segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Montanha russa


Você quis o perigo,
flertou sem admitir o medo.
Depois da subida, a queda –
mas uma hora
tudo vai parar.

Daí de novo você vai querer provar
que, ainda vivo,
não tem medo do perigo.

Tristeza maior é não arriscar,
pior é morrer ainda respirando
mas ruim é viver
também perdendo o ar.

CRiga.



domingo, 29 de dezembro de 2019

Mais dia, menos dia


Ela desce a rua
triste moça bonita
que ensaia de soslaio um olhar.

Mesmo assim a vejo sorrir
(porque talvez eu queira ver).
Vejo insistir vencer o dia
a melancolia –
amor pra outra vida.

Eu não duvido, ela me grita.
Mas sua voz se perde no sol na manhã
no silêncio de uma doce resignação:

mais um dia...

CRiga.



sábado, 28 de dezembro de 2019

Quatro da manhã


Os caras brigam
na mesa ao lado.

Tereza assiste
impassível
à tristeza vencer a madrugada.

Mesa de bar
em qualquer lugar
é sempre o palco
dos imperfeitos corações.

CRiga.
(Caderno Azul - 1999)



sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Efeito colateral


O soldado na trincheira
chora
a saudade da terra prometida.

Ouça o vento chorar também
e tenha tempo de ouvir
cada lamento.

Folhas de árvores mortas.
Flores boiando no céu.
O ar é raro.
A paz é cara.

A moça no jardim
implora
e a chuva não chora por bem.

A velha na cama
conversa com a luz
e Deus desliga o interruptor.

CRiga.
(Caderno Azul - 2000)



quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Coquetel molotov na porta dos fundos



O incrível da balbúrdia que incendeiam
é que você pode parar
e escolher
ver ou não
acreditar ou não
sorrir ou não.

Só não pode usar a física-química
da força gasolina
pra machucar
ou pra impor.

Rir é melhor que odiar.

CRiga.



Noêmia, a boêmia do Bom Retiro


Descobriram tarde:
Noêmia
era mulher de um homem só.

Se morreu trancada, tranquila
quimicamente tranquilizada,
descobriu cedo a chance de estar ao lado
do seu grande amor novamente.

O médico sugava seu dinheiro,
e o psicólogo só queria comê-la.
Todos queriam, e ela dava,
pra ela tanto fazia
cheia ou vazia:
ninguém preenchia o seu coração.

A última pílula foi abençoada
pela garrafa de vinho tinto intacta
presente do amigo Deise
de dois anos atrás:

“como Oscar gostava de vinho...”

Bebeu a garrafa inteira.
E ela caiu. A garrafa caiu.
Os cacos cortaram seus pés
e as janelas se abriram com o vento,
tempestade no apartamento.
A chuva encharcou o velho tapete
e um raio estalou entre seus olhos.

E Noêmia 
simplesmente nada sentiu.

Nem a dor nos pés
nem o frio pelo corpo todo nu
nem medo da amiga tempestade
nem castigada pela chuva colega de esquina
nem cega, nem viva, nem torta.

Nem assim tão morta...

A porta se abriu dois dias depois,
arrombada:
foto de Oscar colada ao peito
olhos estalados e um sorriso leve.

Descobriram tarde que Noêmia
que dava pra todo mundo
e que gargalhava feito trovão nos bares
e que roubava os corações dos homens,

era mulher
de um homem só.

Noêmia,
a boêmia do Bom Retiro.

CRiga.
(Caderno Azul - 2000)

  

Os garotos guerreiros


A vida que segue
também mede a resistência.
Se tem medo, nem vai –
fica em casa debaixo do cobertor!

Até que o barulho ensurdecedor
das crianças brincando na sala
te derrube da cama e da ilusão:

são elas as donas de sua vontade
dos seus passos, dos seus medos.

Quando eu era moleque
brinquei sozinho de matar dragões.
Meus meninos dizimam exércitos
num jogo de computador.

Diferenças não fazem diferentes.
Por eles suporto qualquer guerra,
não há terra que eu não vasculhe
procurando risadas, sorvetes
e as doces conversas do jantar.

Fossem comigo ao campo inimigo,
cantariam, contariam piadinhas.
A batalha seria mais linda e leve,
seria breve, e a gente venceria.

A gente voltaria tomando sorvete,
contando os dragões que tiveram fim.
Quando eu era moleque, faz tempo,
sempre quis guerrear assim!

CRiga.



quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Nem sempre é o fim


Medo que nada,
passa.

Tem gente que encara.
Tem gente que morre.

Tem gente que nada de braçada.
Tem gente que precisa de boia
ou salva-vidas.

Tem cavalo que passa.
Tem cavalo que atropela.

Ninguém vai te dar o que queres,
nem a vida e nem a morte.

Pura sorte,
devolva um sorriso no ar –
o azar é o cego
que só quer ouvir o sim.

O fim do ego
engole o ego do fim.

CRiga.



segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

O desafio


Quando a folha começa
em branco,
um traço, um tranco
começa a história.

Pode ser uma memória de infância
até um amor que passou.
Mas o pulso quer insistir, correr
machucar o papel com a ponta do punhal –
vale também com caneta especial.

À luz de velas, luz elétrica
vagalumes ou olhos de gato.
Sobre o apoio da mesa riscada do bar,
sobre a capa do velho vinil
do flash back que não toca mais.

Basta não ter medo do branco
ninguém é santo nem demônio
todo mundo amou e odiou
sorriu, chorou, morreu um dia
renasceu no outro contando
como é ardente aquele inferno
ou como é chato aquele céu.

A nossa vida tem todos os defeitos,
os pesos que nosso papel pode suportar.

Mesmo o borrão da lágrima que cai
escreve o tempo que o espírito precisa
pra se reencontrar.

Desafio é encontrar palavra
pra alma que é certeira,
mas sem simples tradução.

Quando a folha termina
escrita,
ela não imita
nem nunca encerra a história.

Insista.
Queremos ler-te linhas,
ver-te vencer os brancos.
Traduzir-te.

Para Danilo

CRiga.



sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Garota de escritório


OK, nós não temos o mesmo naipe.

Você é boneca, eu
o velho, beberrão e safado
soldadinho de chumbo do Paraguai.

Você é seda, eu
a palha do milho, e não é tabaco
o enrolado no cigarrinho.

Você é idealista, eu
desisti de me atracar com ideais,
atracar mesmo só se for
numa cama com você.

OK, nós não temos o mesmo “taime”.

Você tem uma palavrinha em inglês
pra cada simples ação do seu trabalho,
eu, no máximo um dead line
até tirar a sua roupa depois das cinco.

Nós não temos as mesmas intenções.

Você quer subir na vida à custa
do que não consigo entender,
eu, subir teu corpo a qualquer custo
dos pés ao pé do ouvido
te dizendo as imoralidades que nos fazem,
enfim,
cada um a chama que nos mantém.

Não temos a mesma chama.

Mas me chama, meu bem,
me grita, me domina –
naipes, taimes e intenções
eu jogo no lixo
só pra te ver sorrir,
só pra te fazer feliz.

CRiga.


quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Litoral


Roubei do frevo teu sorriso
levei trevo de oito folhas
batizei um riacho escondido
com teu nome que corria comigo
na correnteza louca maravilha
fugindo dos piratas de gravatas.

Na ilha enterrei o tesouro
e pus bandeira de conquista
fundando nova pátria amada:
você é meu país de estrelas
meu velho novo continente
planeta azul da minha galáxia.

Babe, vem instaurar o novo farol,
à deriva minha nau ainda é tua!
Vem nua que eu te visto, babe
meu amor é pele e sagrado manto
e santifica teu corpo deusa da areia
fazendo teu templo à natureza bela.

CRiga.
(Caderno da Ilha - 2000)



quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Vila Carrão (velha casa)


Todos os cantos, cheiros e detalhes
naquela hora
invadiram a minha memória.

E era como se o passado todo passasse
a mil pelos olhos
querendo arrancar a lágrima.

Saudades estampadas nas paredes!...

Todo mundo já sentiu coisa parecida
e não dá pra não pedir licença
e não pecar pelo clichê
de confessar casos, rumores
e continuar com a vida.

Casas novas, paredes brancas
sem memórias.

CRiga
(Caderno Azul, 2001)



terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Hóstia craquelenta


Há um desafio pior.
Contra si é difícil vencer.

Ver auroras nubladas distanciarem
o verão dos dezembros.

Ver a hora passar sem lhe dar
razão de ser.

É uma batalha.
A história inspiradora fica chata.
Você fecha com raiva o livro.
Tempo perdido.

E eu não tenho tempo.
Na verdade, o tempo me corrói.

Me transforma ratinho no canto da casa.
Suspirando, transpirando, esperando.

A ratoeira enferrujou. O queijo já mofou.
Há portas sempre fechadas
porque penso ser pequeno.

A porra do livro chato foi que me disse!

Mas eu prefiro o céu nublado
a acreditar que o sol
é o sorriso de algum deus.

Meus desejos são confusos.
Não me venha então onipresente
querer me empurrar
aprender à força a voar.

está fechado, fitas amarelas da polícia.
Eu assassinei há muito tempo
o pastor, o carpinteiro
e o cientista.”

CRiga.


Arqueólogos


De olho na vida à vista
parti navio quebrado ao meio
naufraguei, virei peça de arqueologia
no fundo do mar gelado.

No convés ainda os violinos
conversando com baleias tristes
e delfins cujos olhares profundos
procuravam brincadeiras
e crianças que não nasceram.

Demora um tempo até a tecnologia
chegar ao fundo do mar gelado
e resgatar quem sabe um tesouro.

Demora um tempo até descobrirem
os segredos e sonhos naufragados
no fundo deste coração quebrado.

CRiga.
(Caderno da Ilha - 2000)



segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Horizonte


Entre ser e estar
quero o passo a passo, passear
paralelo às coisas grandes.
Grande coisa ser um importante,
estar a todo tempo em todo lugar.

Menos ritmo, mais cadência.
Menos dessa dependência,
mas sem precisar levantar espada,
apenas a velha enxada na terra.

Não dever nada a ninguém
olhar nos olhos, dizer das coisas que sei.
Aprender o que quero
não o que querem me convencer.

Eu insisto me despir.
Despedir-me deste lugar,
me despedir.

CRiga.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Roda de capoeira


Dança que é luta, camará
a gente precisa dançar.
Luta que é dança, camará
a gente precisa lutar.

Se faltar água, a gente chove.
Se a gente chora, a gente ora.
Se tem dor de amor na roda
a gente dispensa num rabo de arraia
dança na praia pra Iemanjá
luta na área até cansar.

É preciso lutar, camará.
É preciso dançar, camará!

CRiga
(Caderno da Ilha - 2001)

(foto de Cauê Rigamonti - 19/06/2010)

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

As luzes do meu Natal



Quero tocar o veludo da folha
digitais em eletricidade
provocando raios sem tempestade.

Quero fugir desta cidade!

Refletida na parede branca
do alugado apartamento,
a luz que pisca no lusco-fusco
é o Natal
que sempre chega adiantado.

CRiga.



Classificado de jornal


É preciso escrever uma poesia.
De dia, na noite quebrada
na esquina cacos de vidro
viram diamante.

Precisa-se de um poeta
dizia a placa à entrada –
o bosque verde verde
cheiro de mato molhado.

Um poema no guardanapo
caso você sinta aquela imensa
necessidade
de viver de novo.

Um classificado de jornal:
“alugo vagalumes –
pago com letras a vista
que enxergar só poesia”.

CRiga.


Drummondear

Tudo é um poema.
Um sal diferente
ou açúcar de gente.

Um canto desencanto
bonito que dói.
Ou sutileza da beleza
quão incomunicável que arde o pulso
na busca da mais perfeita tradução.

Punhal invisível atirado à multidão
contra a alma sempre aberta.

E quem não acerta desconhece
a graça que a poesia tem.

CRiga.


Uma noite de cárcere


Quando a barra da cela da cadeia
cravou-lhe feito pedra de bodoque
o fundo do peito,

a manhã foi a correria louca de volta ao lar
sem beijo de bom dia ou de desculpas à esposa.

No quintal dos fundos
como que o guarda que lhe abriu as grades
lhe devolvendo a liberdade,

correu descerrando as porteirinhas das gaiolas
agora símbolos da opressão.

“Você não sabe o que é estar preso!...”

Passarinhos coloriam a nova manhã.

Para o amigo Danilo

CRiga.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Traição


A paz não é algo tão perfeito assim.
Você a pega com carinho às mãos
feito pomba branca
mensagem da nova era.

E no dia de sol perfeito
solta na mais bela esperança
de um grande feito histórico,
um poema de livro escolar.

E ela voa, meu camarada...
E ela vai altiva, símbolo cafona.
E de repente ela olha pra baixo,
sorri de canto e apenas suja
o terno do teu domingo perfeito.

CRiga.