quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Escrever-te uma nova poesia

 


Renovar o repertório.
Revolver a alma, a rima.
Armar-se da calma
e devolver-se boas origens.

Relembrar que um dia
havia pureza baunilha
sobre o fermento da experiência.

Atirar contra ti num bilhete
este amor insistente
bobo
bom
e eterno feito poesia.

CRiga.



quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Acabou, começou

 


Não adiantam dores amores flores rimas –
quando desapaixona já era, meu amigo!

Nem chocolate nem jantar caro de um mês de salário
naquele restaurante da propaganda que vocês ouviam
quando de manhã iam juntos trabalhar.

A comida fica seca e mais cara,
o vinho dá dor de cabeça.
A sobremesa tem as calorias que precisa evitar,
daqui uns dias tem balada com as amigas.

Desinfeta, desidrata então os temperos
a gente nem vai fazer aquele prato da tevê.

Desafasta, me dá ar, pega suas coisas e não demora.
Quer a hora do relógio?
É agora: a hora de você só ir embora.

No guarda-roupa cheirando a mofado tem
aquele vestidinho lindo vermelhinho também.
O decote ficou fundo demais
ou eu que me afundei de peito aberto em você?

Vestido mofado? Qual o quê!
Boutique e vendedoras que parecem amigas de infância,
um decote novo e um azul da paz que namoro.

Você aparece pra me pegar...
Arrumou o amassadinho do para-choque
botou cheirinho de carro novo.

Criancinha com fome, chega a dar dó!
Ainda bem que me chega todo mês
o carnê do Médicos Sem Fronteira...

Falando em fronteira cruzo a cidade
num táxi que toca Djavan:
“cair nos pés do vencedor
para ser o serviçal do Samurai
mas eu tou tão feliz”...

Dizem
que o amor próprio também atrai.

CRiga.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Separação

 


São as pétalas que descolam
caem antes do tapete ao altar.
Ervas daninhas são o jardim,
antes cúmplice da cumplicidade.

O peixinho morreu, boia no aquário,
e até o gato chora a falta de fome.
O vizinho quer encher o saco,
quer botar o copo na parede...

Não há louça empilhada na pia,
par ou ímpar, não há mais refeições.
Não levaram as crianças pra escola
triste folga, vamos brincar lá fora.

O quarto escuro cheira a suor envelhecido
e o espelho do banheiro foi quebrado –
azar maior é visita sem aviso,
compromisso de diretoria.

Retratos que sorriem pares da memória
estão virados sobre o pó da estante.
Há um instante em que morrer é bom,
mas há também um som diferente
pra cada lágrima que cai.

Eu hoje esqueci você um pouco mais
que o quase nada de um ontem qualquer.

CRiga.



quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Cansado de guerra

 


Uma seca
Nada range.

Alma feliz perambula
Músculo revela a idade.

Aqui também já teve estação
Lá o metrô é uma tela de Tarsila.

O corpo já pede exercícios
O espírito um bom livro de Jorge Amado.

Daqui atiro tochas de ideias recalculadas
Conforme a experiência que a gente tem. 

Daqui ensaio uma bandeira de paz
Plantada num belo flamboyant.

CRiga.



A tristeza é senhora

 


Vezes bate na gente

aquele saudosismo de moço bobo
perdido do outro lado da rua.

É só atravessar, meu velho,
desafiando motoristas loucos.
É a sua vez, a gente já foi moço demais
pra correr dos carros poucos.

Solidão é que apavora!

Medo de atravessar a rua
é mais o de não encontrar ninguém
do outro lado
do que morrer atropelado.

CRiga.


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

As doces receitas de nossas vovós

 


Há um ritmo da vida que confunde a alma.

É quando você não reconhece que ela acontece,
que o sol vai nascer independentemente
do que você resolveu achar dela.

A deliciosa surpresa é quando na coragem da luta dura,
na tristeza de descer degraus, de subir ladeiras,
você se depara com você mesmo no topo
sorrindo – marotice!

Que idiotice amaldiçoar seja lá o que for,
que invencionice adotar a dor
como inspiração de poesia.

Todo dia nasce conforme a receita de bolo
que tua vó guardou num caderno do antigamente.
Dona Maria Leite, vovozinha Aparecida!

CRiga.


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Tristeza

 


Desfila sorrateira
às vezes montada ao cavalo
do duro monumento no Ibirapuera.
Ou estampada nos olhos do anjinho
da cafona fontezinha do bulevar.

É uma respiração profunda
tentando dar ritmo ao dia
e ao coração cansado.

Câmera lenta, você tenta engolir,
é café amargo amanhecido.
Um drama de atores sem fama,
uma cama que não quer te largar.

Pousa nos teus ombros as mãos pesadas
enquanto em frente a um computador
você se pergunta como se deletar dali.

Marca com as unhas pretas por dentro do peito
feito prostituta velha, bruxa fedida.
Gata preta no cio te gritando
lá no fundo da cabeça que pesa bigornas.

Beija sabor sangue, congela o estômago,
amarga a garganta, chuta os testículos.

Sopra um vento polar na nuca,
parece que nunca existiu verão.

CRiga.



quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Vontade de escrever? Minta um pouco...

 


Você pode escrever sobre o que quiser. Só não escreva sobre si mesmo – esta pessoa em que você nunca pode confiar…

Se insistir, mentirás. Mentirás até que convenças a ti mesmo que a verdade a gente inventa só pra ser feliz. Uma verdadezinha inventada não faz mal pra ninguém, vai…

Então escreva sobre a vida dos outros. Invente vidas batendo de frente, gente morrendo no final da história. E espíritos de almas mal-resolvidas que resolvem atormentar outras tão mal resolvidas quanto. E ponha uma saída triunfal, daquelas que levam a bengala de cedro de verdade da sala – um vivo veria apenas a bengala boiando boiando atravessando a porta aberta. Isso tudo dá prêmio de literatura na cidade onde moro.

Use muita metáfora, muito código, muita escrita que parece sem nexo – parece chique não fazer-se entender, porque às vezes até dão prêmio pra isso na ABL.

Ponha uns versos no meio, tipo poeta maldito. Palavrões também parecem adequados na modernidade.

Separações, amores imperfeitos. Não esqueça da menção a uma música antiga.

Fosse escrever sobre si, a verdade é que ninguém talvez quisesse saber. E, convenhamos, não fica bem: você ficar sozinho numa tarde chuvosa, com aquele papelzinho besta às mãos, perdido num ponto de ônibus qualquer, sola e guarda-chuvas furados, um terno velho cheio de bolinhas e um conhaque pela metade. Faça-me o favor de parar com esse melodrama, batidamente lindo, mas melodrama de escritor maldito. E caia logo à sarjeta, deitado junto à centena de cacos e uma folha de papel molhada na poça. Ninguém vai chamar o resgate. Assim você vai morrer.

E se os borrões no papel permitirem, aí estará um novo sucesso de literatura. Mas você já estará morto. Mas você não deve querer morrer. Por isso, viva a vida de outrem, que morre e revive conforme a conveniência do seu acordar. Mas mate um a cada dia, e faça (re)nascer outro pra morrer no próximo amanhecer de asfalto molhado. Assim você mata a vontade de escrever outra bobagem, e não corre o risco de ser traído por si mesmo – essa pessoa em que você nunca pode confiar.

CRiga.



quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Segredos de pelúcia

 


Dali a pouco ele chegaria, provavelmente com um buquê de flores, um vinho, e depois da novela fazer amor, na sala, no quarto dos pais ou no seu, cheio de bichinhos de pelúcia nas prateleiras cor-de-rosa. Há quase um mês papai e mamãe viajavam pela Europa, e ela sozinha porque tinha de ir pra faculdade - não ia. Mas o professor ia à casa dela. Nem novo, nem tão mais velho. Chegava todo dia na hora da aula com um presentinho, um vinho, um licor, flores, jóias... Gostava muito era dos bombons e de sua boa conversa.

Até aqueles seus dezenove anos não tinha experimentado nada assim. Nem sabia o que era se apaixonar. Poucos dias atrás tinha perdido a virgindade na cama dos pais, o professor. Todo dia ele vinha, todo dia ele falava muito, e ela se perdia no olhar dele, no beijo, no sofá, na cama. Aventura. Amor.

Mas aquele dia ele não chegava. ‘Tão pontual, gosta tanto de mim...’ A impaciência dela já chegava à perturbação. Foi pra faculdade procurar por ele. Ligou o carro, acelerou forte.

Na esquina, o escuro, mas ela viu: o professor e aquela loirinha da turma de Psicologia. Beijos e mãos passeando por baixo da saia da menina, por dentro do zíper da calça social do professor. E ela viu tudo, do meio da rua. Tudo parou, menos seu carro. Acelerou forte, muito forte, muito ódio. Dali a muito pouco, menos uma árvore na rua da faculdade, menos gente enganando gente nesse mundo confuso que era cor-de-rosa agora vermelho sangue, antes ursinhos de pelúcia agora ratos de esgoto, antes bombons de licor agora de ácido sulfúrico. Deu meia volta, não voltou pro lar.

Hoje mamãe e papai não sabem em que casa noturna ela vende seu corpo. Uma cicatriz na alma, um mistério, e uma cara de menina que faz sucesso. Por vingança, cobra caro, muito caro. E muitos querem, porque ela chega atropelando com seu corpo de menina-mulher, fala pouco, os homens gostam de suas roupinhas tipo universitária de Moema. No quarto eles sorriem e sentem tesão com a prateleira e um ursinho de pelúcia encardidinho.

Mas ela exige respeito. Quem sabe um vinho, uma flor, menos caixa de bombom, muito lero ou aula de romantismo. Homem bom é o que chega, paga, come, e vai sem falar o nome. Deixa vazio o que vazio está. De manhã vai dormir, consciência tranquila e agarrada ao ursinho encardidinho. Menina-mulher que dorme enfiando a mão naquela bunda de pelúcia, contando os dólares do dia.

CRiga.


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Remédio pra ansiedade

 


Nada na caixa postal,
você sempre espera demais!

Não tem nada, relaxa,
amanhã a gente vê.

Mas nem tem amanhã.
O ontem era pra ontem.

Mas há na trincheira
o velho e bom telefonema.

No meio do dia o diabo gargalha,
mas na urgência tem a pílula do amor.

CRiga.



sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Dissonante é a tristeza

 


“Da minha sacada, ouço nesse final de tarde um pedido de socorro de um passarinho preso na gaiola dentro da varanda de um apartamento. O dono pensa que ele tá cantando...” - Claudineia Palma.


Tristeza no final da tarde
é que nem ter passarinho
preso na gaiola.

CRiga.


quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Noite de verão

 


Porque agora
há noite ainda.

Paladar de deuses insones
recitando estrelas
de desejos pueris.

Faz tempo que a madrugada chama
ama segura sincera silenciosa.
Boca preta cheia de dentes perfeitos
que te come a alma mastigando poemas.

Besouros não gostam da luz amarela.
Abre a janela, vem pro jardim –
tem satélite, cadente e uma brisa.

Abre a camisa, seja valente.
Dá de beber ao poeta insolente
cujo prazer no gole profundo
goza o fim do mundo
numa eterna noite quente.

CRiga.



terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Diminuto

 


Há uma solidãozinha que cutuca o peito, sabe...

Um amargorzinho de folha em branco,
um medinho de não sei o quê.

Dorzinha fria que nem ponta de faca cega.
Uma sensaçãozinha de abstinência
frio na espinha
no meio da tarde de verão.

Bolinha murchinha murchinha,
moleques gritam as férias na quadra.
Palavrinhas à brisa morna vão-se embora,
me deixam sozinho, escória.

Agorinha eu tinha onde me escorar,
ainda tenho onde morar, uma casinha
um sonho, uma estória.

Putinha essa sensação de nada,
nadinha nadinha...

CRiga.