segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Descobrir

 


Ela também gosta de mim!
Não vem desta vez...

Atrasou a menstruação.
Será menino!

As pessoas amadas também morrem.
Também crescem, criam asas.

Uma fotografia faz chorar.
Pior é machucar o coração, traição.

Eu também posso fazer.
Eu também posso esquecer.
Eu também posso me apaixonar.
De novo
pela mesma pessoa que já amo.

Novidades cobrem a trilha pela frente,
tente não ficar nervoso nem virar o rosto:
a descoberta tem sempre um gosto,
sabor maior é aprender.

CRiga.


sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Eterna terra

 


Tanta gente erra o alvo
e eu, sem-terra, fui acertado.

Tanta gente é herói de guerra
e eu, sem-terra, virei aberração.

No meu bolso, semente da liberdade.
O meu solo foi estuprado
nele plantado um balaço disparado
por quem eu deveria confiar.

Agora tenho terra pra morar
plantado nela feito semente
somente pra brotar injustiça.

Condecorado ignorante da Terra
sem terra, sem teto,
sem moral e sem dinheiro.
Dizem alguns,
brasileiro.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Render-se

 

Um velho perde o filho.

Um filho perde a namorada.
Uma namorada perde o encanto.
Um encanto perde a pureza.
Uma pureza perde a esperança.
A esperança fica velha
e um velho morre junto ao filho.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)


domingo, 22 de novembro de 2020

Domingo de despedida

 

Chegaste vendaval que eu senti –
a brisa me salvando da cabeça
panela de pressão.

Amanhã tem dia de manhã de sol,
uma segunda-feira de primeiras intenções.

Só levo planilhas de guardanapo,
trezentos quilômetros de arco-íris.

CRiga.


Pra se salvar

 

Ninguém se prepara
pra hora de ir embora.

A gente evita o relógio,
engana o ponteiro
na quina da esquina.

A gente traz o móvel de discos
pra ele ficar feliz
de um dia poder mudar de lugar.

E eu vou dizendo adeus, adeus
sobre o balcão que me restou.

Olha ali minha foto em preto e branco –
é este aí que um dia eu fui.

Olha ali os discos que ouvi com quatro ouvidos!

Ouve ali eu dizendo adeus, amores, adeus!...
Sorrindo dores, rimas e desculpas:

agora é tarde, 
o perdão não mora mais aqui.

CRiga.




 

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Interiorurbano

 

Nesta terra
quem mais se ferra
colhe menos.

Do meu chão tapete de asfalto
brotam apenas enganos e desilusões
santos falsos e mitos confusos
parafusos soltos das inseguras engrenagens
aragens que britam o solo bruto.

Nesta terra
quem menos faz
ganha mais.

Esta terra
encerra qualquer sonho interiorano
planta metal nas criativas cabeças
e erosão nas almas apaixonadas.

Cheiro de terra
aqui
deslizamento na favela.


CRiga.
(Caderno Azul, 1997)


quinta-feira, 12 de novembro de 2020

Os Quatro Besouros de Piraju

 

Eles não nos lembram Liverpool,
mas a vitrola para num grito Help!

É só um grilo nessa história
viajando nos 33 da rotação.

Acredita que ele reza louvando
uma escadaria para o céu?

A cigarra, não adianta,
ela não fuma e nem explode.
E como pode então
aguentar tanta pressão?

Vagalume deseja ser ator
da novela das oito.
Pirilampo, às dezoito,
quer apenas tocar num bar.

Maria pousa na nossa madeira
sem saber se morcego já dormiu ali.
Perigo engravidar assombrações.

Maria não sabia ser fedida,
era só mau trato e afasia.

Maria de verdade era percevejo
dourado, enferrujado
num recado de amor que não morreu.

Na hortelã que tá lá embaixo
borboletinhas amarelas emergem
a bandeira de um país.

Aranhas, escorpiões e taturanas
organizam clandestinamente
uma revolução de boas-vindas.

Abelha é sempre bem-vinda.
Tem gente que precisa saber
que o diferente tem valor também.

Formiga então não é amiga
só porque não se diverte?

Mosquitinho, vai tomar escondidinho,
atrás do cachorrinho que caga no gramado!

Borrachudo fura até a boia da piscina.
E olha que ele coça de vontade de pular –
bora que é bom coçar!

Quem fez as malas foi a praga
tão magra de nunca ter dado certo aqui.

CRiga.




Conviver com os erros

 

A vida acordou atrasada

e procurou por você
que foi embora.

A vida
é simples agora.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Fronteira

 

O trem no subúrbio passa implacável
como um monstro de aço.
Estremece feito terremoto
as casinhas de papel.
Sacode os frágeis tapumes
em forma de abrigos
da favela fantasma.

Mas a arquitetura improvisada,
arte eternamente sem dinheiro,
não cai.
Imponente (do seu jeito) joga nas caras
a sofrida sobrevivência.

Porque a pobreza é assim:
enquanto não descarrila o trem
pra dentro da favela fantasma,

tudo é
cotidianamente
apenas transparente.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



terça-feira, 10 de novembro de 2020

Bienal

 



Palavras me roem o calcanhar,
eu caminho sílabas acertando o passo.

Comem pela beirada,
correm licor pelo canto da boca.
Corroem, ácido sulfúrico,
o recheio do bombom.

Palavras se movem se inovando
a cada segundo, eu respiro frases
filtrando a poluição.

Palavras morrem no fim do dia
no fio do cabelo
silabando
sibilando baixinho
obrigado
uma poesia.

CRiga.


segunda-feira, 9 de novembro de 2020

Testamento

 

Calejei emoções.

Congelei carinho
aquele que um dia
imaginei pra mim.

Escondi no sótão
aquele beijo de boas-vindas
e o álbum da memória.

Plastifiquei o guardanapo
uma boca batom de boa sorte.

Enterrei-me besouro que voará
a primeira e a última noite
até varrido no dia seguinte.

Deixei guardado sobre a caixa do cuco
o mapa de um dia você me reencontrar.

CRiga.



Ladrões

 

Desde tempos que busco na memória
nossa história não é das melhores –

algozes nos matando nas trincheiras
freiras nos amaldiçoando pelos caminhos
ninhos de cobras nossa cama
lama nos campos nosso lar
mar de baleias e peixes mortos
tortos anjos bebendo cachaça
praça de guerra nossa derrota
nota fria e falsa identidade
cidade que nunca é nossa
fossa no balcão dos bares
ares de inverno polonês
inglês defeituoso na fronteira
cadeira elétrica e masmorra
que porra de mil vidas nós levamos!

Mesmo assim
insistes me acompanhar.

Porque me amas desse jeito
feito filme
desde tempos imemoriais.

CRiga.



domingo, 8 de novembro de 2020

Vibe

 

Vida te empurra. 

Então me atropela.

Vide na bula.

Então me cura.

Então me culpa.

Me liberta.

São vedados os olhos de lágrima.
A verdade só abre a porta
pra paz poder se instalar.

CRiga.




Inseto

 

Coça gostoso porque um dia
essa dor de vontade de ficar
e de coçar, há de passar.

Hei de passar.

Hei de ficar
sem você precisar me notar.

Morcegos dormiram aqui.

Mariposa na madeira
engravida assombrações.

CRiga.







Pacto

 

Não sou santo
pastor
nem bom cristão
.

O marketing ganha dinheiro
inventando cartilha de político
e reza de religião.

CRiga.


Misantropo

 

Não admitem o ócio,
projeto-negócio de ermitão

É estranho
o mundo pela televisão.

O algoritmo é que hoje decide
toda a emoção.

O jornais em preto e branco
não têm cotas raciais.

E quem tá quieto se inquieta
com o silêncio da multidão.

E pra mostrar-se vivo no esquema
tecla um poema de esquerda
da sala escura de sua solidão. 

E quando a culpa acompanha o sono
só lhe preocupa o bafo quente
de um amor onipresente.

CRiga.



sexta-feira, 6 de novembro de 2020

Samba ilustrado

 

O barulho daquele samba novo no rádio muito alto era como marretadas em seu espírito cansado, enquanto bundas pagodeavam no chão de cimento batido feito ritual prenunciando sua morte. Bebia sua cachaça no balcão do boteco de esquina da favela, sozinho, enquanto pensava se teria feito o correto ao cimentar a amante morta debaixo do tanque. Dariam falta dela, e uma certa neurose o avisava que iriam procurá-lo. Ele via, ou pensava ver, vários olhos o vigiando na vizinhança enquanto entrava na casa daquela negra linda que escolhera o par errado.

Conheceram-se no ponto de ônibus, de manhã. Conversavam muito no caminho ao trabalho – ele, pedreiro, branco de olhos azuis; ela, linda negra, recepcionista de um consultório de dentista. Um dia, um convite, “passa em casa na volta”. Como resistir à negra mais linda e gostosa do morro? Assim começou.

O caso é que um dia, meses depois, a nega enlouquecera. Queria que queria aqueles olhos azuis só pra ela, aquela pele polaca agarrada à dela, aquela pele de veludo quente e branca diferente dos negrinhos do morro. A nega queria que ele largasse a esposa, filhos e tudo mais, e assumisse logo aquele romance louco, ardente. E apesar da paixão vermelha, queria filhos também. Aquilo não era mais como no começo, apenas um caso, sexo, saídas, segredo – agora, depois de seis meses, tudo ficara sério demais pra ela.

E apesar de adúltero, ele era trabalhador honesto, não deixava faltar nada em casa e amava sua mulher mesmo na cama fria em que fizera algumas daquelas seis bocas a mais que comiam no barraco. Ele sabia que o chefão do tráfico no morro era o pai de pelo menos três de seus rebentos, e perdoou, o que fazer? Adotou as crianças como suas. Sua mulher um dia adúltera ganhou e ganhou presentes enquanto era aquela morena gostosa sem o corpo castigado de seis filhos. Mas o traficante cansou um dia, deu uma grana e tudo certo. O barraco tinha Cartoon pra criançada, tevê de plasma e computador de internet banda larga.

Um problema: a negra linda, a amante, era nada mais nada menos que propriedade justamente daquele mesmo traficante. Ou seja, ele estava condenado à morte por todos os lados, como escapar? Cedo ou tarde, polícia ou bandidagem descobriria a história daquele fim de tarde no barraco: ela exigindo ele só pra si, mais uma faca na mão ameaçando matá-lo e matar-se em seguida, quando ele preferiu abreviar as coisas: tomou a faca da mão no vacilo da nega, cortou o pescoço macio dela feito faca quente na manteiga, e cimentou o corpo na cozinha, embaixo do tanque adaptado do barraco. Um problema a menos pra se preocupar.

Depois, saiu vagando feito zumbi, cabeça pesada. Entrou no terreiro do samba agudo, o diabo gargalhava no canto do balcão. Bebia sua cachaça, mas não alcançava o arrependimento. Havia um certo medo, mais a preocupação de ser levado preso – ou ser morto, muito melhor. O receio maior era apenas de deixar a família sem sustento num mundo de incertezas e diabos gargalhando dos filhos e da mulher a cada esquina da favela. Pagou a conta, trombou com as bundas pagodeando no meio do boteco, e decidiu encarar o pesadelo.

Pelos becos rumo à sua casa, entregava ao acaso espremido entre barracos no meio caminho aquela sua vida mais ou menos, agora marcada por sangue e maldição. Já sem qualquer perspectiva de vida antes, agora a morte era apenas uma questão de tempo. Um cheiro de enxofre o seguia.

Foi quando viu a espera cair no beco mais sujo da favela: o chefão do tráfico e sua gangue vinham sentido contrário, apressados, de encontro, nervosos, anjos do apocalipse. Ele passou a desejar apenas uma morte sem os sofrimentos que os traficantes sujeitavam alguns inimigos, por vingança. O medo subiu pelas costas, o diabo voltou a gargalhar feroz, agora correndo em suas veias até sua cabeça panela de pressão. Mas ele não reagiu, apenas encarou o demônio. E aceitou.

O chefão meteu a mão no peito dele, com uma arma na outra mão:

– Tava na tua captura, alemão. Ouve bem...

A história foi a seguinte: o chefão estava fugindo do morro porque a polícia tinha recebido informação anônima, e ele desconfiava justamente da nega. Um dia antes ela queria se separar do traficante, confessando que tinha um amante e queria ficar com seu amor. Mas como ela sabia demais dos esquemas de crime no morro, o chefão não deu chance: foi lá, na surdina, e incendiou o barraco dela.

– Matei a nega, tava dormindo com certeza – confessou o traficante.

Meteu a mão no bolso e tirou um bolo de notas graúdas.

– Toma, isso é pra você. Se correr, tem mais lá no meu barraco, é tudo teu.

O traficante sabia que ele aceitara criar filhos que não eram seus, frutos de adultério. Dali desceu pra fora do morro, em fuga.

Dia seguinte o jornal daria a morte do principal traficante do Rio de Janeiro.

Fim de uma história. Recomeço de uma outra.

***

Numa manhã ainda madrugada, naquele bairro sem favelas, ele fazia a barba pra ir à labuta diária numa obra no centro do Rio. A esposa entrou, olhou pelo espelho ainda embaçado pelo vapor do banho. Os olhares se encontraram, as bocas sorriram uma cumplicidade etérea.

Na cozinha um café preto quentinho, pães e aquela margarina do comercial. O rádio baixinho tocava um sambinha antigo – “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima...” – dando um ar de redenção junto à tinta branca ainda cheirando fresca. Dançaram agarrados, lentos, silenciosos. O sol nascia. Os filhos dando risadinha da sala, enquanto trocavam de roupa pra ir à escola. O sambinha cessou, veio o locutor dando bom dia.

Ele beijou a esposa, e beijou cada um dos seis filhos. Arrumou a marmita na mochila, abriu a porta, o sol invadiu a mesa junto do cantar de um pássaro qualquer. Atravessou o quintal de flores, abriu o portão de madeira que rangia uma vidinha tão bonita. Deus sorria na caixa de correios. Saiu pra trabalhar.

CRiga.



quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Depois das dezoito

 


Você não corre mais na noite,
Só aperta o passo no teclado
Pra não perder a inspiração.

Aperta a seda,
Falta vestido pra elogiar.

Acerta o compasso do texto
Pro candidato que vai ganhar.

Você não morre mais,
Ela chegou:

A folga
A fuga
A noite!

Se afoga no copo de cerveja
Se afunda no ritmo do texto
Se à noite a gente sentir sono
A gente corre é pra sonhar de novo.

CRiga.


  


Ele não era um cara legal

 

Ele não é o cara
dos grandes feitos.

Nem o cara
que tudo arranja.

Ele não é o cara
que conta piadas.

Nem o cara
que vai salvar a festa.

Ele não é o cara
do tapa na cara.

Nem o cara
pacifista da manifestação.

Ele não é o cara
que toca guitarra.

Nem o cara
que gosta da sua música.

Não é o cara
da esquerda.

Muito menos o cara
da direita.

Não é o cara
da moda.

Nem o cara
popular da roda.

Ele é o vidro que corta
em vez do falso brilhante.

CRiga.



quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Cigana

 

Não poderás mais escrever poemas,
pois tuas mãos ficaram entre as minhas pernas,
e dentro de mim compunha
o que poeta nenhum ainda conseguira
descrever em simples palavras.

Não poderás mais cantar tuas canções,
pois tua língua ficou nos bicos dos meus seios,
na minha língua, nos meus lábios,
boca, pescoço, peitos, ventre, púbis,
até a eternidade!...

Não poderás mais ver o pôr-do-sol,
pois teus olhos viram meu espírito
viver no teu corpo e sentir a tua carne,
chorar de prazer quando me tocavas
e de tristeza quando partias.

Tenho certeza, não poderás mais nada!
Por isso sei que voltarás para buscares
tudo o que te pertence.
Inclusive eu.

CRiga.