quinta-feira, 28 de setembro de 2017

O morro que não é mais nosso

(foto de Antonio Lacerda)

As mazelas esperneiam
e o esperma corre as pernas.
É quando o triste fecundador
desiste do mundo mundano –
um bebê morre anjo
feliz angelical.

As janelas estão fechadas
e os beirais têm rosas secas.
A cidade está de olhos cerrados,
fingindo um sono, talvez embriaguez,
para aliviar a dor.

A luz da tevê ilumina um barraco,
e o cheiro do jantar se mistura
ao pó da casa fechada
em pleno verão.

Os gritos daquelas crianças
estilhaçando as alegrias de infância,
hoje fazem parte da canção de ontem
no vinil velho comido pelo tempo.

O batom que era da camisa de seda
virou sangue de execução na mesma esquina,
onde cantava a boemia
uma vida mais bonita.

Aquela seresta virou faroeste,
e o oeste virou medo no pôr-do-sol –
é quando morre na esquina
mais um inocente trabalhador.

Não há caminho de volta ao lar –
há via crucis no chão de terra batida
onde Cristo podia bem ter caminhado,
não fosse a cruz virar arma branca
pra dar na cabeça de bandido
e de penhora à polícia.

Não há caminho aos novos fecundadores –
o espermatozóide tem medo da missão
e canta assoviando uma musiquinha
sucesso de antigamente,
pra disfarçar sua tristeza
de ter que dizer não.

CRiga.


quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A vida cavalga


É o inverno que muda as coisas, me faz lembrar de você de novo como se eu fosse a culpada por não ser feliz. Talvez seja mesmo, talvez você nem se lembre mais de mim, então remexo velhos pertences e não me encontro, só encontro você. Remexo números, não te encontro, ligo à telefonista, simpática, quase chora comigo, esses homens que nos esquecem são foda... Esse é o número mais próximo, então ligo, você não está mais lá, mas alguém diz “ele está em tal lugar”. A telefonista me dá então a porra do número do tal lugar, sem certeza penso te encontrar, alguém atende pelo teu nome, te encontro, é você, meu antigo amor!

Simpático como sempre! Casado, mas simpático. Com um filho, mas tão amoroso como sempre. Mudei de casa, você não sabia, e você me disse que foi me procurar numa noite com flores e vinho às mãos, e que por isso não me encontrou. Mentirinha bonitinha, me conquistou. Que saudades de você, do seu beijo, do seu abraço, do seu amasso. Acho que aproveitei pouco, muito pouco, não te dei devida atenção, eu sei, me arrependo, sou libriana, quero tudo vindo, quase nada indo.

Mudei de jeito também, você não sabe? Não saio mais em tantas baladas, parei de fumar, me conheço mais, gosto mais de mim, estou só um pouquinho mais gordinha, sem tanta diferença, acredite, estou mais bonita. E não cavalgo mais, você acredita? Eu também. Só falta você pra completar, mas não tenho coragem de dizer. A vida cavalga, eu parei.

Determinado momento você disse que é importante agarrar as chances quando elas vêm. Não esperar que aconteça, apenas estar esperta para a hora que acontecer. Sei que não foi por querer, mas parece que isso me feriu lá dentro, sem você perceber. Eu sei que não foi por mal, meu amor, nada vai me fazer tão mal quanto esta vontade de te pedir desculpas sem tempo, essa vontade louca de voltar no tempo e te agarrar, esperar que aconteça e estar esperta para fazer acontecer.

Bem, me ligue um dia também. Vamos sair, quase eu disse, tomar um chope, você não pode, agora tem família e não vou insistir. É errado, nem sei se tenho coragem. Acho que teria, te beijar de novo como antes valeria. Matar-me mais um pouco por não ter você, recriar-me por segundos eternos nos teus braços que um dia me tiveram mulher. 

É o inverno que muda as coisas assim, faz a gente amanhecer cinza com saudades do passado que passou entre os dedos, feito areia de ampulheta que a gente não agarrou. Eu te amava e não sabia, me perdoe, meu amor. Seja feliz, seja feliz, vou desligar. Eu ainda tenho a poesia que você fez pra mim, preciso desligar pra não chorar. A vida cavalga, eu não mais...


CRiga.


segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Áries


Bota seu batom vermelho
o único, o melhor.
Quero te sangrar com a vida que sou.
Eu sou.
Eu sorrio.
Só quem compartilhou a alma dessa doce vibração
pode dizer-se livre, ariano.
Como um passeio de bicicleta,
um pedido de desculpas.
Um trovão à meia-noite!

Para minha amiga,
Alessandra Nalio.


CRiga.


sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Boa sorte


A garota maquia o rosto, refaz o sorriso.
Há vários séculos há várias esperanças –
os anos dirão sobre pontos a chegar.
Ela não precisa de pontos cardeais
nem de padres ou bispos,
ela não quer aprender xadrez.

Há uma discreta sentença no olhar de lado.
Deixe dizer e sorrir juventudices,
tem tempo.
Peça que sabe sim fazer a tempo,
não é peninha boiando
ao bel-prazer de qualquer brisa.

Perdidos somos nós, há um medo
simples de nos assumir poetas.
Versos que correm inteiros soberanos
no vácuo do olhar de lado,
não compreendem plenamente
o tamanho da peninha que bóia.


CRiga.


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Vila Leopoldina


Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love”... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Ele demorou... um namorado viria vê-la amanhã, gostava de Beto Guedes e Belchior. Ele não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.



quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Chovendo elefantes


Quando for água só quero ouvir
o som do pneu contra o asfalto
falando alto à alma sedenta
cheiro da chuva, selvagem poesia.

Por enquanto acidentes acontecem
todo dia.
Nunca aprendi no circo da vida
domar paquidermes para o show.

Agora fecho o guarda-chuva furado
dou de comer, finjo a seriedade
dos ativistas do Greenpeace.

Cheguei até aqui, promessas quebradas,
ruas desertas, feridas abertas  
manchando apenas os cadernos.

Que meu sangue sirva na transfusão
aos pobres elefantes que passarão.

CRiga.



terça-feira, 19 de setembro de 2017

Um flash de olhos verdes


A cada sino que bate nessa porra de vida
a gente vê que é chegada a hora
que a hora sempre chega, rapaz,
e que seu fraque lindo preto que quis salvar
não conseguiu te desviar

Nem mesmo os horizontes de amigos seus
uma nova casa
um novo emprego
puderam te fazer enxergar outra estrada
que não aquela que você foi.

Eu sei que foi assim, rapaz,
olhar distraído contraído no coração...
A vida tem dessas, mas não era pra acabar assim,
um flash moleque de olhos verdes
apenas assim olhando pra frente
ligando a moto e indo embora.

Magrelo filho da pota!
Cadê tua foto que não chega mais?....
Aquela cerveja foi tarde demais
a mesa não tem graça assim
sem flash e molecagem...
...vai, tudo bem,

A gente se vê
fotografando anjos e estrelas
sem chefes nem fechamentos
numa dessas pautas loucas aí do céu!...

Para o amigo irmão, Edu Venâncio.
10 anos, filadapôta!

CRiga.
(19 de setembro de 2007)


segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Ponto de desencontro


Só te chamei pra perguntar se é só eu quem sofre essa dor de desencontro. Se é sou eu quem sente esses sinais do tempo, nos sonhos, quando a gente se encontra e acorda triste, feito coração partido pela metade. Se só sou eu quem se sente boiando num céu azul de missões, feito enfeite pendurado no teto, de lá pra cá, à mercê dos ventos que entram pelas nossas janelas abertas. Por favor, fique e me diga que não sou eu apenas quem espera um dia, nesta vida ou não, estar ao lado da alma dos tempos imemoriais.

Sim, isto tudo parece loucura, é muito mais poesia romântica que sensatez, tudo bem: não precisa se sentir sem jeito por atender ao chamado de alguém que você não via há tempos, alguém que não consegue deixar-te apenas sobrevivente. Não me olhe assim, com esse rosto de quem quer condenar Nero à própria fogueira, e fugir deixando para trás as cinzas que também são suas. Eu sei que você se disfarça como eu, à espera, à espreita, de longe, não quero nem te desviar de qualquer caminho que te faça segura sobrevivente, apenas quero uma resposta que nos conforte por ora, o resto de nossas missões.

Eu só quero saber se você também sente um coração nublado de vez em quando, quando você acorda, uma vontade de uma lágrima apenas, no canto do rosto gelado, pra lamentar essa ausência de você mesmo. Só quero saber se você também carrega consigo estas mesmas saudades do que nunca foi, mas com rostos e almas tornadas penduricalhos brilhantes naquele teto azul de Deus sozinho lá em cima, brincando de missões.

Se você não quiser responder, tudo bem... Vamos voltar à vida de sobreviventes, com sorrisos e afetos fáceis e outros sinceros também, de luta intensa no silêncio descomunal e confortante de deuses solitários, perambulando por aí de jeans, tênis e óculos de aros pretos, procurando sentido nas fáceis multidões. Vamos voltar aos nossos tetos reais sem penduricalhos, sonos pesados de cansaço, sonhos de veludo, manhãs de cheiro de asfalto molhado e luzes amarelas refletidas no chão, dando o tom de desencanto pelo resto do dia. Pelo resto da vida.

Vamos enfim lamentar este encontro, ou apenas beber ao reencontro cômico regado a fantasias sinceras. E vamos rir disso tudo então, dizer como seria se você tivesse voltado a passar naquela minha rua, como seria se eu tivesse dado a resposta sincera, não aquela defensivinha de garoto bobo. Comemorar como a vida é louca, esse vaivém de gente que nos invade e que parte sem dizer adeus.

A gente pode então rir alto feito gente feliz, e não precisamos nem mais tocar nesse assunto tão amargo e perigoso. Forçando a hora de ir embora, vamos olhar nos relógios procurando muros, trincheiras e saídas de emergência nos ponteiros. Vamos fugir dessa situação embaraçosa e caótica de falar sobre coisas e tempos que precisam ser descoisadas e arrancadas do DNA das horas. Vamos fingir olhares apressados mas saudosos, firmes na despedida. Vamos nos despedir apenas com um tchau, foi legal, enfim...

Ou vamos talhar com o punhal seco dos tempos a ferida, olhares molhados, bocas trêmulas e mãos dadas sobre a mesa do bar vazio. Vamos escancarar essa doideira de sentir saudades do que nunca foi, mas deveria ter sido não fossem os ventos na janela sempre aberta de Deus. Vamos amaldiçoar os desencontros, e admitir que não estamos mais prontos pra reconstruir passados que não passaram. Vamos apenas pôr na mesa essa intensidade de nos sentir almas tão ligadas no tempo, que se encontram de quando em vez nos sonhos, em outra dimensão. Vamos fazer um pacto sem prazos nem condições – apenas de confiança nos planos de Deus e seus penduricalhos brilhantes que só precisam de polimento. Vamos chorar de verdade. Vamos chorar a verdade. Vamos esquecer da verdade.

E vamos embora, enfim, apenas demarcando território: eu sou seu, você é minha, e ponto final, os desencontros a gente resolve depois das missões. Um brinde, meu amor, um brinde aos nossos desencontros necessários à sobrevivência da poesia, e dos doces barulhinhos que fazem os penduricalhos do teto de Deus, quando bate um vento de saudades e eles se esbarram no Seu céu azulzinho de missões.

Adeus, meu amor, até mais, até o próximo vento de janelas abertas. Até o teto azul finalmente nos soltar, e cairmos ex-penduricalhos, mas de pé, sem mais necessidade de polimento e de desencontros. Apenas nós, um encontro marcado, sem segredos, e uma casa com penduricalhos de anjinhos à porta. E aquele doce barulhinho à leve brisa, na varanda, aos finais das tardes que finalmente serão nossas.


CRiga.



sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Peso para o papel


Você me deixa muito solto,
morto vírus no ar que tu respiras.

Inspira-me de novo,
me leva pro teu sangue –
há de reviver de novo
o amor contente, doente.

Este amor que hoje é apenas
um ente querido acamado,
calado esperando a cura
da tua sã indiferença.


CRiga.


quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Um medo


Meu amor reclamou de dor
no peito, não era falta de amor.

Um gelo, meu peito que doeu
tão forte, lá no fundo, fim do mundo,
amargo medo, logo cedo.

Coração descompassou...

Que se danem comentários,
fechamentos e tribunas.
Eu te amo, eu te quero,
não quero vender memórias.

Amor rima mais com flor
do que com dor.

Não me assuste, margarida –
da janela há tempo bom
terra marrom pra gente ainda plantar.

CRiga.


quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Me protege no teu corpo


Pior é depender de um “bom dia”
da boca amarga da missão.
Um dia de sol que ri da tua cara –
o mundo não para de girar
por causa da agonia.

Vem, me abraça, me ajuda,
me diga, me ensina, me engole.
Até horóscopo hoje me diz verdades,
eu não consigo ouvir qualquer voz.

No final do dia consigo um respiro,
inspiro, caminho à tarde que morre
ainda em câmera lenta, preocupada
com a louça que grita na pia.

O que me falta agora é da noite a boca
a cama, o corpo.
Pesadelos e insônia renovam
a agonia de um novo amanhã.


CRiga.


terça-feira, 12 de setembro de 2017

A pata do elefante


Contra a parede,
nem sei se há parede.
Um passo à frente,
nem sei se é caminho.

Tem é uma pata de elefante
sobre minha cabeça pensante
meu peito ofegante, morro aos poucos.

Eu preciso sim de salvação
ou talvez prestar mais atenção
ao que dizem os meus filhos.

Um quarto bem arrumado.
Um trabalho de escola
O planejamento pra festa de aniversário.

O futebol na quadra, o dia na escola.
O cabelo que precisa cortar.
O dinheiro pro pastel da feira.

Eu preciso muito também
que eles durmam mais cedo...
Minha cama é a espera fria calculada
das letras muito bem colocadas
em respostas que não sei pra quem.

Pra quem devo mais que respostas,
a pata do elefante me sufoca, me endurece.
Então o sono me mata mais um dia.

A pata do elefante me esmaga todos os dias!
Esmaga a poesia que eu preciso
pro espetáculo do circo
que a vida insiste ser.


CRiga.


quarta-feira, 6 de setembro de 2017

A bengala


Aquela talvez fosse a última vez no dia em que entrava no apartamento recém adquirido. Depois de um dia inteiro fazendo a mudança – que, na verdade, não tinha grandes volumes –, me sentaria à pequena sala já mobiliada, e talvez tomasse mais uma latinha de cerveja. Logo que entrei, o velho e bom “Seu Carlos” estava em sua poltrona predileta, ainda nova porque comprara há pouco tempo, desde que já não podia mais dividir o sofá maior com sua esposa que morrera.

Ele me olhou bem fundo nos olhos. Não era um olhar bravo nem decidido a fazer qualquer mal. Era somente um olhar cansado, mas que em dado momento parecia ter descoberto uma verdade própria que não podia mais lutar contra. Seu Carlos estava com seu melhor terno, e me esperou sentar ao sofá maior, sempre me acompanhando com a cabeça calva, a boca seca e o bigode simpático, volumoso e grisalho. Sua velha e bela bengala de jacarandá estava apoiada no braço direito da poltrona. Olhou as palmas das mãos calejadas, arrumou o resto de cabelo que ainda existia, e pousou mais uma vez as mãos sobre os braços da poltrona. Suas pernas estavam cruzadas ao tornozelo. Levantou a cabeça a mim e disse, de maneira muito serena e aconchegante:

        Sabe... eu não deveria dizer isso, mas invejo vocês, que agora começam uma vida nova, juntos, neste pequeno apartamento onde um dia me refugiei.
        Sente muitas saudades daqui, Seu Carlos?
        Não... quer dizer, sim! Vim para cá, trouxe alguns móveis da casa onde morava com minha amada esposa, que morreu há alguns anos. Aqui eu reconquistei a paz, depois de perdê-la.

Enquanto Seu Carlos falava, fitava o teto e sorria também muito serenamente. Mais uma vez voltou os olhos a mim, já sério, mas nunca com aparência severa:

        Daí que quando vejo vocês se mudando para cá, para o mundo que me refugiei e reencontrei a paz, eu não me sinto muito bem.
        Mas o senhor também tem um belo novo lar...
        Eu sei. Sei bem que o lar que me espera é muito bonito, já me disseram. Ainda não fui lá, estou com receios... É uma bobagem, eu sei, mas às vezes pareço querer ficar...
        O senhor não atrapalharia aqui, mas acho que o senhor se sentirá melhor em sua nova casa...
        Não, eu sei que não devo ficar. Não posso ficar aqui com vocês, esse apartamento já não me pertence. É que a paz que construi aqui é difícil de deixar.
        Eu compreendo, Seu Carlos. Assim como compreendo que, com certeza, em seu novo lar reinará essa mesma paz.
        Será? Tenho medo. Olha eu, um velho que já passou muitas coisas nessa vida, com medo... Tive medo na hora mais difícil da minha vida, quando perdi minha esposa e me sentia muito só. Eu chorava todos os dias, debruçado sobre nossa cama. Eu orava por ela, mas sentia muito sua falta. Parecia que alma dela se negava a ir embora daquela casa. Pouca coisa trouxe de lá para este apartamento, orei muito mais forte no dia que deixei a casa, e encontrei de novo a paz aqui. Vivi o resto dos meus anos sozinho aqui, mas feliz e com muita paz.
        E o senhor agora tem medo novamente?...
        Sim, um pouco. Mas, olha: da mesma forma que você tem certeza que minha nova casa também há a paz que preciso, tenho certeza de que vocês dois encontrarão a paz que procuram. Serão muito felizes, como eu fui.
        Temos então sua benção, Seu Carlos?
        Claro que têm! Glória e você serão muito felizes, podem ter certeza. O que me faltava era sentar aqui pela última vez, e dizer a você o que nunca tive a oportunidade de dizer: faça minha filha feliz, como eu fiz minha amada esposa feliz... Acho que agora começo a recuperar a coragem de me mudar daqui. Acho que era isso que me faltava. Muito obrigado!

Com seu jeito de bom velho, Seu Carlos levantou-se apoiado em sua velha bengala de jacarandá. Com as mãos apoiadas no topo dela, e com os pés juntos, me olhou ternamente e sorriu o sorriso de sua paz. Virou-se, caminhou até a porta, abriu, saiu, fechou e foi embora para sua nova casa.

Logo depois entra Glória, com a última caixa de seus pequenos pertences. Ela pára em frente à pequena sala, deixa a caixa ao chão, e senta comigo dividindo o sofá. Depois de um beijo longo, vira-se para mim:

        Nós vamos ser muito felizes!
        Eu sei que sim!

Depois ela se levantou, pegou a caixa ao chão e notou alguma coisa faltando na pequena sala:

        Onde está aquela bengala de jacarandá que vimos aqui ontem?
        Não sei...
        Papai gostava muito dela. Acho que um de meus irmãos deve ter passado aqui e levado. Tudo bem, com qualquer um deles que estiver, está em boas mãos! Quase tudo que está aqui era dele, antes de morrer. Com o que tem aqui, já me sinto feliz! Com certeza, nós e este apartamento têm a benção dele!
        Sim, meu amor! Com certeza!

CRiga.



terça-feira, 5 de setembro de 2017

O metal contra a nuca


É, há sim um ritmo acelerado,
e eu preciso dizer pra mim –
calma, rapaz!
Aprender a apreciar mais um jazz
e as doces bobagens de amigos
que nunca mais vi.

Amanhã é o clichê, é outro dia,
haverá a foice da morte
querendo apenas me machucar.

Machuca, então.
Marco com sangue o caminho de volta
pra não me perder, pra responder
o suficiente a todos que não conheço.

A amigos que vejo ou não,
reservo e respondo flores de um coração.

Importante é equilibrar-se na linha tênue
entre amar o necessário efêmero
e o eterno que sempre machuca.

Mas a gente se vê
e se sara por aí.


CRiga.


Margaridas no olhar


Eu estava te esperando desde o dia
em que reconheci no teu olhar
o jeito de querer me controlar
de fingir que queria me moldar
à sua maneira.

Não temos mesmo jeito...
É melhor a gente se entregar
melhor aceitar
que mais uma nova primavera
tente nos consertar...


CRiga.


segunda-feira, 4 de setembro de 2017

O dedo indicador


Não tenho o direito de deixar
de viver meu resto de vida,
porque alguém quer-me morto
ou não nascido.

Aponte-me a arma, então.
Mas dá-me de troco a tua alma,
deixe-me também te julgar.

Deixe-me penetrar-te o punhal seco
de ser humano – ninguém é santo
porque santidade não existe
ninguém ainda inventou.

E se hoje eu morrer assim pagão,
então serás tu o dono das verdades
o feitor das tempestades
e eu não me importo –

torto é o pau do carvalho seco
que a raiz o fez assim.


CRiga.