quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Cometa erros



Qual a primeira coisa que você escreve na contracapa do novo caderno de anotações?

Seu nome, uma frase feita, um número de telefone, me devolva caso eu me perca por aí.

Rabisca um personagem de mangá, aquela paisagem infantil, casinha, árvore, cerquinha, lago, flor, gaivotas no sol que sorri.

Escreve as senhas pra não esquecer que você já as decorou, um agradecimento a qualquer onipresente, uma lembrança boa do dia.

A estilosa assinatura, um poema de ponta-cabeça, afinal nada precisa ser assim tão politicamente correto, o mundo anda mesmo tão chato...

Ou cola o adesivo que você ganhou no farol e não sabia o que fazer, é bonito e te dá aquele ar de militante das boas causas urbanas.

Ou apenas deixa em branco.

Anotar é perigoso.

Melhor postar no Facebook...

CRiga.



segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Minotauro


Algo me diz que estamos vivos,
eu desaprendi acreditar.
Há no ar o perfume das futuras árvores,
há Brasis melhores, aquela república federativa.
Algo insiste bater a porta da alma fechada,
a casa resiste, estará em eterna reforma?
A chuva desta segunda é confortante,
de novo o som dos pneus contra o asfalto
falam bem alto, você sempre será um urbano.

É que eu amo, mas não sei ao certo o quê.
Ilusões são a busca pela fala do espírito,
ele muitas vezes emudece, parece um espantalho,
padece até a rima rimar com lugar comum.
Eu sou apenas um, mas sou muitos também.
Sou homem, sou mostro, sou monge ateu.
Sou meu, só meu, quem é teu morreu nos teus braços,
o suicídio perdura, eu tateio no escuro
procurando achar de novo teu coração.

Aos dezoito poderemos ser presos,
impossível mais do que já estamos –
o marginal sou eu, eu te roubei na esquina,
te matei com um tiro pelas costas.
Nesta minha perpétua prisão, a maioridade
é apenas uma notícia que o jornal não deu.

Aos dezoito eu já era impura lava de vulcão
adormecido, olhos silenciosos, minotauro –
nunca quis vencer o labirinto, eu sinto muito,
eu estou perdido pedindo o perdão
que nem eu mesmo posso me dar.

CRiga.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Vontade de chorar



Apenas enevoadas imagens.
Arrumar o quarto de solteiro.
Uma amiga que se declara amante.
Um anjo negro que retorna na noite.
Uma música, “I am human and I need to be loved”*.

Distraído com músicas e sonhos
feito adolescente no quarto de solteiro
feito um desejo de apenas ser amado
feito chamado por socorro na escuridão da madrugada.

São apenas breves signos,
sopros de fantasia pra sobrevier.
De manhã, aquela vontade de renascer.

No fundo preciso escapar,
aqui assumo o espiar do erro profundo.
Mas eu tenho vontade de chorar,
e isso ninguém pode me negar...

*How Soon Is Now (Smiths)

CRiga.



terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

De manhã, uma saudade



Se apega aos míseros vícios,
monstros. Falta missão,
falta amor, há muita culpa.

O hálito do anjo negro beija sua face,
feito brisa acalanto à madrugada fervente.
De tempos em tempos ele vem,
se mostra, lembra que amor ainda há
e pede calma ao claudicante.

Mas quando o sol começa a nascer,
ele dá adeus com o resto de luz do espírito.
E some, enquanto a procura louca
chora a lágrima da saudade imemorial.

“Adeus, meu amor, até mais, até o próximo vento de janelas abertas. Até o teto azul finalmente nos soltar, e cairmos ex-penduricalhos, mas de pé, sem mais necessidade de polimento e de desencontros. Apenas nós, um encontro marcado, sem segredos, e uma casa com penduricalhos de anjinhos à porta. E aquele doce barulhinho à leve brisa, na varanda, aos finais das tardes que finalmente serão nossas.” *

Não é fácil encarar a ausência do amor.
O fogo quase morto, o caminho torto.
A salvação é uma dúvida,
respostas nunca estarão nas igrejas.
Os erros perseguem.
Acertos são cicatrizes
que ainda farão sangrar...


CRiga.



sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Horizonte musical



Depois do silêncio você consegue escolher uma música que te acompanhe pelo dia. Nada nunca será perfeito, mas há horizontes em que você pode depositar aquele brilho escondido da alma que quer construir. Guarde pra si seus monstros, porque eles naturalmente hibernarão à medida que o sol na linha infinita seja a meta – porque de fato você nunca terá a luz às mãos, mais tão próximo a ela você é mais você. E depois tudo será menor dor, mais amor, mais laboro feito abelha cuidando de viver e dando vida aos nossos necessários jardins. Às nossas necessárias margaridas e às nossas sementes cada vez mais crescidas frondosas árvores, um dia tão grandes e belas não caberão mais em nosso jardim – são árvores que nasceram para avançar as nossas cercas, em direção aos seus horizontes de sóis de novos dias, novos tempos. E eu agradeço: se não tenho um “primeiramente qualquer deus”, tenho gente que me acompanha. Depois do silêncio vem a vontade de falar: o mundo sempre parece começar agora, e isto tudo é muito bom!

CRiga.



quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Quinta-feira de limpar cinzas



Há o silêncio que dói.
O silêncio cortante, gritante.
O que anuncia o cinza do dia,
a incerteza, o nada incrustado
no DNA do minuto seguinte.

Só que minutos viram horas.

Nem um ai, um alô
para aliviar uma pseudo dor.
Haveria amor
se silêncio rimasse com paz.

O silêncio tortura as horas.
As horas viram o dia,
mais um jogado à brisa poluída.
A culpa é da cidade sem espírito
que apenas grita buzinas e caminhões.

O silêncio é monossílabo, é só.
Raspa na garganta, nada diz.  
Eu acho é que ele tem é medo
de somente ser feliz.

CRiga.



segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Vou me varrendo




Liste os seus monstros. E resista.
Leia um livro, uma revista,
invente um poema.
Afogue o Godzilla no vaso sanitário.
Lave a louça, ouça um velho Rush.
A comida está pronta,
a semana encaminhada,
a entrevista editada –
espero que dê tudo certo.
Sobraram preparos e cervejas,
precisamos economizar novamente.
Faltou amor, precisamos transar loucamente.
Eu tenho medo é do cotidiano,
ele me devolve monstros e muito pó –
vou varrendo só pra debaixo do tapete,
aquele redondo que há tempos já não temos.

CRiga.



sábado, 3 de fevereiro de 2018

Sapato velho



Uma das piores sensações de um homem é o estágio em que ele sente vergonha de seus sapatos. É quando toda a humildade que ele sempre cultivou não vale mais que a falta de lustre e couro. Quando o engraxate se torna padre confessor.


CRiga.