, apenas.

Santa é a devoção à carne
que canta ainda nos luares
um encanto que sempre renasce.

Um tanto de anos sempre faz bem,
uma manta no inverno,
acalanto pra dois bebês.

O pranto fortalece o amor –  
apenas e tão somente
o que vale
é a Mulher.

CRiga.



terça-feira, 18 de outubro de 2016

Vagabundos pelo ar (parte 3)


Horário de verão - 
acertará o relógio da parede,
tão atenciosa colega de trabalho!

Não quer se atrasar
tão ocupada, coitada, 
em seu frenético trabalho 
de buscar as 17 horas.

CRiga.


Marcas indeléveis


Quebrar esquinas e promessas,
meu problema sempre menor.
Mas sou eu, porra,
eu quero é saber dos meus problemas.

Na verdade quero matar alguns,
trucidar.
Não há batom nem câncer.
Mas se eu não me importar 
quem é que vai?


CRiga.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

“O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência” *


O tchau foi um adeus,
só ele não sabia.

“Faltava força nas canções...” 
Quando chega a tal da “experiência”
tudo o que não é mais tão bem feito
“na sua opinião”
vira violinha desafinada de fundo de balde.

Quando caiu em si
também não fazia mais questão.
Porém, não perdeu oportunidade
e compôs uma nova canção:

amor de ontem amanheceu já velho
paixão de hoje é um dia a mais
pra te empurrar da beira do cais.
Eu quero experimentar muitos sóis
solos imperfeitos e a voz sumindo
porque gritei demais a intensidade
da vida que você não faz mais parte.

Gravou num gravador cassete,
a fita enroscou no walkman.
O estúdio emprestado de um amigo
não fez o refrão crescer.

Um dia esqueceu o papel anotado
numa gaveta do passado.
Na mudança o mofo comia as cifras
e as letras mais pareciam
caderno de caligrafia.

Resolveu flertar com o pulso
menos pulsante – a tal da “experiência”.
No smartphone abriu o aplicativo
e ainda sem o mesmo talento do filho
teclou as letrinhas reformando a canção:

amor de sempre renasce novo
paixão de ontem mofou na gaveta,
eu não quis nunca te matar.
Eu quis experimentar vôos solos
sóis que davam num lugar escuro,
então parei de gritar chamando atenção
e ganhei então meus menos defeitos.

Guardar onde, então?
Do antiquado blog mofado
é que nunca abrira mão!

CRiga.

*Nelson Rodrigues



terça-feira, 11 de outubro de 2016

Cartão de ponto


Tinha um menino que todo dia esperava o pai chegar da fábrica, cinco da tarde, a fumaça cinza aos poucos dando lugar ao fim-de-tarde na vila operária. Ele trazia balas. O pai sempre trazia balas. E o menino gostava daquelas balinhas de botequim, mas gostava muito mais quando o pai aparecia na esquina, e o menino saía correndo pela calçada ao seu encontro, bracinhos e brações abertos. Aquele cheiro de tabaco, o macacão cinza da fábrica, as mãos quentes, grossas. Um passeio de mãos dadas de volta pra casa, contando o que se fizera naquele dia. Aquele jeitão, sorriso cansado - mas sorriso de ouro pro filho. E as balas, sempre balas.

Um dia o menino não esperaria mais, o pai já sabia. Um dia ele estava na esquina, conversando com uma menina sem mãe nem pai, morava de favor na casa de tios distantes. O pai foi levar balas, a menina aceitou, e o menino amarrou a cara com vergonha. Não faz mais isso! Eu nem gosto dessas balas de botequim! Não quero que ela te veja assim, com essa roupa de operário, sujo, cheirando a...! O pai entendeu que a espera agora era só questão de hormônios. Não mais trouxe balas.

Quando chegava todo dia, agora o pai parava no portão de casa. Olhava a mesma esquina, sacava seu cachimbo, olhava o filho e a menina sumindo, se perdendo. Só olhava, não falava. Ficava até o filho e a menina sumirem da vista, e a fumaça linda da fábrica dar lugar ao fim-de-tarde docemente melancólico.

A menina depois apareceu embuchada. A mãe entrou em pânico, acusou, xingou. Tão cedo, um filho! Como vão criar? A vida de vocês acabou.

O pai só espiava. O menino nada dizia. A mãe condenava os dois pelo silêncio. O pai saía à calçada, afundava o tabaco no cachimbo, e olhava a lua, operária, batendo cartão em seu turno.

Anos depois não se sabia o paradeiro do menino. Cansado daquela vila cinza e histórias demais iguais, fugiu com outra menina sem pais. A outra menina, a mãe, morreu no parto. O bebê ficou na casa dos avós paternos, muito bem criado.

Cresceu, menino bom. E às cinco da tarde, permanecera aquela mesma fumaça cinza aos poucos dando lugar ao fim-de-tarde na vila. E um menino que esperava no portão de casa, todos os dias, aquelas balinhas de botequim. “Vovô chegou! Vovô chegou!”.

Um dia vovô não chegaria mais, o menino já percebia. Pulmões prejudicados, aposentaria indigna, tardes no portão de casa olhando uma esquina, um nada. A vida também bate cartão. O menino tratou de crescer.

Tinha um velhinho na cadeira velha que todo dia esperava alguém no portão de casa. E às cinco da tarde, a fumaça linda aos poucos dando lugar ao fim da vida. Ele via despontar na esquina um moço bom, de macacão cinza, sorridente, orgulhoso ganhando a vida à frente - e lembrava de alguém. O moço bom sempre trazia balas. A vó sempre maldizia, ele tem diabetes, ele tá doente, não pode comer doce. Mais dia menos dia não haveria mais vovô no portão esperando tanto às cinco da tarde, silencioso, de olho na esquina. O moço bem já sabia.

Tinha um velho que todo dia esperava o moço chegar da fábrica, cinco da tarde em ponto. Estender as mãos, e sorrir. Sorrisos cúmplices de ouro. Uma fumaça que insistia em ser bonita dando lugar ao fim de tarde, a lua batendo cartão em seu turno. Algo pode falhar na vida, menos os turnos de cada um. E as balas, sempre as balas!


CRiga.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Juventudice hippiezinha


Forço sorrisos bobos pra devolver
estes hippies pirulitos coloridos
enjoativos
dos olhares que perguntam
“tudo beeem?...”.

Forço bons ouvidos pra ouvir
os “tudo bem, grãçãs a deusss...”,
feito gravador com defeito
que também erra no auto reverse:
“grãçãs a deusss, tudo bemmm...”

Tenho melancólico orgulho
da minha infelicidade aparente.
Ela não mente, não precisa
e não quer mudar o mundo
nem ninguém.

CRiga.