quarta-feira, 30 de março de 2016

Baixinho


Você não sabe sobre o que falar. E também não tem mais saco pra debater a crise no Brasil.

Então você remexe algo que restou de bom, e repara que nem passado ou presente lhe dão letras harmoniosas. É, meu chapa: você perdeu o lirismo.

Enquanto isso só resta disfarçar, então, essa sensação de imensa incapacidade de construir – um poema, um Brasil melhor.

Amargura, calor pra caralho. Uma música que me diz tudo. Uns dias que não me dizem muito. Um perfume selvagem na memória do coração. Uma adolescência, um saudosismo, um medo do futuro dos meus filhos. Uma emergência em mudar o presente, corpo e alma, nem tanto as enferrujadas engrenagens desta politicagem nojenta que nos acerca nas três instâncias.

Tudo se mistura. Fedores, amores calejados, a paixão que pegou a estrada e se nega a voltar, um pé atrás nessa euforia, o dia, o fim do mês, o disco novo de Caetano. Uma boa conversa no trabalho, a cerveja que não há mais nos dias de semana, uma caminhada no parque. Passos que levem a lugar qualquer que não o morno silêncio pra vomitar.

Você simplesmente não sabe sobre o que falar. Mas quer falar. Quer gritar. Baixinho...

CRiga.

terça-feira, 29 de março de 2016

Metrópole infarto

Pare, respire fundo o ar imundo de São Paulo, e em sua insana solidão transparente procure alguém na multidão: não há ninguém, não há saída!

Só há você, vírus abalado, e mais o rumor de um fim de mundo oportuno que ecoa distorcido e clássico, nessa cidade completamente confusa.

Parece explodir em seu peito uma vontade louca de gritar, e denunciar tardio a solidão. Mas o ar sem rumo de São Paulo sufoca a liberdade e infarta o coração, na contramão das avenidas.

Não há vida nem sobrevivência. Só há a cidade que não te enxerga, e a porta aberta da igreja que não lhe serve mais.

Respire fundo a cidade de São Paulo...

CRiga.


segunda-feira, 28 de março de 2016

Tortura

Daqui de cima vejo rostos de ponta-cabeça,
nervosas e amarelas gargalhadas.
Gritam gol de Pelé, gritam me exigindo respostas,
e feito criança só faço chorar,
sibilo, babo
e perco a inocência.

Dissonante, uma canção elétrica agarra meus ouvidos,
enquanto a manivela roda minha sorte num bizarro realejo
que não o da minha infância.
De repente é aquela corrente
salve a mim, não a seleção.

Antes era brincadeira de criança
a disputa n’água pra ver quem tinha mais fôlego.
Estou quase perdendo disputa e fôlego,
mas a mão que agarra meus cabelos
insiste em me salvar no jogo.

Resta de mim numa cela fria
apenas um farrapo, corpo marcado,
machucado, encharcado, queimado.
Mas este é o meu corpo, a exata soma
dos sentimentos que você quase conseguiu moer.

CRiga.


terça-feira, 22 de março de 2016

Meias palavras à meia idade

Bem-vindo à sorte,
apenas a morte das palavras sem adjetivos.
Um direto na veia violeta
e o sangue dizendo verdades sem rodeio:

Eu te odeio,
eu te quero.
A espera cheira a pó
e tenho dó do amor perfeito.
Dispenso o bater de cabeças
nas paredes e pôsteres da adolescência.

Prefiro a indecência mesmo -
comer minha mulher por trás
e ficar seguro às noites
lendo um livro de Érico Veríssimo.

Coisa de velho sem adjetivos,
sem emoções de extremos na noite, talvez?...

Pode ser.

Mas a hipocrisia mata mais,
e hoje prefiro apagar a memória do computador
a forjar histórias que ficaram pra trás.

CRiga.


segunda-feira, 21 de março de 2016

Linotipo viciado

À tarde, quando tudo parecia
fim-de-mundo programado,
falhou a memória do computador
e falou o dono da bola murcha
que tanto fazia rico ou pobre
velho ou novo:
a moda da moda
agora era o desespero.

Preferi correr, recorrer
à memória do coração,
à história sem agá,

porque a estória que inventamos
quando é nossa a história,
vale memória ou impressão,
desde que o coração fale mais alto.

Tudo falha, meu amor,
de infalível bastam a moda
e o barulho das máquinas
quebradas ou não.

CRiga.




sexta-feira, 18 de março de 2016

Fora da moda

Com o pouco que sobrava de seu salariozinho, conseguiu juntar uns trocos e comprar aquele vestidinho vermelho que namorava há tanto tempo na vitrine, da loja ao lado do restaurante onde trabalhava como garçonete. Nem havia mais vestidinho na vitrine, a moda passara, mas ela sabia que conseguiria comprá-lo numa liquidação. E que felicidade a dela de encontrar a peça lá, a última, pela metade do preço, exatamente o quanto ela havia conseguido economizar!

Decidiu usá-lo na primeira folga do trabalho, um domingo tão quente de sol, muita gente na rua, chegou a estranhar o movimento. Queria sim que a olhassem, e até que alguns homens chegassem a fazer gracejos – o vestidinho caiu perfeitamente no seu corpinho de 19 anos mal completados, delineando uma cintura de moça em forma, ombros e pernas morenos à vista. Naquela grande avenida de domingo não ficou decepcionada com a falta de olhares, e sim confusa com tantos enviesados na sua direção, homens, mulheres, moços, moças, velhos, velhas. Todos a olhavam cerrando sobrancelhas, cochichando, apontando.

Foi quando um grupo avançou sobre ela, logo de cara metendo a mão por trás do vestido. Um puxão só, rasgou nas mãos de alguém, enquanto outros gritavam coisas que ela não entendia. O choro convulsivo de susto mal a deixava tentar qualquer defesa, todos continuavam a gritar contra ela, agora seminua, tapando os seios com os braços, sozinha, no meio de uma multidão.

Resolveram ajudar e lhe deram um manto verde e amarelo pra se cobrir. Viraram as costas e a deixaram como se deixa um cão doente numa esquina qualquer.

Sozinha, encolhida contra uma parede de uma pequena alameda, o choro cessou, e nem por isso sentiu-se mais confortada, muito menos com o manto que lhe cobria.  Queria apenas de volta seu novo vestidinho vermelhinho – agora só em trapos sobre o asfalto de um domingo muito quente. E ela não entendia por que tão quente.

CRiga.


Histeria

Sangue nos zóio:
joga ácido, joga! Desbota esse vermelho!

Quem provoca fogo será queimado.
E triste é ver, nessa guerra daltônica,
que todo bombeiro vira bandido
só porque veste vermelho.

CRiga.