sexta-feira, 15 de julho de 2022

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Um olhar profissional

 


Encontrei de novo às duas da manhã. Depois da boate, das bebidas, dos cigarros. Depois de você vender seu corpo a quem pagasse bem, loira linda que você é. Não ia pagar. Não ia querer ter teu corpo por profissão. Apesar de querer muito, como queria!... Mas pagar seria me trair e matar o seu olhar. O seu olhar brilhante naquela meia luz de boate. Olhar pra mim, sentado te amando com os olhos, uma vida inteira. Um sorrisinho meigo de canto. Fugi na noite pra encontrar você.

O mesmo olhar brilhante agora sobre aquele viaduto, você de cima, no peitoril, o decote e os seios lindos apoiados no concreto muito velho do Centro da cidade. Os meus olhos acompanhavam teu corpo, horizontal saindo do peitoril até o par de pernas, cruzadas à altura da canela, um pezinho de ponta, ao lado do outro, de apoio. Linda, de blusinha vermelha e saia jeans preta. Sapatinhos pretos também, tipo bailarina, de pano. E os olhos brilhantes olhando o nada além daquele viaduto. E mais aquele sorrisinho meigo de canto, na boca batom vermelho.

E me perguntava se valia a pena ir conversar contigo. Se me daria atenção, apesar dos olhos brilhantes lá na boate. Pensava: bobagem minha, não vi olhar pra mim. E me contrariava. Não, eram pra mim, sim! Diferente daquele olhar profissional caçando homens. Olhou pra mim de forma diferente. Olhou sim!... Olhou?... E o sorriso, aquele cantinho da boca linda vermelha era meu? Era meu, só podia ser, só eu vi!... Eu vou lá!

Daí cheguei.

Boa noite.

Oi.

Distante?...

É...

Cansada?

Não...

Esperando algo?

Já encontrei!...

Beijos. Mais beijos, fundos, profundos, ardentes. O batom vermelho borrava minha boca, minha mão já passeando por baixo da tua saia, a tua mão por baixo da minha calça. Linda, loira!... Duas da manhã, ninguém passava, você agora sentada no peitoril, eu no meio de teu lindo par de pernas, e a noite que era quente demais!... Quente. Explosão. Morno. Suor. Sorrisos. Olhar brilhante. Profissional...

Aqui é um pouco mais caro, amor. Um pouquinho só...

Um olhar profissional. O meu, de brilhante a fosco. Cor da noite quente vermelho Vênus ferido sangrando por cima da minha cabeça quente zoeira olhar profissional se apagando um empurrão um grito uma noite um olhar distante um olhar mais distante um barulho seco no asfalto quente lá embaixo. Um olhar profissionalmente morto no asfalto quente vivo.

O meu olhar era de verdade. E não mentiu nem na hora que o desapontamento vermelho apagou seu brilho. Fui embora, ninguém viu nada. Voltei pra boate. Paguei no caixa. Me deixei esquecer. Sirenes ecoavam. Eu bebia uma cerveja.

CRiga.


terça-feira, 12 de julho de 2022

O morro que não é mais nosso

 


As mazelas esperneiam
e o esperma corre as pernas.
É quando o triste fecundador
desiste do mundo mundano –
um bebê morre anjo
feliz angelical.

As janelas estão fechadas
e os beirais têm rosas secas.
A cidade está de olhos cerrados,
fingindo um sono, talvez embriaguez,
para aliviar a dor.

A luz da tevê ilumina um barraco,
e o cheiro do jantar se mistura
ao pó da casa fechada
em pleno verão.

Os gritos daquelas crianças
estilhaçando as alegrias de infância,
hoje fazem parte da canção de ontem
no vinil velho comido pelo tempo.

O batom que era da camisa de seda
virou sangue de execução na mesma esquina,
onde cantava a boemia
uma vida mais bonita.

Aquela seresta virou faroeste,
e o oeste virou medo no pôr-do-sol –
é quando morre na esquina
mais um inocente trabalhador.

Não há caminho de volta ao lar –
há via crucis no chão de terra batida
onde Cristo podia bem ter caminhado,
não fosse a cruz virar arma branca
pra dar na cabeça de bandido
e de penhora à polícia.

Não há caminho aos novos fecundadores –
o espermatozoide tem medo da missão
e canta assoviando uma musiquinha
sucesso de antigamente,
pra disfarçar sua tristeza
de ter que dizer não.

CRiga.