quarta-feira, 31 de outubro de 2018

terça-feira, 30 de outubro de 2018

O idioma do desejo


Não adianta chorar
sobre a bebida derramada
na noite dos cantores.

Bebida doce,
e a menina enrolava a língua
num púbere castelhano
e num inglês de pop sueco
moreno latino americano.

Nem teve a chance
de enrolar a língua
também por doce embriaguez!

Não adianta se desculpar
pela espanhola derramada
entre os beijos, línguas
que não queriam tradução.

Queriam apenas a luta ardente,
entre as bocas, o desejo –
único idioma então corrente.

CRiga.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Púbere ventura


Enquanto ganham a vida singela
com simples ar de cachoeira
na grama que se rola,
se enrola, fuma-se!...

...a gente se enrola mais
e os planos que a gente faz
são pra no máximo no máximo
um depois de amanhã talvez...

Enquanto a gente se reconhece,
a gente se vê – envelhece!
Vai até onde se avista
o pagamento à vista ainda nos segurar.

Parcelas são migalhas de um sonho.
Eu preferiria não ter idade
pra sonhar tão alto com um abrigo
uma cachoeira de sensações
onde o tempo não pudesse me abalar.

CRiga.



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Compromisso caseiro de vida


Fórmulas mágicas para deixar de querer adivinhar o futuro a partir dos parcos sinais de hoje. Faz tempo que não sente a apreensão do gênero operário, a ameaça dos Brasis de hoje, porém declarada apenas no silêncio dos novos vencedores. Antes, houve apenas o remoer de não se lembrar como se faz alguém feliz. A incapacidade de fazer feliz.

A incapacidade de se partir estas correntes donas do seu amanhã; de moldar o futuro dos filhos a partir de sua vontade e das certezas colhidas de uma vivência plena, independente – não de favores dos vendados olhos do poder; sermos os famosos “donos do destino” – será mesmo que existe alguém assim?

Apenas ele vê a varanda ameaçada quando este vento torto faz a madeira debater-se querendo despertá-lo da languidez. Apenas ela lembra do pito dividido da Mariquita de Drummond.

A voz dela lhe abala quando ele fala sobre seus medos. Mas a voz dela também lhe acalma, como o rio profundo que atravessa a cozinha de Adélia Prado.

“Lembre-se de nosso vinho de hoje à noite. E pare de se coçar!”

CRiga.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Poesia de computador



Precisava cortar a veia violeta
e jorrar um sangue qualquer sangue
sangue da idade, sal da idade,
o vinho é melhor mais velho
só para o velho, para o velho...

Precisava correr os bares
e manchar um caderno qualquer caderno
caderno sem compromisso,
hoje a poltrona, poesia de computador
só falta a dor, só falta a dor...

Precisava não ser mais velho
e envelhecer a essência qualquer essência,
decência menor é morrer
sem ter escrito um livro
e sem ter feito um filho.

Eu preciso plantar uma árvore....

CRiga.



quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Timidez



O ártico na boca do estômago é simplesmente te ver chegar – e chegou, com atraso, um arraso entrando na sala!

A aula passa, eu olho, você conversa, a professora chama sua atenção. Você apenas sorri, recolhe o corpo à carteira e finge que não foi com você.

Foi pra mim que sorriu? Acho que sim! Acho que não…

A aula passa arrastada, e eu engulo seco esse coração que corre tão descompassado - sabe aqueles desenhos animados em que ele pula da boca com uma mola pendurada da garganta? Engulo mola, coração e coragem.

Finalmente o sino bate, é hora do recreio: agora é fogo gelado no peito, a espera, a ansiedade - o bilhete escondido na tua mochila, ninguém vai ver.

Depois do ensaio de espião de filme da sessão da tarde, saio à sua procura, eu trouxe um lanche a mais pra dividir com você. Só que você só anda dando voltas no pátio junto a colegas, passa fria por mim, não para nem prum oi. Acaba o recreio (pareceu apenas um minuto!), e na volta, em fila pra sala, todos sentam em suas carteiras e eu só continuo olhando pra você aquele olhar quase baixo, torto, peixe morto.

Esperança: trabalho em grupo! Cruzo os dedos, é a professora que vai montar. Vamos lá!...

Decepção! Mais uma vez não ficamos juntos. Será que um dia vamos ficar?

Vejo então seus dedos passearem por dentro da mochila procurando não sei o quê, desfilam, reviram, puxam o caderno – e lá se vai meu bilhetinho secreto ao chão! Um “não...” sai meio mudo da minha boca, a professora observa, pergunta o que foi.

Não foi, professora... Talvez nunca será...

CRiga.



terça-feira, 23 de outubro de 2018

Desvencilhar-se


Carrego sacos de areia em cada tornozelo
areia da velha ampulheta, tempo que passou.

Ardem na pele vermelha a inconsciência
dependência
a espera pelo perdão de fato –
vá viver, me deixe, se deixe
se mexe, pare de se coçar.

Estou na missão de descascar batatas
estou deixando rastros de desinteresse.
Está em crise aquele bom soldado recluso
o poeta que cura suas próprias dores.

Nem há a tal panela de pressão
nem na cabeça nem gritando na pia.

Correr as teclas letras só faz doerem os dedos
no latejar da imprecisão, uma impressão
de corrigir tantos erros a tempo.

Tempo de quem?

CRiga.


Vila Leopoldina



Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love(*)”... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Eu demorei... um namorado viria vê-la amanhã, ele gostava de Beto Guedes e Belchior. Eu não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.

(*) “29 Palms”, Robert Plant



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

A egotrip da vingança

Vou viver no limite íngreme
da minha alma que já não é tão pura.

E se você não vier de branco
feito anjo me salvar do devaneio,
vou ser mármore tão negra.

E se você não sorrir
e se você não me ouvir
e se você não me abraçar
e se você não existir...

E se você não vier?

Se você não vier
vou renascer das cinzas do que já sou.

Eu sou as cinzas que bóiam no teu ar,
que aterrorizam teus olhos sem cor
numa trágica noite de inverno,
depois do vento insano sem direção
invadir a tua casa decorada
morango de prateleira.

Só que você, metódica,
limpa a tua casa com talento,
lava o rosto petrificado
com sabonete neutro, água morna
e vai dormir,
como se não existisse o dia
que você me deu um beijo.

Como se eu não existisse,
como se eu fosse pedra vulgar
ou mármore tão negra.

Como se eu fosse ressuscitar
sem limites
no teu seguro lar tão puro.

Como se eu fosse o retrato velho
sobre a triste escrivaninha de cedro
esquecida no sótão escuro.

Como se eu fosse vírus
esperando tua hemorragia
me libertar do desespero.

Como se eu fosse o fóssil
daquele tiranossauro rex
que um dia quis ser bonzinho.

Como se eu fosse fácil,
como se eu fosse frágil,
como se eu tossisse sangue
feito poeta do Romantismo.

Vou viver no fútil limite
desta alma que só queria
ter você de fato um dia.

E se você vier assistir a meu desespero,
vou sorrir sarcástico,
dar adeus com a cabeça,
virar as costas
e voar sobre o penhasco.

E só sobrará teu eco dissonante
entre as montanhas seculares
naquela trágica noite de inverno:

“eu amo você...cê...cê...”

E ficará esperando resposta
no limite íngreme do penhasco,
e ficará esperando eu voltar de branco
feito anjo,
pra te salvar da tentação
de vir comigo devanear.

E ouvirá só o som da lágrima
contra a rocha seca,
que não ressoa eco
nem alivia a dor.

E rezará por mim
e pedirá minha proteção,

e lembrará os dias
em que nunca fui anjo
e quando roubei um beijo teu.

E desejará com a alma
eu não estar te vigiando
e continuar não sendo anjo
só pra roubar outro beijo teu.

E você viverá no limite íngreme
da tua alma então tão negra,

perdida no vale das pedras
nas mármores tão puras,

perdida nas noites escuras
que eu fundei
enquanto amei você.

CRiga.


quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Ela disparou um flash


Há perdida na ponta dos dedos
pólvora paixão contida
que nunca disparou.

Bárbara é a cega vida corrida
que mata a juventude da gente!

Triste vi refletido na tua linda lente
na tua tão jovem retina quente
apenas um ratinho com frio, todo molhado.

Sozinho na esquina, guarda-chuva furado
na tempestade confusa da meia-noite
da meia-idade.

CRiga.



terça-feira, 16 de outubro de 2018

Proibido passear na praça



Não me agradam heróis engravatados
ou muito bem barbeados, cara lisa
verniz dos bancos da igreja polidos pro domingo.

Mas também me chateiam as bandeiras coloridas
que se enfiam até num filme de ação
querendo mudar o sexo dos super-heróis.

Me enoja quem me cobra lados
quem exige assumir uma posição
entre o dedo em riste
e a provocação exagerada.

Entre as flechas podres flechas
do caçador guardião que acerta a esquerda
e do falso índio que desfila nu para a direita.

Pender de lado é morrer flechado
pregado na árvore velha da praça.

Aquela grande árvore da esquina
que desgarra folhas demais
sujando as calçadas dos senhores de bigode
à direita de quem passa com pressa.

Aquela mesma que se parece
um falo enorme capado
culpado, amordaçado, símbolo da opressão
à esquerda de quem corre da patrulha.

Sente-se à única sombra
e finja-se de morto.
Risque seu amor no tronco
e ajude depois a limpar o gramado da praça –

haverá muito trabalho, camará!
Bora reinventar
aquelas nossas mais belas primaveras.

CRiga.



terça-feira, 9 de outubro de 2018

Daltônico (segundo turno)


O diabo amassa o trigo
pra fornada patriótica,
e Deus amansa a massa
pros discursos da patrulha.

Dá de comer ao Brasil
arroz com feijão sem pimenta
um grão de conhecimento
um sorriso de criança
uma rosa perfumada
qualquer que seja a cor –

apenas flor, nada mais,
não vigie nem invada
meu daltônico jardim.

CRiga.


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Não deixe aquela ideia de poesia fugir!



Está ali, ao lado do sofá
que a gente já não curte mais.

Cerca, entrou no vaso vazio
preciso comprar uma flor.

Mata, correu pra trás da cama
não durmo nunca mais com você!

Está no quarto das crianças, brinca
elas vão correr atrás de você também.

Não deixa passar pela sala sem perceber
fiz meu cabelo só pra você.

Não joga fora assim
você pode me machucar.

Queima então
mas dois peguinhas só.

Desarma a ratoeira
não precisa mais depois de tanto tempo,

faz tanto tempo que te amo!

CRiga.



quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Debaixo da tua saia


Vou perdendo a veia violeta parra.
Do tinto vinho o melhor é o mais velho
só para o velho, só para o velho...

Vou perdendo a poesia na marra.
Vendendo palavras encaixadas
encaixotando os velhos versos
submersos.

Mudar é necessidade, trabalhar também.
O amor é um porto cujo interruptor do farol
está nos navios que naufragaram
e já armaram tempestades.

Vou remando o norte que as palavras me dão.
Sorte maior é não morrer na praia
na barra da linda saia violeta
da poesia que me guarda no cais.

CRiga.


Poema que saiu, foi embora


Descuido da rota, vou parar bem na porta da tua casa. Antes de bater sabendo que não atenderia, me recebe com flores às mãos. Vinho, uma vela sobre a mesa, o jantar está posto para dois. Eu me confesso, "sou pecador, te esqueci, amaldiçoei teu nome por onde andei". Por onde andei apaguei tuas pegadas me seguindo, eu era mais uma criança com medo da piscadela daquela negra Nossa Senhora Aparecida de barro da minha mãe.

Levanto a flor ao altar, comungo do sangue de Cristo mas o corpo eu mastigo, desaprendi as aulas de catecismo. Eu era mais puro. A igreja ainda é bonita, mas são apenas tijolos e cimento, imagens e vitrais, confessionário e sacristia, fria, fria. Eu tento me sentir em casa, não faço o mal-educado, agradeço. Mas saio à porta aberta, sigo meu caminho deixando você mais uma vez pra trás.

Zeus também me deu o vinho de Baco, um saco essa história, um porre, me embriaguei. Não tenho mais idade pra tomar esporro beático, nem mais paciência pra sair batendo cabeça nos postes à procura de reacender luzes queimadas do caminho. Eu caminho como quem não precisa fazer mal a ninguém – nem a mim mesmo.

CRiga.


quarta-feira, 3 de outubro de 2018

Cover song


Vozinha débil.
Jeitinho delicadinho.
Cabelinho bem cuidado.
Sorrisinho mui discreto.

Lindos diminutivos!

Mas no final
um bom psicodélico dos oitenta
te entorta perdida na imagem
no meu caleidoscópio.

E eu não vejo
mais que uma menina...

CRiga.



terça-feira, 2 de outubro de 2018

Juventudice hippiezinha (“gratidão”)


Forço sorrisos bobos pra devolver
estes hippies pirulitos coloridos
enjoativos
dos olhares que perguntam
“tudo beeem?...”.

Forço bons ouvidos pra ouvir
os “tudo bem, grãçãs a deusss...”,
feito gravador com defeito
que também erra no auto reverse:
“grãçãs a deusss, tudo bemmm...”

Tenho melancólico orgulho
da minha infelicidade aparente.
Ela não mente, não precisa
e não quer mudar o mundo
nem ninguém.

CRiga.


segunda-feira, 1 de outubro de 2018

O circo pelo pão


Tem que gostar,
fingir gostar
ou forçar-se a gostar.

Como a fotografia não mente
todos sorriem e se abraçam pra lente,
num mundo perfeito de flashes
e notas sociais.

Nesse circo,
ao lado da querida autoridade paralisada,
os pobres desdentados também sorriem
seu momento de glória maior.

Na manhã seguinte
apreciam as notícias do dia –

uns com seus brioches
rindo e falando mal,

e outros com o pão de ontem
trocado por foto
na coluna do jornal.

Tudo parte
desse grande teatro social.

CRiga.