terça-feira, 25 de janeiro de 2022

A hora

 


Um grilo confunde a noite.
Seria a paz, não fosse a morte.

Carros batem ao passar sinais vermelhos.
O sogro sangra no punhal o genro insano
sem grana pra comprar a droga.
No parto a mãe sorri ao filho
dizendo adeus, ela sabia, operação arriscada.

Seja estúpida, rasa, sem graça.
Seja injusta, em casa, na praça.

Uma certa paz de toda a forma ressurge
dizendo verdades e besteiras no funeral,
enquanto aos poucos a morte se envergonha de você
ainda vivo, à espera ou fugindo,
fingindo ser imortal.

Uma cerveja no dia seguinte, que sorte!
Mas um grilo confunde a noite...
Seria a paz, não fosse a morte.

CRiga.
(fotos de Cauê Rigamonti)



segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Sapato velho

 


Uma das piores sensações de um homem
é o estágio em que ele sente vergonha
de seus sapatos.

É quando toda a humildade que ele sempre cultivou
não vale mais que a falta de lustre
e de couro.

Quando o engraxate se torna
padre confessor.

CRiga.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Um suspirar profundo

 


Saudade é coisa que pega a gente, e a gente parece que não quer desapegar.

Uma sensação de dor gostosa, a saudade que não dói. Sabe? Cutucar o canto do dedo, bicho de pé, café meio amargo, aquela cachaça mineira que desce rasgando?

Saudade de alguém é assim, te tira um pouco do ar, você fica meio catatônico, mas gosta da sua própria cara de bobo quando vê a fotografia daquele ser que você quase esqueceu que ama. E percebe que nem o tempão que passou fez você sarar!

É coisa que remexe a gente lá dentro, parece sangue gelado cortando o coração de compasso letárgico. É sentir frio no verão do Rio. É mentir que tá tudo bem, que amanhã a gente vem pra festa, mentir com o que está escrito na testa! Ora, ora…

Saudade é coisa mesmo de curtir, mexer o gelo no copo do Scotch. Uma vontade de esticar o braço, abraçar, pousar as mãos sobre o rosto daquele ser tão distante, beijar! Ah, beijar… No beijo a saudade quase acaba. Mas sentir saudade junto a quem sente a mesma saudade é fogo na bomba!

Tem gente que fala em matar a saudade. Mata não… Deixa ela meio moribunda, mas não deixa morrer porque senão o amor perde sentido. Sentir a saudade começar a reviver é como ver aquela velha orquídea florescer.

Saudade é tocar dó ré mi fá na flauta doce, fechar os olhos e pensar no Bolero de Ravel!

CRiga.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Playlist

 


Há um compasso em cada passo
determinado a ser feliz.

Um ritmo de entortar as esquinas
quando a vida resolve mudar de faixa.

A música acaba, a vida não.
Há quem só caminhe
esperando a próxima canção.

CRiga.




terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Pureza

 


Eu vejo uma bela história de amor
sem toda tanta dor que senti.

Mas eu nem tenho este direito...
Não se pode querer postar os pares
nos lugares perfeitos da tua fotografia.

Não adianta adiantar-lhe
o olhar aos lábios –
a boca dela por enquanto só denuncia
a pisada na marca da amarelinha.

CRiga.


sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Fotografando espíritos

 


A espera parece mais longa quando a chuva cai. Meus amores, minhas dores – no asfalto molhado todos perambulam com seus guarda-chuvas, cada um com sua cor em uma via sem volta.

A espera é fera que hiberna nas trevas da alma. Ruge uma dor que ecoa do fundo da caverna úmida e que cheira a mato molhado.

Quem espera sempre dança a valsa da solidão no silêncio da casa fria. Casa com o padre, reza com o bêbado caído na esquina.

Me espera, não vai agora. Eu tenho cartões postais em branco pra gente sonhar. Um vestido de festa e outro de casamento. Um baú sem nada ainda, uma garrafa intocada de licor. Uma cama de solteiro, a gente joga o colchão no chão.

A chuva da espera molhou toda a minha casa, distraída deixei janela aberta pra alguém me invadir. Eu queria ter asas pra voar até alguém. A espera parece mais alta quando o céu se abre e o sol não traz mais novidades.

A espera se transforma, com as nuvens sombrias em torno da lua, na noite que cai da minha estante e se quebra mil caquinhos, um porta-retratos ainda com foto de revista. Um anjo azul de bibelô empoeirado, lembrança de um sobrinho que nasceu, cresceu e viajou ao estrangeiro.

A espera é acreditar em filho de virgem. Uma prece, me esquece, me marca num muro, prefiro ser Madalena. Me atira na vida. Mas não me espere chorar, no compasso do ponteiro do relógio parado vou te atraindo pra armadilha: serei a bruxa que vai te transformar no sapo, serás meu anfíbio de estimação, e você terá que esperar um beijo meu te libertar de novo. Só que meus lábios secarão com o ar de outono. Estaremos presos um ao outro.

A espera é o brejo feio e fedido da floresta negra das fábulas que assustam as crianças. É a impossibilidade de contar belas histórias aos casacos pendurados na cadeira da sala de jantar. É a solidão dos deuses loucos. É o dedo em todas as feridas da trouxa autocompaixão. Rasgar a carne, sangrar líquidos sem cor, chorar lágrimas imaginárias e etílicas de guaraná. E dormir soluçando baixinho esperando o despertador tocar pra espera recomeçar com o dia sem as flores à porta. Café amargo, janela aberta, estou pronta – que venham as cartas em branco que ontem enviei pra mim...

CRiga.


quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Sabe o poder?

 


A jazz rouca voz.
Uma brisa na tarde abafada.
Um novo romance.

Eu puxar você pela cintura
e a gente dançar pela praça.

Faça as malas que a gente vai viajar!

O solo do rock novo.
Água fresca no final da corrida.
Um olhar que sorri ao cruzar na calçada.

Eu desenlaçar o teu vestido
sob a luz de um sol que entra pela janela.

Trame com ela
a trajetória de uma noite inteira!

CRiga.


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Um dia de cada vez

 


É o que te resta no dia seguinte
depois da coragem dos vinte.

É o que te testa e você aguenta
depois da resiliência dos sessenta.

O que resta é muito.
O que testa também é.

Nunca é muito tarde
acordar e caminhar na praia
um dia de cada vez.

A festa no dia será o sol sorrindo
o rei nu te levando ao canto fresco
na arquibancada da arena.

E o sono na fresta da noite será a lua
a noiva que te conta num poema
aqueles segredos de virgem
que você já sabe tão bem.

Para Gilberto

CRiga.



segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Escritório na varanda

 


A cabeça ferve letras, letrinhas.
A louça grita na pia, intrigas.
E eu insisto, aumento a fervura
da panela de pressão das ideias
enquanto corro o teclado
à procura de trincheiras.

CRiga.