Quando ele decidiu atravessar o oceano
louco, era pra fugir mais de si do que da ausência de si. Era aquela cidade
cinza que piorava as coisas, principalmente quando o inverno chegava mais frio
do que em qualquer outro lugar que já esteve. Se bem que, atravessando o oceano
louco, o frio talvez fosse maior, aquele frio que a gente vê pela tevê em
Londres, Paris e outros lugares que parecem se renovar a cada sonho nosso de
estar lá. “Mas aquele frio tem charme, é um frio que a gente se sente
protegido, por isso eu vou!”
Seu sonho também era renovado, deixava para
trás o que de si não gostava, culpa daquela solidão das capitais. Resolvidas
todas as pendências burocráticas – e até algumas parecidas com as emocionais
também –, estava pronto pra ir, castigar aquela cidade cinza que nunca lhe dera
nada. Nem mesmo aquele amor prometido a cidade lhe presenteara, aquele amor que
faz a gente fincar o coração mesmo numa terra estranha e sem graça, por amor
valia a pena qualquer coisa. Mas o amor era só uma promessa, uma piada estranha
e sem graça, era prato feito de restaurante, enlatado de supermercado, um rock
de gente séria e sem sangue – “É tudo gente vampira!”
Passagens compradas, data marcada, só
voltaria para visitas quando estivesse seguro que vencera a cidade cinza – ou talvez nem voltasse. “Pra quê? Ninguém me
espera, não espero mais ninguém”. Na correria de arrumar as últimas coisas,
entre barbeiro, roupas novas e um som pra curtir – disso não dava pra abrir
mão! –, conheceu uma garota, mais uma garota da capital. Sorriu, disse oi,
trocaram nomes e telefone, e rolou como sempre acabava rolando com todas as
garotas.
Só que no outro dia ela ligou, fez visita,
arrumou o apartamento bagunçado dele – ele dividia o aluguel com mais dois
amigos –, sorriu, chorou, cantou, bebeu, beijou, e não esqueceu! Foram dias
assim, os últimos dias, intensos como a despedida de sua terra natal, fazia
muito tempo. Mas era como se agora a despedida não fosse tão boa como era até
então, quando fugir era o que valia.
Ela era incrível! Chorava com música
bonita, ria das atrapalhadas dele, sorria pertinho da boca dele como que
respirando o ar de seus pulmões, fechando os olhos e tocando os lábios macios,
aos poucos, até o beijo suave. Depois, puxava ele e tirava a roupa, corpo
lindo, e eles faziam o amor que ele não conhecia. Depois, fumava um baseado,
colocava outro CD, cantava junto com os olhos fechados, a cabeça balançando,
como se ninguém estivesse vendo.
Mas ele via mais do que queria ver, ele via
o amor que a cidade cinza um dia prometeu. “Mas você vai embora, que pena,
então vamos curtir um pouco mais...” Com ela, ele esquecia que teria de
atravessar o oceano louco, ser “feliz”, simplesmente. “O que é ser feliz,
então?”, estava confuso, ficou com raiva de si. “Tá tudo pronto, gastei toda
minha grana nessa viagem, isso só pode ser uma brincadeira do destino.”
Não era, e pegou-se pensando nela, na
música dela, no sorriso dela, no seu corpo nu, sentada à cama, balançando a
cabeça com os olhos fechados, acompanhando “aquela música da chuva do Led”,
enquanto lágrimas rolavam de seus olhos cerrados no final, quando o Plant
gritava “but I know, that I love you
so...”(*). Pra ele, nada daquilo
era igual às outras pseudo-aventuras da cidade cinza. A coisa ficou mais séria,
quando até chegou a brigar com os amigos do apartamento porque bagunçaram tudo
o que ela tinha arrumado. Ele a defendeu, e ficou completamente sem defesa...
O pior que, na verdade na verdade, ele
queria era novos ares principalmente porque acreditava no amor, e a cidade
cinza não lhe dava a oportunidade de amar ninguém. Eram todas as aventuras
filmes sem nexo, em preto e branco, chatos demais. “Aqui não é o meu lugar”,
repetia pra si como um mantra, pra se convencer, e culpava os inocentes de
serem demais culpados cibernéticos, porque nunca nunca, “que droga!”, havia
sentido o calor daquele sorriso dela, daquele beijo dela, daquele choro,
daquele riso... Nunca tinha ouvido uma música tão bonita, ou nunca tinha
percebido como eram bonitas as músicas do Led Zeppelin... E nunca foi tão mais
frio, quando chegou o dia de partir... “Maldita cidade”, só lhe dera o grande
amor quando decidiu abandoná-la com seu cinza, sua semgracisse, seu frio seco e
morto.
Pernas moles no hall do aeroporto, ela
disse que viria pra se despedir. “Não vou resistir...”, pensava que poderia
jogar pro alto essa coisa de atravessar o oceano louco. “Chance assim não deve
haver nem em outro continente...” Mas ela não vinha, demorava demais, e já
chegava a hora de ele embarcar. “A gente precisa conversar pra eu me convencer (porra, isso é música do Ritchie), por que
ela não vem logo? Como vou ter certeza? Como vou embarcar nessa? Como foi que
eu embarquei nessa?”
E ela não vinha, “ela não vem... melhor
assim”. E seguiu o corredor, já era a segunda chamada de embarque. Aquele dia
chovia mais do que os outros dias anunciando o inverno. “Foi tudo um sonho.
Amor assim não pode existir, justo na hora de partir”. A chuva desafiava a
vidraça do aeroporto, e cada passo passava mais firme, mais compassado. “Agora
não dá para voltar atrás. Adeus, adeus!...”
Pela janelinha redonda daquele boing
enorme, viu duas mãos grudadas nas janelas do hall do aeroporto, onde as
pessoas se despediam dos passageiros, ou simplesmente ficavam vendo aviões
decolarem. Mãozinhas imóveis, ela não se despedia, só olhava, não ria nem
chorava. A cidade ficava mais cinza, e ele quis acreditar que são as pessoas
que colorem seus dias, ele podia colorir. Só que então por que ele nunca se
esforçou nas tintas que tinha, sempre preferiu se defender e culpar o mundo?
Agora, o apocalipse calado, olhando do
hall, palmas estateladas manchando o vidro com suas impressões digitais, fones
de ouvido e um walkman, e ele tinha a impressão que aquilo não era uma
despedida. Era um filme, um filme cuja única cor eram seus olhos brilhando
verdes do hall, era seu vestido chita azul e seu casaco marrom de lã de ovelha
– a chuva, o inverno! “Que inferno! O avião podia quebrar, forçando mais uma
espera dos passageiros por pelo menos meia hora, que fosse, o suficiente pra eu
me convencer.”
As turbinas ligaram, o avião começou a taxiar
pela pista, preguiçoso, em câmera lenta. Uma cabecinha acompanhava lá do hall,
sem sorrir, sem chorar. E ele viu então os olhos dela se cerrarem, e a
cabecinha acompanhar uma canção. Na fita cassete do
walkman dela, o Led rolava triste, na explosão das guitarras e bateria – “I felt the coldness of my winter/I never
thought it would ever go/I cursed the gloom that set upon us/But I know, that I
love you so/But I know, that I love you so...” (*).
E ele viu os olhos cerrados, viu mais uma
vez as lágrimas dela que corriam no final do refrão, enquanto o bichão de asas
de metal levantava. “But I know, that I
love you so”. “Adeus, adeus”, este filme não poderia terminar diferente,
com chuva e cinza. “Adeus, minha música sempre foi triste, triste assim...” A
cidade cinza sempre foi triste, ele sabia. O adeus silencioso e imóvel também
era. “Mas sei que te amo muito... adeus, adeus...” Um dia a tristeza vai
passar, ou vai voltar, doer, quem sabe... “Agora, só o velho continente me
espera, com um novo rock and roll. O velho continente precisa ser novo, novo
rock and roll!”
No hall, ela secou as lágrimas com as
costas das mãos macias, e sentia-se tão rouca e cansada como Plant no final da
canção. A música cessou, e a chuva cessara também naquele entardecer, enquanto
o avião levantava vôo, levava ele pro outro lado do oceano, enquanto o bichão
ficava cada vez menor e sumia no pôr-do-sol, um sol brilhante, onde foi o frio?
“O frio foi embora, e ele também já se
foi”. No lado B do cassete no walkman dela, já rolava um velho rock and roll.
“As pedras vão rolar. As pedras precisam rolar!...”
(*) “The Rain Song”
– Led Zeppelin
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