sexta-feira, 29 de abril de 2016

sweetdream

Passei então a ver-te todos os dias,
em todos os olhares, lugares
e pensamentos indecentes,
depois que acendeste em mim a juventude quase morta
num beijo adolescente.

Vi você nova colega de trabalho,
uma amiga de uma amiga,
uma atendente de papelaria,
estudante de psicologia,
ninfa sorrindo do canto da festa,
mas este ano não pulei o mesmo carnaval.

Vi minha juventude dar lugar aos dias de semana
os dias que você ama matar, sedenta,
andando muito lenta pela praça sem graça
fingindo procurar alguém firme pra ficar.

E eu morri de velhice precoce,
de tosse e de frio
em pleno verão ardente,
morri de tudo o que você possa imaginar.

Só não morri na hora de acordar de novo
ligar o carro quebrado de pneu furado
acelerando, insistindo não te matar
um pouquinho que fosse,
até o apito da fábrica de velhos
começar a me chamar.

CRiga.


quinta-feira, 28 de abril de 2016

Letargia


Estamos nós atados
sem fraqueza e melodia.
Estamos pós-modernos
vestidos céus
encarnados infernos.

Se o vinho deixa marcas
e comoção no escuro da noite,
estamos no açoite que estala
e obriga o dia a caminhar
e arrastar nenhuma poesia.

Estamos sós amados
sem armas, sem amantes.
Antes era fácil,
hoje somos restos
de velhos dinossauros.

Se o cedro deixa farpas
e carvão no fogo da floresta,
somos bombeiros e gasolina
somos a letra promessa da menina
que queima no tronco velho.

Estou um dia inteiro à procura de você
entre nós, ali escrita, escondida
atada a uma estúpida veia entupida.

CRiga.


quarta-feira, 27 de abril de 2016

Ladrões

Desde tempos que busco na memória
nossa história não é das melhores:

algozes nos matando nas trincheiras
freiras nos amaldiçoando nos caminhos
ninhos de cobras nossa cama
lama nos campos nosso lar
mar de baleias e peixes mortos
tortos anjos bebendo cachaça
praça de guerra nossa derrota
nota fria e falsa identidade
cidade que nunca é nossa
fossa no balcão dos bares
ares de inverno polonês
inglês defeituoso na fronteira
cadeira elétrica e masmorra
que porra de mil vidas nós levamos!

Mesmo assim
insistes me acompanhar
porque me amas desse jeito
feito filme,
desde tempos imemoriais.

CRiga.


terça-feira, 26 de abril de 2016

Mapa doméstico

Os dedos passeiam entre querubins de gesso na estante,
e o pó se digitaliza história confusa
na mão que te procura.
Entre os bibelôs de uma vida que passa
eu apenas adormeço, nas asas de um anjinho,
meus sonhos de voar.

No canto onde deixei reservado um retrato teu,
me procuro como se fosse cura de vírus
ou como se você tivesse deixado a pista
usada pra um dia me reencontrar.

O doce da infância agora faz sentido,
mas a puberdade é dissonante...
são somente fotos velhas desbotadas
guardadas no baú do sótão mal assombrado
da memória do coração.

Ouço Beatles, reviro cadernos
e álbuns de fotografia,
e a puberdade corre costas
cidades e verões,
mas me canso, e o anjo grita
o famoso ponto final – 
é preciso descer, ainda sem fama,
sem grana e sem par.

Os Beatles da segunda fase
agora fazem mais sentido,
e tudo gira como se fosse
o carrossel do perigo
que meu amigo cantou numa canção.

Meu filho, carinha de anjo
numa estante me fita,
interrogação:
papai, onde está você?

Perdido no pó caminho
só pra te ver crescer,

perdido só, no cantinho
feito feto quieto no ventre
sem a púbere memória enterrada
que você há de devolver.

CRiga.


segunda-feira, 25 de abril de 2016

Em uma nota, só

Em cima do piano,
um copo de veneno.

Piano da sofisticação,
pretão, sério demais.

Embebido morreu em si,
menor.

CRiga.

quarta-feira, 20 de abril de 2016