sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Diminuto

 


Há uma solidãozinha que cutuca o peito, sabe...

Um amargorzinho de folha em branco,
um medinho de não sei o quê.

Dorzinha fria que nem ponta de faca cega.
Uma sensaçãozinha de abstinência
frio na espinha
no meio da tarde de verão.

Bolinha murchinha murchinha,
moleques gritam as férias na quadra.
Palavrinhas à brisa morna, vão-se embora
me deixam sozinho, escória.

Agorinha eu tinha onde me escorar
ainda tenho onde morar, uma casinha
um sonho, uma cidadezinha.

Putinha essa sensação de nada
nadinha nadinha...

CRiga.


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Sapato velho

 


Uma das piores sensações de um homem
é o estágio em que ele sente vergonha
de seus sapatos.

É quando toda a humildade que ele sempre cultivou
não vale mais que a falta de lustre
e de couro.

Quando o engraxate se torna
padre confessor.

CRiga.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A hora

 


Um grilo confunde a noite.
Seria a paz, não fosse a morte.

Carros batem ao passar sinais vermelhos.
O sogro sangra no punhal o genro insano
sem grana pra comprar a droga.
No parto a mãe sorri ao filho
dizendo adeus, ela sabia, operação arriscada.

Seja estúpida, rasa, sem graça.
Seja injusta, em casa, na praça.

Uma certa paz de toda a forma ressurge
dizendo verdades e besteiras no funeral,
enquanto aos poucos a morte se envergonha de você
ainda vivo, à espera ou fugindo
fingindo ser imortal.

Uma cerveja no dia seguinte, que sorte!
Mas um grilo confunde a noite...
Seria a paz, não fosse a morte.

CRiga.
(fotos de Cauê Rigamonti)



terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Um suspirar profundo

 


Saudade é coisa que pega a gente, e a gente parece que não quer desapegar.


Uma sensação de dor gostosa, a saudade que não dói. Sabe? Cutucar o canto do dedo, bicho de pé, café meio amargo, aquela cachaça mineira que desce rasgando?

Saudade de alguém é assim, te tira um pouco do ar, você fica meio catatônico, mas gosta da sua própria cara de bobo quando vê a fotografia daquele ser que você quase esqueceu que ama. E percebe que nem o tempão que passou fez você sarar!

É coisa que remexe a gente lá dentro, parece sangue gelado cortando o coração de compasso letárgico. É sentir frio no verão do Rio. É mentir que tá tudo bem, que amanhã a gente vem pra festa, mentir com o que está escrito na testa! Ora, ora…

Saudade é coisa mesmo de curtir, mexer o gelo no copo do Scotch. Uma vontade de esticar o braço, abraçar, pousar as mãos sobre o rosto daquele ser tão distante, beijar! Ah, beijar… No beijo a saudade quase acaba. Mas sentir saudade junto a quem sente a mesma saudade é fogo na bomba!

Tem gente que fala em matar a saudade. Mata não… Deixa ela meio moribunda, mas não deixa morrer porque senão o amor perde sentido. Sentir a saudade começar a reviver é como ver aquela velha orquídea florescer.

Saudade é tocar dó ré mi fá na flauta doce, fechar os olhos e pensar no Bolero de Ravel!

CRiga.



segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Levanta ver quem chegou

 


O teu diabo cobra caro.
Muito caro.

Nó no peito,
pânico de morrer.

Aquele amigo Rivotril
vicia mais que a emoção.

Muito remédio na frente.
Conselho de gente.

Não quero visita.
Ter que sorrir.

Ficar calada preparando almoço
pros parentes que chegaram de repente.

CRiga.




sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Solidão dos dedos

 


Ácido
o passado às vezes corrói a pele
e eu sinto, sinto muito –
as mãos calejadas perderam o fogo
escondido entre as tuas pernas.

De um outro lado você passeia os dedos loucos
à meia-luz, sozinha
à frente da tela de um computador.

E eu sei, há a dor
ácida navalha sangrando lágrimas
num gozo frio de solidão.

CRiga.



quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

A seta


 

Olha, eu mudei.
Eu sei: ação e reação.

Você também precisa reagir a mim.
Mudar-se de mim.

Eu preciso agir, fingir
que o melhor mesmo é estar sozinho.

Eu hoje vi uma foto
de felicidades...

Nunca mais na morada juntos
nessa cidade.

Nunca mais,
namorada quem sabe.

CRiga.



Pureza

 


Eu vejo uma bela história de amor
sem toda tanta dor que senti.

Mas eu nem tenho este direito...
Não se pode querer postar os pares
nos lugares perfeitos da tua fotografia.

Não adianta adiantar-lhe
o olhar aos lábios –
a boca dela por enquanto só denuncia
a pisada na marca da amarelinha.

CRiga.



quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Fotografando espíritos

 


A espera parece mais longa quando a chuva cai. Meus amores, minhas dores – no asfalto molhado todos perambulam com seus guarda-chuvas, cada um com sua cor em uma via sem volta.

A espera é fera que hiberna nas trevas da alma. Ruge uma dor que ecoa do fundo da caverna úmida e que cheira a mato molhado.

Quem espera sempre dança a valsa da solidão no silêncio da casa fria. Casa com o padre, reza com o bêbado caído na esquina.

Me espera, não vai agora. Eu tenho cartões postais em branco pra gente sonhar. Um vestido de festa e outro de casamento. Um baú sem nada ainda, uma garrafa intocada de licor. Uma cama de solteiro, a gente joga o colchão no chão.

A chuva da espera molhou toda a minha casa, distraída deixei janela aberta pra alguém me invadir. Eu queria ter asas pra voar até alguém. A espera parece mais alta quando o céu se abre e o sol não traz mais novidades.

A espera se transforma, com as nuvens sombrias em torno da lua, na noite que cai da minha estante e se quebra mil caquinhos, um porta-retratos ainda com foto de revista. Um anjo azul de bibelô empoeirado, lembrança de um sobrinho que nasceu, cresceu e viajou ao estrangeiro.

A espera é acreditar em filho de virgem. Uma prece, me esquece, me marca num muro, prefiro ser Madalena. Me atira na vida. Mas não me espere chorar, no compasso do ponteiro do relógio parado vou te atraindo pra armadilha: serei a bruxa que vai te transformar no sapo, serás meu anfíbio de estimação, e você terá que esperar um beijo meu te libertar de novo. Só que meus lábios secarão com o ar de outono. Estaremos presos um ao outro.

A espera é o brejo feio e fedido da floresta negra das fábulas que assustam as crianças. É a impossibilidade de contar belas histórias aos casacos pendurados na cadeira da sala de jantar. É a solidão dos deuses loucos. É o dedo em todas as feridas da trouxa autocompaixão. Rasgar a carne, sangrar líquidos sem cor, chorar lágrimas imaginárias e etílicas de guaraná. E dormir soluçando baixinho esperando o despertador tocar pra espera recomeçar com o dia sem as flores à porta. Café amargo, janela aberta, estou pronta – que venham as cartas em branco que ontem enviei pra mim...

CRiga.



terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Escritório na varanda

 


A cabeça ferve letras, letrinhas.
A louça grita na pia, intrigas.
E eu insisto, aumento a fervura
da panela de pressão das ideias
enquanto corro o teclado
à procura de trincheiras.

CRiga.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Sabe o Poder?

 


A jazz rouca voz.
Uma brisa na tarde abafada.
Um novo romance.

Eu puxar você pela cintura
e a gente dançar pela praça.

Faça as malas que a gente vai viajar!

O solo do rock novo.
Água fresca no final da corrida.
Um olhar que sorri ao cruzar na calçada.

Eu desenlaçar o laço do teu vestido
sob a luz de um sol que entra pela janela.

Trame com ela
a trajetória de uma noite inteira!

CRiga.




sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Alma-gêmea

 


Quando você encontrar o blues
talvez seja eu
o blues a te encontrar.

CRiga.


Estrada do Funil

 


Faróis acesos na noite clara
vamos então cometer enganos
inventar amores
cores sabores rumores
e rimas.

Doce é a canção da água que corre
na margem contra a pedra
no rio das ideias que nos acompanha.

Cuidar nas curvas para não desafinar
nem desafiar a imortalidade
as leis da gravidade
e da relatividade:

melhor vivo do que morto,
torto a um simples careta.

Cometa o ato derradeiro –
me dê primeiro o teu coração.

São quantas estas velhas curvas
pra gente de novo se conhecer?

CRiga.
(fotos de Danilo Amélio)



quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Um dia de cada vez

 

É o que te resta no dia seguinte
depois da coragem dos vinte.

É o que te testa e você aguenta
depois da resiliência dos sessenta.

O que resta é muito.
O que testa também é.

Nunca é muito tarde
acordar e caminhar na praia
um dia de cada vez.

A festa no dia será o sol sorrindo
o rei nu te levando ao canto fresco
na arquibancada da arena.

E o sono na fresta da noite será a lua
a noiva que te conta num poema
aqueles segredos de virgem
que você já sabe tão bem.

Para Gilberto

CRiga.



quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Amor de verão

 


Uma folha cai

e o amor de verão despenca
no quadradinho do calendário.

Não suportará a graduação alcoólica
do vinho tinto francês.
Não contrairá a doença moderna
do rato conformado com pouco espaço
no apartamento muito bem mobiliado.

Pedirá licença pra fumar uma boa memória,
mas a história da área comum
é uma placa de advertência.

Filme europeu é gente demais vestida.
Na geladeira há uma cerveja esquecida
desde a comemoração do ano novo.

A vizinha vem todo dia apreciar histórias
de um verão como outro qualquer.

A vizinha vem
até quando a vizinha não está.

A mala esteve sempre pronta
pra voltar a viajar.

Não precisa saber desse tal de charme
da noite do inverno na cidade.  

Na praça só há cachorros encoleirados
e gente trotando uniformizada
correndo atrás do tempo
que sempre resiste serra abaixo.

Atrás da página arrancada
do mês que passou no calendário,
escreveu uma despedida:

“meu amor eu tou voltando
pra você.
Guardado quem sabe naquele próximo janeiro
no calendário que ainda nem saiu...”

CRiga.



terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Laisla

 


Laisla nasceu um dia
pra ser ilha tão linda
como reza uma canção.

Sonhos também lindos
navegaram mar aberto
contagiando simples pescadores
e fundando arquipélagos.

Laisla foi ilha bela
de um sonho de verão.
Talvez tivesse brotado do oceano
pra fazer sorrir
pra fazer chorar,
quem é que vai dizer...

Mas emergiu linda mesmo assim,
e se decidiu de ilha bela
tornar-se estrela infinita,
sua mensagem conseguiu deixar
na rede do pescador:

a mensagem do amor,
puro, simples
e eterno
como deve ser.

CRiga.
(Caderno Azul,
12 de agosto de 2001,
a uma criança que não nasceu)



segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Mail

 


Eu não tenho in box
nem out box.

Eu tenho é uma linda caixa de problemas
que o teu chato inglês enlatado
não quereria nunca resolver.

CRiga.