quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Um engano de vida

 


Na sua solidão de fila no caixa-eletrônico, pensava em relatórios e contas.  “Oi!”, ela disse, tão linda menina. “Não se lembra de mim, não é?”, emendou, logo com um beijinho no rosto. Não se lembrava. “Ah, devem ser os óculos novos...”. Tirou.

Ele ainda franzia levemente as sobrancelhas, como quem se esforçava em tentar lembrar. “Puxa, não se lembra?”, insistiu ela, olhinhos tristezinhos. Os óculos dele, de aros pretos, também eram novos - por isso os tirou pensando estar com a vista atrapalhada.

“Ai meu Deus, me desculpe... pensei que fosse um amigo meu... desculpe”, foi-se, encolhida, correndinha.

Ele ficou olhando ela ir, parado no tempo, esperando um beijinho de volta. Desabou na decepção de se lembrar quem ele mesmo era. Devagar, vagando, colocou de volta os óculos novos, e reafundou-se em sua solidão de filas, relatórios e contas exatas do salário. Tudo consumido no sustento do lar materno, nada sobraria no fim do mês. Nada.

Só a voz da mãe, irritante: “bonitos óculos, meu filho... você ficou muito bem”.

CRiga.



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