sábado, 1 de outubro de 2022

Três de outubro

 


Hoje ensaiei falar de amor.

Desmoda da vitrine
da atual Rua Direita.

Desbota, mas colore atalhos
desde tempos em preto e branco.

A gente precisa falar de amor,
cantar gritar uma canção de amor!

Abrir a janela numa manhã apenas fresca
com a certeza do bom dia
e uma nova vida de segunda-feira.

CRiga.




sexta-feira, 16 de setembro de 2022

A doce guilhotina

 


A paixão move à arte,
o amor eterniza a obra.

A paixão escreve a história,
o amor mantém os mitos.

A paixão coroa os gritos,
o amor sibila a paz.

A paixão é o az da rodada,
o amor é o rei do jogo.

A paixão corre solta no pó da estrada,
o amor sopra tranquilo na alma da brisa.

A paixão é a tempestade,
o amor é a casa no campo.

A paixão destrói a fortaleza,
o amor instaura o jardim.

A paixão faz bater nas paredes
a cabeça que insiste pensar,

o amor
a decepa de vez.

CRiga.





segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Drops

 


Beijava o drops cereja
com promessas de para-sempre.

Mas o para-sempre perdeu o gosto,
e no bolso coube a vida inteira
dentro da carteira, uma foto desbotada.

Relançaram o drops nesse verão.
E eu não beijei,
só lembrei...

CRiga.


quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Não mais a gente no sofá

 


Polir os discos que ficarão pra você.
É bom lavar de vez quando.
O tempo junta pó nos sulcos
risca solos de guitarra
apaga sorrisos de fotografia.

Ensinar a ligar a vitrola.
Não é legal colocar no automático.
A alma vive do preciso exercício
até a faixa certa
até o ponto G.

CRiga.


terça-feira, 16 de agosto de 2022

Você precisa decorar aquela velha canção

 


Há um céu azul de nuvens desintegradas, morrendinho, o sol tá indo pro Japão. É quando a gente torce pro sol ficar mais um pouquinho e dar mais uns acordes no imaginário violão.

Mas vai ficando escuro, aos poucos, e a noite faceira dá aquele sorrisinho de tou chegando… É quando pinta a dúvida se você nasceu pro dia ou pra noite…

Mas logo vem o veneno: aquele ar difuso, aroma cortante na brisa fresca, musical, que nunca vai te agredir, nunca vai deixar de sorrir feito figura de mãe te sorrindo na lua. É quando a rua começa a te chamar, colega, amiga, amante! E você vai, sem pressa, sem compromisso, criança tateando aprendendo a andar, cair, levantar de novo, sorrir, cantar, amar por um segundo, chorar, tomar o sorvete e a água da madrugada - e finalmente se acalmar.

Algo parecido com sono vem te perturbar. E você reluta, nunca a tarde dessa noite vai te derrubar! E você levanta, dança feito louco na avenida vazia, até queria ouvir alguém buzinar. Amigos cantam uma velha canção, você não sabe a letra inteira, mas acompanha no refrão.

É quando você vê aos poucos a cor do asfalto mudar. Mais claro, algumas poças denunciam uma luz que não a dos postes amigos de apoio. E como fazia tempo  você não olhava mais ao céu, resolve conferir se a ampulheta ainda corre na lua e nas estrelas - mas um azulzinho marinho insiste em desbotar a noite.

O sol começa a gargalhar na sua cara, soberano, vencedor. Pra você acabou, meu chapa, o português já tá assando a primeira fornada de pão.

É quando você vira de lado, vê a motinha pipocando na esquina entregando os jornais com as notícias de ontem. Mas, como sempre nunca derrotado, você toma de volta do universo louco a ampulheta parada, sequestrada. E num gesto a la mais doce revolución, fincado último soldado da trincheira, vira de novo a areia correndo a vida tudo de volta:

Cadê o violão do novo luau? Cadê a letra daquela velha canção que você ainda precisa decorar?

CRiga.



domingo, 7 de agosto de 2022

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Um engano de vida

 


Na sua solidão de fila no caixa-eletrônico, pensava em relatórios e contas.  “Oi!”, ela disse, tão linda menina. “Não se lembra de mim, não é?”, emendou, logo com um beijinho no rosto. Não se lembrava. “Ah, devem ser os óculos novos...”. Tirou.

Ele ainda franzia levemente as sobrancelhas, como quem se esforçava em tentar lembrar. “Puxa, não se lembra?”, insistiu ela, olhinhos tristezinhos. Os óculos dele, de aros pretos, também eram novos - por isso os tirou pensando estar com a vista atrapalhada.

“Ai meu Deus, me desculpe... pensei que fosse um amigo meu... desculpe”, foi-se, encolhida, correndinha.

Ele ficou olhando ela ir, parado no tempo, esperando um beijinho de volta. Desabou na decepção de se lembrar quem ele mesmo era. Devagar, vagando, colocou de volta os óculos novos, e reafundou-se em sua solidão de filas, relatórios e contas exatas do salário. Tudo consumido no sustento do lar materno, nada sobraria no fim do mês. Nada.

Só a voz da mãe, irritante: “bonitos óculos, meu filho... você ficou muito bem”.

CRiga.



terça-feira, 2 de agosto de 2022

Militância das flores

 


Há um Brasil que insiste
invadir minha história de amor.

Trocam-se flores multicores
pelo amarelo e vermelho –
as flores não ficam tão tristes
desde os tempos de Vandré.

Trocam-se poemas por discursos.
A carta anônima romântica
depositada na caixinha do correio,
vira fraca denúncia estampada
em qualquer página de jornal.

Troca-se perfume por gás lacrimogêneo,
vestido chita por camiseta chiita.
Troca-se convite a um passeio
por convocação a passeata.

Eu prefiro sim a flor colhida
à morta pisada no canteiro.
Um coração partido
a tomar partido do terror.

Há um Brasil que resiste
se reinventar histérico
na minha história de amor.

CRiga.



sexta-feira, 15 de julho de 2022

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Um olhar profissional

 


Encontrei de novo às duas da manhã. Depois da boate, das bebidas, dos cigarros. Depois de você vender seu corpo a quem pagasse bem, loira linda que você é. Não ia pagar. Não ia querer ter teu corpo por profissão. Apesar de querer muito, como queria!... Mas pagar seria me trair e matar o seu olhar. O seu olhar brilhante naquela meia luz de boate. Olhar pra mim, sentado te amando com os olhos, uma vida inteira. Um sorrisinho meigo de canto. Fugi na noite pra encontrar você.

O mesmo olhar brilhante agora sobre aquele viaduto, você de cima, no peitoril, o decote e os seios lindos apoiados no concreto muito velho do Centro da cidade. Os meus olhos acompanhavam teu corpo, horizontal saindo do peitoril até o par de pernas, cruzadas à altura da canela, um pezinho de ponta, ao lado do outro, de apoio. Linda, de blusinha vermelha e saia jeans preta. Sapatinhos pretos também, tipo bailarina, de pano. E os olhos brilhantes olhando o nada além daquele viaduto. E mais aquele sorrisinho meigo de canto, na boca batom vermelho.

E me perguntava se valia a pena ir conversar contigo. Se me daria atenção, apesar dos olhos brilhantes lá na boate. Pensava: bobagem minha, não vi olhar pra mim. E me contrariava. Não, eram pra mim, sim! Diferente daquele olhar profissional caçando homens. Olhou pra mim de forma diferente. Olhou sim!... Olhou?... E o sorriso, aquele cantinho da boca linda vermelha era meu? Era meu, só podia ser, só eu vi!... Eu vou lá!

Daí cheguei.

Boa noite.

Oi.

Distante?...

É...

Cansada?

Não...

Esperando algo?

Já encontrei!...

Beijos. Mais beijos, fundos, profundos, ardentes. O batom vermelho borrava minha boca, minha mão já passeando por baixo da tua saia, a tua mão por baixo da minha calça. Linda, loira!... Duas da manhã, ninguém passava, você agora sentada no peitoril, eu no meio de teu lindo par de pernas, e a noite que era quente demais!... Quente. Explosão. Morno. Suor. Sorrisos. Olhar brilhante. Profissional...

Aqui é um pouco mais caro, amor. Um pouquinho só...

Um olhar profissional. O meu, de brilhante a fosco. Cor da noite quente vermelho Vênus ferido sangrando por cima da minha cabeça quente zoeira olhar profissional se apagando um empurrão um grito uma noite um olhar distante um olhar mais distante um barulho seco no asfalto quente lá embaixo. Um olhar profissionalmente morto no asfalto quente vivo.

O meu olhar era de verdade. E não mentiu nem na hora que o desapontamento vermelho apagou seu brilho. Fui embora, ninguém viu nada. Voltei pra boate. Paguei no caixa. Me deixei esquecer. Sirenes ecoavam. Eu bebia uma cerveja.

CRiga.


terça-feira, 12 de julho de 2022

O morro que não é mais nosso

 


As mazelas esperneiam
e o esperma corre as pernas.
É quando o triste fecundador
desiste do mundo mundano –
um bebê morre anjo
feliz angelical.

As janelas estão fechadas
e os beirais têm rosas secas.
A cidade está de olhos cerrados,
fingindo um sono, talvez embriaguez,
para aliviar a dor.

A luz da tevê ilumina um barraco,
e o cheiro do jantar se mistura
ao pó da casa fechada
em pleno verão.

Os gritos daquelas crianças
estilhaçando as alegrias de infância,
hoje fazem parte da canção de ontem
no vinil velho comido pelo tempo.

O batom que era da camisa de seda
virou sangue de execução na mesma esquina,
onde cantava a boemia
uma vida mais bonita.

Aquela seresta virou faroeste,
e o oeste virou medo no pôr-do-sol –
é quando morre na esquina
mais um inocente trabalhador.

Não há caminho de volta ao lar –
há via crucis no chão de terra batida
onde Cristo podia bem ter caminhado,
não fosse a cruz virar arma branca
pra dar na cabeça de bandido
e de penhora à polícia.

Não há caminho aos novos fecundadores –
o espermatozoide tem medo da missão
e canta assoviando uma musiquinha
sucesso de antigamente,
pra disfarçar sua tristeza
de ter que dizer não.

CRiga.



quarta-feira, 29 de junho de 2022

Vila Leopoldina

 


Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love ”*... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Eu demorei... um namorado viria vê-la amanhã, ele gostava de Beto Guedes e Belchior. Eu não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.


terça-feira, 28 de junho de 2022

Procissão de São João

 


Destrua os olhos roxos
querendo esconder pecado.
O mais pecado dos pecados –
ousar não ter pecado.

O suor do santinho a caminho
daquela fontezinha artificial
não purifica o asfalto caro
amanhã forrado de santinhos
de campanha eleitoral.

Os fogos do céu são bonitos
tão bonitos quanto o fogo
debaixo das saias das meninas.

Não creio em fonte, creio no fogo
que não mente nos olhos roxos
que não sente por pecar
e que vive santo, sem machucar.

O pecado mora aqui mesmo
não precisa procurar ao lado.

CRiga.



quarta-feira, 22 de junho de 2022

Dias eternos de amores modernos

 


Lídia olhava a caixinha de música quebrada. Deveria chorar, mas não chorava. A bailarina manca e a música desafinada já não afetavam mais.

Lídia não esqueceu o batom vermelho na bolsa, nem o preservativo comprado, em segredo, naquela farmácia de esquina. A inveja da solteirona do balcão podia denunciar. “Foda-se!”, palavra da moda.

Lídia deixou pra trás uma vida de menina. Perdeu vontade de chorar por brinquedo quebrado, perdeu a atenção nos bordões da mãe, perdeu a doce virgindade lenda das conversas de chá da tarde.

Enquanto destoava nos gemidos, misto de dor e de novo prazer, uma bailarina manca fazia as malas. Não havia príncipe nessa história de amores perfeitos, porque nem Lídia esperava telefonemas de dias seguintes.

Nem mesmo aquele soldadinho de chumbo, herói de outrora a declamar poemas ao pé da caixinha, havia mais – perdeu uma perna na guerra da puberdade, e aposentou-se beberrão numa cadeira de rodas pela cidade dos brinquedos fantasmas.

E o amor, descrito num velho livro de contos de fadas, agora apenas mascava chicletes despreocupado, parado na chuva com guarda-chuva furado, esperando um ônibus qualquer.

CRiga.


sexta-feira, 17 de junho de 2022

À minha professora

 


Dona Dalva,
minha professora de português.

Falava também francês!

Estrela de blush e batom sem brilho
de um lindo e amarelo Fiat 147.

Ofereceu carona
a adolescentes encharcados pela chuva
a caminho da escola.

“Por que não veio no dia da prova?”
Porque quis perder a hora
brincando com minha irmã...

“Pois então sente aqui,
faça essa prova agora por mim.”

Fiz dez, que beleza!

Dona Dalva sorria fonemas
de amor à Língua Portuguesa.  

CRiga.


quarta-feira, 8 de junho de 2022

Poesia está de mal

 


Letras fogem
relegadas demais
ao ganha-pão.

Elas precisam
é de mais romance
e menos chantili.

Elas cantam na tua harmonia.
Mas se afinas demais a voz
perdem a graça da simplicidade.

Voam com tucanos ou urubus.
Mas se insistes só fotografar
caem bicho empalhado pra prêmio.

Sussurram sonolentas,
mas ávidas à madrugada!
Se dormes, elas roncam.

Elas tilintam nos cristais polidos.
Mas se bebes num gole
viram putas velhas das esquinas.

Elas têm gosto de batom no beijo.
Drops de cereja. Cerveja quente
se te embriagas tão facilmente.

Brilham nas palavras brancas do sorriso,
elas declamam a poesia entre os dentes.
Não mastigue – são hóstia de santificar.

Dá-lhes, então, atenção.
Não as faça apenas palavras
de uma simples profissão.

CRiga.


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Engula a vida

 


Pode ser caco de vidro -
diamante sofrido
ou copo americano.

Importante é engolir
com a alma do garimpeiro que agradece
a pepita do dia.

Nunca com o desespero
do alcoólatra no balcão de um bar.

CRiga.