sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pra quem quer olhar

                                               

Os olhos não mentem. Isso é fato.
Sentem muito quando sofrem
e quando querem riem alto.

Eles olham no fundo da alma,
acalmam, eles também abraçam,
beijam e até te comem...

Os olhos se vestem de lápis e rímel,
óculos escuros e lentes mentirosas –
são perigosas as suas meninas.

Farol no caminho dos cegos,
tortos quando o amor os cega.

São pretos castanhos azuis verdes
amarelos e até vermelhos.
A morte na verdade tem olhos brancos.

São francos quando a alma os aperta.
Os olhos enxergam até a bebida
escondida debaixo do casaco.

Os olhos não negam a facilidade
e nem a doce boba felicidade
quando olham com o coração.

Flecham. Fecham a avenida.
Moem. Destroem a rival.
Sambam no feriado de carnaval.
Rezam fechados pedindo colírio
e perdão.

O padre tem olhos severos
destes que inventam o olhar de Deus.

O diabo tem olhares sinceros
destes que convertem até os ateus.

CRiga.



quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Toada de um amor vagabundo

 

Desmazelo
vovó diria
até o dia
que eu pedisse desculpas a Glorinha.

Amor cachorro…

Depois diria: “essa menininha é ouro”.
E eu dando no couro
mas evitando bisnetos dela –
no meu tempo santa é a camisinha.

Bandido!

Depois brigaria de novo.
Glorinha que era minha deu pra outro!
E vovó não sabendo de nada
disse o que parecia tudo:

Glorinha dá pra quem quer
e você que não a trate bem
que vai virar piada também
na cama de quem a comeu.

Peguei um trem.

Então matei Glorinha
e na volta chupando sorvete
apontei a mesma arma para vovó:

Mate que sou mesmo velha...
Pelo menos no inferno onde vou
ouvirei com gosto feito mãe ausente
Glorinha falando que amava você,
que doce diabinha!

Que graça que a vida tinha?

Vovó só morreu de velhice
e nem pito me trouxe na cadeia
antes de a corda amarrada no teto
dar cabo de minha vida
naquela cela fria.

Glorinha?
Virou santa e ganhou devotos
com pôsteres de borracharia.

CRiga.


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Vá pra puta que o pariu!

 

O que me resta
é apenas a festa
do meu silêncio
te dizendo adeus.
 
CRiga.

Pronto para o futebol

 

Terça-feira negra,
ninguém fala com ninguém.

O zagueiro da Série B
silencia a comemoração
em respeito ao atacante da seleção
que pegou Covid-19.

Gente careta planejando
a final da quarta-feira
enquanto trabalho num projeto.

Quinta-feira resolvo comprar jornal:
sexta-feira não tem futebol!

Sábado nem vejo
só estou churrasqueando.

No domingo da ressaca
até vale o tape da partida. 

Só não vale pedir música
nem soletrar hat trick.

Tem vezes que acertar o gol 
parece ser uma questão de escolha.

CRiga.


O idioma do desejo

Não adianta chorar
sobre a bebida derramada
na noite dos cantores.

Bebida doce,
e a menina enrolava a língua
num púbere castelhano
e num inglês de pop sueco
moreno latino americano.

Nem teve a chance
de enrolar a língua
também por doce embriaguez!

Não adianta se desculpar
pela espanhola derramada
entre os beijos, línguas
que não queriam tradução.

Queriam apenas a luta ardente,
entre as bocas, o desejo –
único idioma então corrente.

CRiga.


 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Vila Leopoldina

 

Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love ”*... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Eu demorei... um namorado viria vê-la amanhã, ele gostava de Beto Guedes e Belchior. Eu não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.

* “29 Palms”, Robert Plant


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Censura via rede social

 

A voz da minha consciência
via celular me segura
o grito contra o zap -
“What?”

Assiste à minha paz rir alto
no emoji mais amarelo da alegria.

E me devolve uma sangria
que sorri rangendo dentes
num boa noite imperativo.

Boa noite, meu amor!

Bons sonhos
eletrônicos ou não.

CRiga.



Compasso de espera

 

E por que
estou tentando tanto te corrigir
te agradar?

É pra você me conhecer
e de novo novamente
mais uma vez me reconhecer
reencontrar.

Quarta-feira é futebol.
Perdido eu sei que eu sou.

Pedindo tua atenção por enquanto,
o toca-discos não nos toca bem.

A cerveja acabou também.
Vamos então seguir sozinhos
cada um o sonho que lhe convém.

Vamos então dos besouros
que não nos lembram Liverpool
e brotam novos da terra de Piraju.

Vamos então das pedras
que rolaram lá de Londres
até parar ao lado da Estrada do Funil.

Vamos então de Marisa aos montes
verdes 
caetaneando chicos na vitrola
enquanto a aorta bate planejando
a nova colheita da futura horta.

CRiga.



A egotrip da vingança

 

Vou viver no limite íngreme
da minha alma que já não é tão pura.

E se você não vier de branco
feito anjo me salvar do devaneio,
vou ser mármore tão negra.

E se você não sorrir
e se você não me ouvir
e se você não me abraçar
e se você não existir...

E se você não vier?

Se você não vier
vou renascer das cinzas do que já sou.

Eu sou as cinzas que bóiam no teu ar,
que aterrorizam teus olhos sem cor
numa trágica noite de inverno,
depois do vento insano sem direção
invadir a tua casa decorada
morango de prateleira.

Só que você, metódica,
limpa a tua casa com talento,
lava o rosto petrificado
com sabonete neutro, água morna
e vai dormir,
como se não existisse o dia
que você me deu um beijo.

Como se eu não existisse,
como se eu fosse pedra vulgar
ou mármore tão negra.

Como se eu fosse ressuscitar
sem limites
no teu seguro lar tão puro.

Como se eu fosse o retrato velho
sobre a triste escrivaninha de cedro
esquecida no sótão escuro.

Como se eu fosse vírus
esperando tua hemorragia
me libertar do desespero.

Como se eu fosse o fóssil
daquele tiranossauro rex
que um dia quis ser bonzinho.

Como se eu fosse fácil,
como se eu fosse frágil,
como se eu tossisse sangue
feito poeta do Romantismo.

Vou viver no fútil limite
desta alma que só queria
ter você de fato um dia.

E se você vier assistir a meu desespero,
vou sorrir sarcástico,
dar adeus com a cabeça,
virar as costas
e voar sobre o penhasco.

E só sobrará teu eco dissonante
entre as montanhas seculares
naquela trágica noite de inverno:

“eu amo você...cê...cê...”

E ficará esperando resposta
no limite íngreme do penhasco,
e ficará esperando eu voltar de branco
feito anjo,
pra te salvar da tentação
de vir comigo devanear.

E ouvirá só o som da lágrima
contra a rocha seca,
que não ressoa eco
nem alivia a dor.

E rezará por mim
e pedirá minha proteção,

e lembrará os dias
em que nunca fui anjo
e quando roubei um beijo teu.

E desejará com a alma
eu não estar te vigiando
e continuar não sendo anjo
só pra roubar outro beijo teu.

E você viverá no limite íngreme
da tua alma então tão negra,

perdida no vale das pedras
mármores tão puras,

perdida nas noites escuras
que eu fundei
enquanto amei você.

CRiga.


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Alma do tempo

 

João pergunta a Maria:
“O que temos para comer?...”
Maria, seca no olhar, responde:
“nada, não, João...”

Eis que os olhares encontram
o brilho da colher polida.
Presente de casamento
de um amigo que morreu solteiro,
sem pai nem mãe,
sem ninguém pra dividir a dor.

E eis que fala Maria a João:
“Te amo, mesmo assim...”
E João, molhado o olhar, responde:
“Te amo também, pra sempre!...”

CRiga.



quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Não deixe aquela ideia de poesia fugir!

 

Está ali, ao lado do sofá

que a gente já não curte mais.

Cerca, entrou no vaso vazio
preciso comprar uma flor.

Mata, correu pra trás da cama
não durmo nunca mais com você!

Está no quarto das crianças, brinca
elas vão correr atrás de você também.

Não deixa passar pela sala sem perceber
fiz meu cabelo só pra você.

Não joga fora assim
você pode me machucar.

Queima então
mas dois peguinhas só.

Desarma a ratoeira
não precisa mais depois de tanto tempo,

faz tanto tempo que te amo!

CRiga.


quarta-feira, 21 de outubro de 2020

As horas que encolhem

 

Eu poderia morrer daqui a pouco.
Escrever uma canção de amor.
Tomar uma xícara de chá.
Esperar. Não sei bem o quê.

Viveria na marra, amarrado.
Não te daria o céu, meu bem,
nem usaria adoçante em vez de açúcar
até a hora de esquentar o teu almoço.

Quando moço eu tinha uma luz,
cantava o que viesse sendo bom.
Bebia nas esquinas, amigos meus
esperando de novo a nova noite.

Eu poderia ter morrido ontem,
mas antes eu escrevera sobre o amor.
Deixei de beber leite para crescer,
as horas encolhem. São 45 do segundo tempo...

CRiga.



terça-feira, 20 de outubro de 2020

Daltônico

 

O diabo amassa o trigo
pra fornada patriótica,
e Deus amansa a massa
pros discursos da patrulha.

Dá de comer ao Brasil
arroz com feijão sem pimenta
um grão de conhecimento
um sorriso de criança
uma rosa perfumada
qualquer que seja a cor –

apenas flor, nada mais,
não vigie nem invada
meu daltônico jardim.

CRiga.


segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Juventude hippiezinha ("gratidão")

 

Forço sorrisos bobos pra devolver
estes hippies pirulitos coloridos
enjoativos
dos olhares que perguntam
“tudo beeem?...”.

Forço bons ouvidos pra ouvir
os “tudo bem, grãçãs a deusss...”,
feito gravador com defeito
que também erra no auto reverse:
“grãçãs a deusss, tudo bemmm...”

Tenho melancólico orgulho
da minha infelicidade aparente.
Ela não mente, não precisa
e não quer mudar o mundo
nem ninguém.

CRiga.



sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Castelos de Areia

 

Cada punhado nosso
é moldado na esperança de parecer
sempre tão lindo e perfeito.

É um esforço incrível!
Não deixar nenhum grão cair
pelo caminho da areia quente.

É a velha e santa missão:
trabalhar com tanto cuidado,
fazendo o melhor que se aprendeu.
E o teu castelo sempre ali na margem
pra você corrigir alguns defeitos.

Mas você nem sabe
que tudo não passa apenas
de mais um domingo de sol.

Que uma hora a maré avança 
e que você precisa ir embora.

E de repente arrasado você percebe
que o vento natural da tua praia
também vai levando aqueles grãos.

Não adianta correr feito louco pela orla
com palavras bonitas ou ameaças –
já foi, voou, construindo outros castelos
que não têm mais nada a ver
com cuidados de filtro solar.

Resta sim aquela triste areia do fim da tarde
correndo rápido demais –
areia de ampulheta, o tempo é implacável
e você não percebeu.

E no mergulho no balde de água fria
você simplesmente cai em si –
mesmo assim, esperançoso
bobo,
com lágrimas na boca.

E da praia você sozinho apenas descreve
uma tarde do futuro –
um sol ameno, na varanda,
menos praia
a visita de domingo
a ver fotografias.

E aquela areia agora nos olhos
que só faz querer chorar.

CRiga.