segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Crônica da saudade que ainda não foi


Eu hoje sonhei que barbeava meu filho. O rostinho era o mesmo, de criança, suave, bonito, pérola de infância aos 12 anos. Apenas alguma “barba” havia, lisinha, e eu era só o medo de lhe cortar. No final deu tudo bem: barba feita, sem machucar. Seus olhinhos azuis me encaravam sérios, sua meninice que sempre me comove me deu força. Afinal, sonhos são assim, estranhos, mas que te pegam de alguma forma.

Acordei, e eu era agora uma triste sensação, o dia em que não mais terei aquele rostinho de criança para olhar, beijar, acariciar. O dia em que seus olhinhos azuis poderão ser apenas os olhos perdidos de um rapaz procurando identidade ou minhas lâminas de barbear. O rosto do cara desviando do meu na festa que não será mais minha, à procura do que será seu. Será o momento em que caída toda a areia do tempo, a ampulheta revelará depois do vendaval da idade: tens pouco o que lhe interessa.

Corri ao seu quarto, cama vazia, ele este ano começou a estudar de manhã. Acorda mais cedo que eu e a mãe, arruma suas coisas, um copo de leite com chocolate, pega a blusa em nosso quarto e corre pra pegar a van que ele reclama nem conseguir fechar a porta, observado pelos adolescentes com olhares sonolentos de irrelevância. E me veio de novo a brisa fria de uma futura solidão: a saudade do tempo em que eu poderia dizer bom dia, boa aula, eu te amo. Depois será boa tarde, onde vai, fica em casa conversar, eu tenho um conselho, deixa eu te falar...

Tomei café, fui trabalhar. Ritmo forte, correria, muita ideia pra ter e executar, o dia a dia que te toma os sonhos e a essência. Mas no meio da tarde, um estalo, me veio a imagem de meu filho e seu rostinho de criança. Parei tudo, parei aqui: será que um dia precisarei ensiná-lo a se barbear? Será que um dia vou me perdoar pelo tempo que insisto em perder?

Mas o engraçado mesmo é sentir saudades do que ainda não foi. Meu filho hoje vai dormir mais cedo, e eu preciso lhe encontrar. Amanhã eu preciso acordar mais cedo, e que bom: ele ainda não precisa se barbear!

CRiga.

sábado, 28 de setembro de 2019

A boca


Quando cala, instaura a dúvida.
Se fala, é preciso cuidado –
inclusive para ouvir.

Pode declamar poemas
ou xingar o motorista.
Dizer que ama,
que tome cuidado na estrada.

Quando beija
no rosto é carinho.
Nela é paixão!
Às vezes só selinho
de carinho com paixão.

Engole sapos e outras bocas,
mamilos e mangas da estação.

Faz biquinho na selfie
e não sabe se portar
sozinha no metrô.

Quando se abre gargalhando é piada boa,
ou, no desenho animado, é o vilão –
hoje criança tem medo da bruxa má?

Quando sorri é tanta coisa...
Gentileza.
Leveza.
Amor.
Sedução.
Felicidade.
Lembrança boa.
Um “olá”.
Um “tchau”.
Mal difícil ser.
Geralmente é muito bom.

É maldita, é da noite.
Cochicha preces na igreja.
Grita um nome ao portão.
Serve pra ir a Roma
ou pra puta que pariu.

Sozinha sente a lágrima correr salgada
e engole o choro disfarçando a dor.

Às vezes nunca falou
e as mãos fazem a vez
e a voz.

Às vezes fala demais
inclusive com as mãos –
que digam nossos italianos!

Bate com ela é baixaria.
Dela pra fora pode até não ser sério,
mas às vezes magoa.

Pode dizer sobre tanta coisa boa...
por que então maldizer,
querer estragar os dias?

Dos buracos da cabeça
é o único sem par.
Mas quando pareia
incendeia!

Numa ceia dizem que traiu.
Em outros tempos tristes
entregou inimigos à fogueira.
Hoje engana fiéis
com fome de Verdade.

E canta!
Inclusive, paquera...
Morde e assopra.

Dilacera
por ódio
e por amor.

CRiga.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Cinco minutos pra desmofar


Ferve a engrenagem na cabeça,
palavras que me darão o pão.
Me darão o não te escrever
a vida métrica harmonia.

Não é obrigação desmofar.
É óleo pras roscas industriais
girando, girando
macetando miolos até cansar.

Eu preciso dos cinco minutos
depois do despertar em plena tarde –
é a fumaça que denuncia
a exploração da fábrica de palavras.

Eu preciso dizer que não sou assim,
que não tenho os pés no chão
mas que caminhei até aqui.

Um dia a menos me dói
deixar de te dizer
as coisas que ainda sei muito bem.

Engrenagens falham, vão pro ferro velho.
Que delas então se façam as esculturas
do museu da praça de guerra.

Na terra eu planto um novo morango
e um amigo meu deve me responder
se quarenta e quatro primaveras
têm a força de fazer florescer.

CRiga.


quarta-feira, 25 de setembro de 2019

...o infinito!


Enquanto digo que leio Drummond
acho que você lê nos meus lábios
que eu queria mesmo
era roubar um beijo teu.

Roubar, não...
Talvez entre o pronunciar de “pito”
e “infinito”
apenas capturar o teu rosinha batom
num toque (ainda) sem o desejo da carne.

Depois emprestaria o livro com uma condição:
de nunca me devolveres se não quiseres
que eu roube-capture novamente
aquele teu beijo antes do infinito.

CRiga.


terça-feira, 24 de setembro de 2019

Parêntese


Cada um morre ao seu jeito e gosto.
Há o silêncio de cada manhã que mata.
Rouba as palavras. Sufoca.
Morrer é também ter que repetir poemas
num mofado blog de solidão.

CRiga.

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Ampulheta


Observo e desejo,
tudo são apenas ondas.

E não percebo que a areia
praia da juventude
um dia acaba cedo demais.

CRiga.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Pau oco


No meio da praça penitência
na silenciosa romaria
à escadaria da catedral,

não me bata a carteira
não me roube a certeza
que o meu tempo já passou.

Na via crucis ainda há uma oração
que precisa seguir cega, sem rancor.

Tire sua juventude do meu caminho
que eu quero passar, muito devagar,
quero te comer com os olhos
aqui do alto do meu andor.

CRiga.


quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Insepultos


Somos culpados por esse gosto de vinho seco
que morre na boca sem o beijo.

A sensação do fogo contido
do erro, do engano fingido,
do gaguejar, do quase chorar num corredor qualquer
da vaga memória do coração partido.

Tua foto de óculos pra disfarçar o passado
e minha foto sem espírito, com sorriso universitário...
Cicatrizes que teimam sangrar marcando passos.

Somos condenados
por esse morto enterrado em cova rasa,
sem justiça, sem defesa.
Jaz na terra um aro preto já quebrado.
Jaz na lápide um sorriso triste desbotado.

Tempos assim de triste outono,
da terra fofa nascem as letras cinzas,
plásticas flores que a gente sempre rega.
Então ao pé da cova a gente para e reza
queimando as testas nos tocos de vela.

O sangue e o vinho se misturam na lama
depois de a chuva densa encerrar a tarde.
É a hora de apagar as letras e podar as flores,
apagar as velas e podar as dores
fugir às pressas e chorar baixinho.

Pois somos apenas os culpados
por esse gosto de passado insepulto
gosto seco
feito o beijo que a gente não deu...

CRiga.


quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Doux guillotine


A paixão move à arte,
o amor eterniza a obra.

A paixão escreve a história,
o amor mantém os mitos.

A paixão coroa os gritos,
o amor sibila a paz.

A paixão é o az da rodada,
o amor é o rei do jogo.

A paixão corre solta no pó da estrada,
o amor sopra tranquilo na alma da brisa.

A paixão é a tempestade,
o amor é a casa no campo.

A paixão destrói a fortaleza,
o amor instaura o jardim.

A paixão faz bater nas paredes
a cabeça que insiste pensar,

o amor
a decepa de vez.

CRiga.

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Documentário


O que é lixo pra tua lente
é leão que mato na tua frente
em apenas mais um dia
dos meus apenas dias.

Só que eu mato um leão, mermão,
mas não mato a fome não...
Remexo lixo, machuco a fome,
olha os home!

Corre logo ou vai preso,
come logo ou vai morrer mais cedo
mais esperto, muito perto
daquela lente da premiada indiferença
e do leite a salvo feito sentença
ao lado da porta sempre fechada.

Captou a melhor imagem?
Que bom, posso seguir sossegado
roubando o tíquete premiado
pra estreia da tua movimentada sessão.

Daí não chora não, mermão –
tudo será só leite derramado,
sucesso garantido
nos gringos festivais.

CRiga.


segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Paredão


Inteligência mata,
café também.

A burrice é mais bonita,
não compromete assim ninguém.

A vida é que é bárbara,
mas há quem aposte helenas na tevê.

Ninguém mais vê ninguém.
Ninguém sabe mais do caos,
dos maus, dos bons.

Eu quero ir embora,
esta zona não vale mais.

Eu quero ir agora,
fugir dessa santa escola
onde cabeças não vão rolar:

elas estão demais ocupadas
assistindo ao Big Brother
no grande dia da eliminação.

No paredão,
dizem que entregou artistas
à caça de comunistas.

Dizem que copiou o grande irmão
de um colega russo, sem perdão.

Dizem que visitou exposição
de homem nu.

Que cuspiu na cara gritando histerias
atropelando o vermelho do sinal.

A vingança veio, véio
vamos votar,
vamos esperá-la para o jantar.

CRiga.


sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Uma fuga pra Hollywood


Opa, legal,
então vamos ao cinema!

Talvez o cara bonitão
te faça um segundo feliz.

Porque em casa, na hora de dormir,
talvez o mala da sempre mesma história
te açoite calmo
aquela cicatriz.

CRiga.


Vácuo


Quando eu grito
eu não existo.

Eu nunca grito.
Eu nunca existo.

Eu queria gritar
existir
resistir.

Eu não resisto
e morro no silêncio.

Eu existo no silêncio
num morro onde não há eco.

Quando eu respiro acordo monstros
e morro antes de gritar socorro.

CRiga.


Mamãe não quererá


Há o fato –
o fato de eu ser
podre.

Então eu te devolvo
o silêncio.

Se não queres
o podre,
o silêncio,

então me deixa ir cantar
gritar
desmofar o silêncio
que ainda me anula
nunca coagula.

Há o fato –
eu sou calado.

Então só me resta
no fim da festa
te devolver o meu silêncio
meu lenço sem perfume
meu documento sem grana.

Só nos resta
o lado gelado da cama,
a solidão de quem mais não te chama
para dormir.

CRiga.



quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Drops


Beijava o drops cereja
com promessas de para-sempre.

Mas o para-sempre perdeu o gosto,
e no bolso coube a vida inteira
dentro da carteira, uma foto desbotada.

Relançaram o drops nesse verão.
E eu não beijei,
só lembrei...

CRiga.


quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Cafajestes


Eu me vejo manchando o teu vestido de casamento com o vermelho sangue de meu ciúme doentio – calma, sem páginas policiais: apenas a taça do vinho que a gente não tomou porque você estava tão atrasada pro fatídico dia da noiva, eu te dei carona e nem cobrei a gasosa. Então vai meu bem ficar tão lindamente atrasada pra gente brincar de rasgar vestido no ato consumado da festa da tua felicidade muito bem disfarçada pela pesada maquiagem cara, champanhe e padrinhos que gastaram uma graninha besta em presentes pra te ver feliz nas fotos do futuro álbum. Nem aquela cena ridícula de novela das oito existe mais nas igrejas pra eu te condenar, aquela que o padre pergunta se há alguém que tenha algo a dizer contra esse casamento que fale agora ou cale-se para sempre – diria mataram o mensageiro do amor com um tiro certeiro no peito, e, menos poético, teu noivo comeu tua prima por trás na tua cama ainda quente de manhã enquanto você tomava banho, tua família é uma farsa de corruptos e gente de passados duvidosos, você é a única que presta um pouquinho pra uma traiçãozinha nada demais antes do casamento... Mesmo na Santa Igreja não saberia mentir tanto. Casamentinho de merda! Me devolve então a grana Maria gasolina, Maria mãe de um deus que não acredito, Maria vai-com-as-outras-foi-comigo, ah, Maria! Eu te amaria tanto se você não dissesse sim, carregaríamos garrafas pelas ruas e cairíamos esquinas pelas noites sem fim até que alcançássemos a cama mais uma noite, a gente gritando urros de prazer na madrugada até o amanhecer te chamar praquele empreguinho de merda e o meu eterno vagabundear fingindo trabalhar numa redação de jornal. E só te trairia com escritos mais românticos, não marginais. E você se ofenderia. E por vingança finalmente se casaria, certa de querer ser eternamente infeliz.

CRiga.


terça-feira, 10 de setembro de 2019

O gatilho


Ainda a fórmula drástica: os perdões perdoam até a memória eletrificar os neurônios e desejarem apenas que a tua morte seja digna. Comparecerão ao teu enterro e até chorarão uma lágrima sincera, mas os cochichos dirão que porque morreu não se tornara santo. Nem tenho esta pretensão.

O perdão é uma coisa muito foda de cada um – na verdade, ele não existe. Pior é não conseguir se perdoar. Preciso extrair disto um bom epitáfio – quem nunca não perdoou que puxe o gatilho da mágoa e aponte o dedo diminuindo o diminuto eleito culpado. Faz bem não perdoar. Bem pra quem, não se sabe bem.

Mas concordo com o meu imperdoável, sou dele a alma que não descola do corpo putrefato. Por isso sigo amável. Um eterno olhar de bezerro doente. E uma fúria de tirar o fôlego até a alma sufocada entulhada no canto da casa lembrar-se que viver assim é estar sempre só e tudo bem. Deixe-me chorar os bons passados que sei que também não me perdoarão. Eu não tenho mesmo saída.

Nem gatilhos tenho direito de puxar. Eu aprendi comigo a perdoar de tudo. Menos a mim mesmo.

CRiga.


segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Trafiquei na esquina um feliz aniversário


Dedo na garganta e apropriação devida de coisas que não são minhas. Roubo mesmo se isso me faz bem. Todos eles roubaram de alguém e ocultaram o crime embelezando a boneca com batom de vinho seco e barato, aquele que escorre no canto da boca de riso artificial e plástico manchando a pele feito espancamento pela metade.

E eu espanco mesmo neste dia, arranco sangue, crio clássicos hematomas de inocência. E um texto roubado no final não é nada que não se possa se explicar na posteridade.

Enquanto isso declaro às autoridades ter visto tua foto três por quatro, guardada, culpada pelo crime, desbotada na carteira velha - meu coração não é selvagem, é apenas marginal que comete crimes, acusa inocentes e oculta cadáveres.

Inocente? Você foi embora roubando meu disco do Elvis por causa de Suspicious Mind, apropriação devida. Apropriação de vida pra sobreviver sem mim na marginalidade.

Feliz aniversário, mas vou ter que te matar mais uma vez agora. Deixe que noticiários contem as mentiras, porque a verdade nós dois sabemos: ninguém morreu, meu bem, ninguém. Textos renascem todo dia e os discos estão voltando à moda. Menos nós, sobreviventes sem graça, grafados perdidos sem valor nem moral, feitos classificados de jornal.

CRiga.


sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Sexta nublada e nenhum lugar


Me mata esta falta.
Paixão. Inspiração.
Trabalho, grana,
uma mão e um elogio.
Paz. Horizonte verde.
Um conselho, não ataque.
Alguém que diga sorrindo
que tudo acaba bem.
Então me mata! Esta falta...
Então me fala, falta bala?
Crianças que têm fome
também querem sobremesa.

CRiga.


Ponto de desencontro


Só te chamei pra perguntar se é só eu quem sofre essa dor de desencontro. Se é sou eu quem sente esses sinais do tempo, nos sonhos, quando a gente se encontra e acorda triste, feito coração partido pela metade. Se só sou eu quem se sente boiando num céu azul de missões, feito enfeite pendurado no teto, de lá pra cá, à mercê dos ventos que entram pelas nossas janelas abertas. Por favor, fique e me diga que não sou eu apenas quem espera um dia, nesta vida ou não, estar ao lado da alma dos tempos imemoriais.

Sim, isto tudo parece loucura, é muito mais poesia romântica que sensatez, tudo bem: não precisa se sentir sem jeito por atender ao chamado de alguém que você não via há tempos, alguém que não consegue deixar-te apenas sobrevivente. Não me olhe assim, com esse rosto de quem quer condenar Nero à própria fogueira, e fugir deixando para trás as cinzas que também são suas. Eu sei que você se disfarça como eu, à espera, à espreita, de longe, não quero nem te desviar de qualquer caminho que te faça segura sobrevivente, apenas quero uma resposta que nos conforte por ora, o resto de nossas vidas.

Eu só quero saber se você também sente um coração nublado de vez em quando, quando você acorda, uma vontade de uma lágrima apenas no canto do rosto gelado pra lamentar essa ausência de você mesmo. Só quero saber se você também carrega consigo estas mesmas saudades do que nunca foi, mas com rostos e almas tornadas penduricalhos brilhantes naquele teto azul de um deus sozinho lá em cima, brincando de missões.

Se você não quiser responder, tudo bem... Vamos voltar à vida de sobreviventes com sorrisos e afetos fáceis e outros sinceros também, de luta intensa no silêncio descomunal e confortante de deuses solitários, perambulando por aí de jeans, tênis e óculos de aros pretos, procurando sentido nas fáceis multidões. Vamos voltar aos nossos tetos reais sem penduricalhos, sonos pesados de cansaço, sonhos de veludo, manhãs de cheiro de asfalto molhado e luzes amarelas refletidas no chão dando o tom de desencanto pelo resto do dia. Pelo resto da vida.

Vamos enfim lamentar este encontro ou apenas beber ao reencontro cômico regado a fantasias sinceras. E vamos rir disso tudo então, dizer como seria se você tivesse voltado a passar naquela minha rua, como seria se eu tivesse dado a resposta sincera e não aquela defensivinha de garoto bobo. Comemorar como a vida é louca, esse vaivém de gente que nos invade e que parte sem dizer adeus.

A gente então pode rir alto feito gente feliz, e não precisamos nem mais tocar nesse assunto tão amargo e perigoso. Forçando a hora de ir embora, vamos olhar nos relógios procurando muros, trincheiras e saídas de emergência nos ponteiros. Vamos fugir dessa situação embaraçosa e caótica de falar sobre coisas e tempos que precisam ser descoisadas e arrancadas do DNA das horas. Vamos fingir olhares apressados mas saudosos, firmes na despedida. Vamos nos despedir apenas com um tchau, foi legal, enfim...

Ou vamos talhar com o punhal seco dos tempos a ferida, olhares molhados, bocas trêmulas e mãos dadas sobre a mesa do bar vazio. Vamos escancarar essa doideira de sentir saudades do que nunca foi, mas deveria ter sido não fossem os ventos na janela sempre aberta daquele aventureiro deus onipresente. Vamos amaldiçoar os desencontros e admitir que não estamos mais prontos pra reconstruir passados que não passaram. Vamos apenas pôr na mesa essa intensidade de nos sentir almas tão ligadas no tempo, que se encontram de quando em vez nos sonhos, em outra dimensão. Vamos fazer um pacto sem prazos nem condições – apenas de confiança em planos divinos e seus penduricalhos brilhantes que só precisam de polimento. Vamos chorar de verdade. Vamos chorar a verdade. Vamos esquecer da verdade.

E vamos embora, enfim, apenas demarcando território: eu sou seu, você é minha e ponto final, os desencontros a gente resolve depois. Um brinde, meu amor, um brinde aos nossos desencontros necessários à sobrevivência da poesia e dos doces barulhinhos que fazem os penduricalhos do teto de deus, quando bate um vento de saudades e eles se esbarram no seu céu azulzinho de missões.

Adeus, meu amor, até mais, até o próximo vento de janelas abertas. Até o teto azul finalmente nos soltar e cairmos ex-penduricalhos, mas de pé, sem mais necessidade de polimento e de desencontros. Apenas nós, um encontro marcado, sem segredos, e uma casa com penduricalhos de anjinhos à porta. E aquele doce barulhinho à leve brisa, na varanda, aos finais das tardes que finalmente serão nossas.

CRiga.




quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Eu não tenho os pés no chão


Eu caminho sobre ovos,
e você não precisa saber quem eu sou.

Definitivamente sob esta casca arcaica
de um homem que sabe bem o que quer
há um carinha aí...

Que coloca “Estrangeiro” do Caetano no vinil
mas que gosta também de “Estranged” do Guns no CD.

Um viajêro solitário
nas canções de 11 minutos.

Que procura textos nas velhas anotações,
mas que pulsa vermelho a invenção de novas paixões.

Que ainda se enrubesce
na frente da garota mais bonita.

Eu não ando sobre o teu asfalto.
O meu é o molhado pela chuva –
há o cheiro, o som do pneu contra o solo
às noites de agradável solidão.

E uma sensação docemente melancólica
alcoólica, etérea,
sou um bobo feliz
estereofônico.

Meu velho walkman ainda passeia
sua luzinha vermelha
na noite destes bestas dias de semana.

CRiga.


quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O segredo entre os lábios


À busca-captura do espião,
anarquiza, devassa,
e na ponta da língua
arma a louca peleja de esgrima.

Depois denuncia, devaneia:
boca no mundo, sorve o abrigo,
o doce crime sabor pêssego morno
ou veluda manga da estação.

Na invasão incendeia o esconderijo
consumindo os segredos quentes,
e o fogo toma todas as paredes
até a queda depois da explosão!...

A chama que resta, então morna,
só emana saudades metafísicas...
a relva molhada, o cheiro de chuva,
o gosto da fruta que sacia.

CRiga.


segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Quarenta


Agulha travada
na sujeirinha do velho vinil –
uma nota só no solo triste de uma guitarra
e num grito mixado de solidão.

Meio emeéle
no vidro do perfume francês –
um cheiro só na fragrância de perder os rumos
insistindo em guardar lembranças.

Fotografia desbotada
no bolso do surrado jeans –
uma cor de pó gritando no assoalho comido,
um nome rangido, abafado.

Botão de rosa pendurado
no caule quebrado do abandono –
plantas revirando em nó no sedento jardim do quintal de pedra
invadindo a casa, um dia lar.

Morri, vivo,
procurando tolos atalhos
nas coisas que mofaram,
nos objetos sem objetivos.

Um dia desistiram de mim,
sem me avisar, não foi por mal –

sexta-feira eu programo
meu próximo inferno astral.

CRiga.