sexta-feira, 31 de julho de 2020

Um flashback




O que não te acontece mais aos ouvidos
muitas vezes a alma escuta, lá no fundo,
pedindo um segundo da tua atenção.

Há um tapete de ácaros dores encrustadas.
Debaixo não há o pó do arrependimento,
apenas o piso frio de uma inocente solidão.

O que não te acontece mais nas pontas dos dedos
talvez seja o restinho do doce brigadeiro
que a língua adolescente não aproveitou.

Há um poema que precisa te pegar no rosto,
dizer o quanto sinto muito o desperdício.

Reviro discos e canções,
e a agulha agora falha.
A ilustre amiga traiçoeira
que não deixa me sentir
mais sentimental.

Me dá uma lua risquinho no céu, um sorriso.
Me devolve aquele restinho de eternidade
um dia guardada confiante
na velha gaveta de nossa juventude.

CRiga.



quinta-feira, 30 de julho de 2020

"Brilha que te quero luz, andaluz"


Nesta vida já começo ao bom calejar.E você
começa a cutucar-me a casquinha
fazendo-me sangrar.

Você vai ganhando (acredito)
compreensão sobre este mundão.
E eu vou perdendo o jeito de te compreender
num mundinho perigoso que tem cadafalsos
regados à falta de likes no Instagram.

Tenho medo destas “doenças” da tua idade.
Quero apenas você gente do bem, como já és –
mas insistes conjugar verbos dessa melancólica
e fake modernidade.

São pessoas fracas que só se “fortalecem”
à custa de cuidar dos próprios umbigos
e das crias que crescem sem rumo nem por quê –

distraídos que resultam em tristes zumbis egoístas
que deixam-se comandar por um “ista” da vez.

Nem quero que você seja a fonte maior da força
nem da necessária cidadania:
apenas homem e ser humano de um mundo de verdade.

Você está nos chicotando a alma, tenha calma,
o futuro sempre será seu.

Cabe a mim ajudar-te a crescer.
Cabe a você ajudar-me a não encolher...

CRiga.



quarta-feira, 29 de julho de 2020

Um lugar na eternidade dos teus olhos



Há uma terna urgência nos teus olhos,
e eu vou atrás porque deles brotam vistosos
os alimentos de uma horta reservada no futuro.

Teremos talvez que levantar um muro
cerca viva, vamos sobreviver
vendendo o verde da esperança estampada
num quadrinho da parede.

Eu te acompanho porque tudo é possível,
inclusive mantermos vivas as lagartas
longe das folhas do maracujá.

É possível que sejamos então tão fortes
que movamos de lugar apenas o concreto
deixando as raízes invadir nosso lugar.

É possível que a alma encontre abrigo,
que um amigo venha nos visitar –
cuidado agora é pra não queimar a lenha
sem teus olhos pra me alimentar.

CRiga.


terça-feira, 28 de julho de 2020

Me dá a mão



Crise é quando o semáforo na esquina
chegando à padaria do português
não te dá cor nem rumo.

É o qualquer lugar tá valendo
desde que não atropelado.

CRiga.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Um legado largado no escuro



No futuro, dirão:
“ele tinha um grande amor”.
Tenho vários.

Ou: “ele tinha um grande segredo”.
Tenho vários, também.

Não há nada a se descobrir assim –
entrelinhas
escolas de modernismo
entrevista com amigos e parentes.

Há apenas palavras.
Pontos.
Vírgulas.
E uma vontade louca, porém consciente,
de inflamar a alma novamente
para que ela se lembre de vez quem é,
de quem é.

E isso cabe a mim,
a mais ninguém.

Aqui apenas deixo a forma –
a alma é o meu quarto escuro.
Por favor entre,
mas mantenha a meia-luz.

CRiga.


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Militância de flores



Há um Brasil que insiste
invadir minha história de amor.

Trocam-se flores multicores
pelo amarelo e vermelho –
as flores não ficam tão tristes
desde os tempos de Vandré.

Trocam-se poemas por discursos.
A carta anônima romântica
depositada na caixinha do correio,
vira fraca denúncia estampada
em qualquer página de jornal.

Troca-se perfume por gás lacrimogêneo,
vestido chita por camiseta chiita.
Troca-se convite a um passeio
por convocação a passeata.

Eu prefiro sim a flor colhida
à morta pisada no canteiro.
Um coração partido
a tomar partido do terror.

Há um Brasil que resiste
se reinventar histérico
na minha história de amor.

CRiga.



quinta-feira, 23 de julho de 2020

Intervalo no trabalho


Eu procuro na noite de estrelas
um cometa que disse que viria.

Procuro no dia uma meta
a pista reta do rastro cadente.

Eu espero eclipses, satélites.
Processo bits nos vários azuis.

A matéria espoca na tela
esfarela um quase fim –
ou apenas um dead-line.

É só cair a chuva
que o sinal também se vai.

Soturno passo a olhar o céu.
Saturno perdeu o seu anel?

Perdi a conta na constelação,
este é o sinal que procuro.

Pedi a conta, serei apenas
astrônomo da poesia.

CRiga.


quarta-feira, 22 de julho de 2020

É hora de você achar o trem



Corri atrás do teu perfume na alameda mais longa. Atrasei, você estava morta enterrada com direito a fotinho oval desbotada na lápide de mármore de quinta categoria. Nós somos assim, ricos só de espírito, mas eles aqui não gargalham nem bebem cerveja. O silêncio da perda é o comum.

Há ratos em volta. As pétalas escureceram, apodreceram. Você não vai voltar, então eu vou embora, me desculpe. Não vou morrer contigo. A chuva já castiga, aquela chuvinha tonta de filme de romance europeu, o cara com os pingos caindo pelo sobretudo preto, encharcado, o rosto parecendo derreter. Aqui, verão, eu de bermuda e havaiana, uma camiseta regata que às vezes uso pra dormir.

Lembra? A gente dormia junto, e você tirava sarro dela. Tinha Nossa Senhora, minha tia me deu depois de voltar de Aparecida. “Ai, Santa!”, você gargalhava, embriagada na nossa cama. Depois, nem santa nem roupa alguma – o diabo nos corpos!

Há ratos em volta de nossa casa, como numa música do Clube da Esquina que você ligava na vitrola. Não quero voltar pra lá. É só um barraco, velho, lá ainda tão todas as tuas coisas. Eu me atrasei... nunca houve mesa pronta, mas esperava te encontrar. A gente se esquece das coisas.

Eu vou embora da tua nova casa, meu bem, ela é fria demais demais, apesar de não ter (e querer) onde voltar. Antes, vou quebrar a garrafa pros cacos decorarem tua nova casa. Assim parece mais ainda com a gente. E os ratos: gente boa! Esse cheiro de mijo, você não deu bola pra mendigo, né? Tudo bem, em casa ninguém limpava nada... Mas tudo incrivelmente brilhava. Até esta mesma foto desbotada.

E, por favor, esqueça de apagar a luz – não é agora que você vai se lembrar. Afinal, meu bem, você está morta e enterrada. Só eu que ainda não saquei...

CRiga.


terça-feira, 21 de julho de 2020

Um engano de vida


Na sua solidão de fila no caixa-eletrônico, pensava em relatórios e contas.  “Oi!”, ela disse, tão linda menina. “Não se lembra de mim, não é?”, emendou, logo com um beijinho no rosto. Não se lembrava. “Ah, devem ser os óculos novos...”. Tirou.

Ele ainda franzia levemente as sobrancelhas, como quem se esforçava em tentar lembrar. “Puxa, não se lembra?”, insistiu ela, olhinhos tristezinhos. Os óculos dele, de aros pretos, também eram novos - por isso os tirou pensando estar com a vista atrapalhada.

“Ai meu Deus, me desculpe... pensei que fosse um amigo meu... desculpe”, foi-se, encolhida, correndinha.

Ele ficou olhando ela ir, parado no tempo, esperando um beijinho de volta. Desabou na decepção de se lembrar quem ele mesmo era. Devagar, vagando, colocou de volta os óculos novos, e reafundou-se em sua solidão de filas, relatórios e contas exatas do salário. Tudo consumido no sustento do lar materno, nada sobraria no fim do mês. Nada.

Só a voz da mãe, irritante: “bonitos óculos, meu filho... você ficou muito bem”.

CRiga.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Barba disfarçada


Saberia me contar, me conter?
Quanto tempo dura a juventude?
Quantos rostos se formam severos
nos tijolos incompletos de nossa obra
nos cobrando dívidas
e atenção?

Eu apenas tenho roupas de guerra
guardadas gomadas num guarda-roupa.
Mas a guerra acabou, a paz é cara,
minha cara agora tem de novidade
apenas uma barba grisalha.
Foi-se o bamba na passeata,
a camisinha estourada.

Verdade que o buraco é fundo?
Último domingo não parecia ser.
Verdade que se acaba o mundo?
O fogão de barro se nega a esfriar-se.

Meu desejo é confessar-me temente
à simples natureza das coisas –
ao pé da futura jabuticabeira
descobrir-me então maduro.

À beira de perceber na sombra
da linda segunda-feira
que eu sempre fui feliz.

CRiga.


sexta-feira, 17 de julho de 2020

Adolescência


Viajava pela memória
de um coração que já é não meu.

Viajei dancei fiquei
namorei traí galinhei
sofri
ah, como sofri!...

E me arrependi...

Voltei,

eu fui sem guia, muito certo,
ao teu inferno que fundei.

Não te encontrei,
eu fui embora,

eu fui a hora de me tornar alguém.

CRiga.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

O ermitão


Eu hoje tive a honra
de apresentar “Stairway”
ao meu filho que não gosta de música –
é músico.

Viu num vídeo-modernex
apenas os acordes.
Conhece a original?
Não conhecia.

Ficou ali na sala
ouvindo.
Oito minutos Plant
e eu
a cantarmos a nossa música.

Saiu com sua guitarra emprestada
mostrar o solinho pra mamãe.

Segui pela casa
o rastro que cheirava a música.

E aí, mas o que achou?

“Incrível, né!”, respondeu
até bravo no seu meio tom.

E o ermitão então voltou sorrindo
sozinho
ao pico da tatoo de sua montanha
no meio de uma capa de vinil.

CRiga.

Preza reza


Quando eu tenho medo
eu penso num amigo.

Mesmo o medo mais oceano dividido em dois
vendo todo o pecado do mundo atravessar
querendo nos inundar.

Fecho os olhos
viro as costas
volto logo
e caio em pé.

Qual é mesmo o maremoto
que no brinde desiste de nos afogar?

CRiga.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Jabuti


Às vezes parece
que todo o oxigênio do mundo
resolve te pressionar.

Mas ele uma hora se cansa
e a gente vence.

Respirando!

CRiga.

terça-feira, 14 de julho de 2020

Dia das Bruxas


Dedo na garganta e apropriação devida de coisas que não são minhas. Roubo mesmo, se isso me faz bem. Todos eles roubaram de alguém, e ocultaram o crime embelezando a boneca com batom de vinho seco e barato, aquele que escorre no canto da boca de riso artificial dos lábios plásticos, manchando a pele feito espancamento pela metade.

E eu espanco mesmo neste dia, arranco sangue, crio clássicos hematomas de inocência. E um texto roubado no final não é nada que não se possa explicar na posteridade.

Enquanto isso, declaro às autoridades ter visto tua foto três por quatro, guardada culpada pelo crime, desbotada na carteira velha - meu coração não é selvagem, é apenas marginal que comete crimes, acusa inocentes e oculta cadáveres.

Inocente? Você foi embora roubando meu disco do Elvis por causa de Suspicious Mind, apropriação devida. Apropriação de vida, pra sobreviver sem mim na marginalidade…

Feliz aniversário, mas vou ter que te matar mais uma vez agora. Deixe que noticiários contem as mentiras, porque a verdade nós dois sabemos: ninguém morreu, meu bem, ninguém. Textos renascem todo dia, e os discos estão voltando à moda. Menos nós, sobreviventes sem graça, grafados perdidos sem valor moral, feitos classificado de jornal…

CRiga.


segunda-feira, 13 de julho de 2020

Guerra santa


Na guerra
erra ao olhar demais pra ela.

Peca,
a igreja é mais um puteiro
que a fria solução dos fracos.

Embaraços, pernas grossas,
se houvesse religião se jogaria
aos seus pés, lavaria seus pés,
adoraria.

Na terra o cheiro é mais forte,
o sangue menstrual aduba
o transe do girassol depois da chuva –

acredita é no barro,
no carro de portas abertas
pronto pra fuga
pra qualquer Paris que se invente.

Qualquer país onde a guerra
seja santa, vestida decote
e saia curta no altar.
A cada bombardeio, escondida
numa catacumba diferente,
um perfume a denuncia.

Beato cretino nenhum tem coragem
de abrir a santa sepultura rosa choque,
encará-la pedindo olhares e amores
além daqueles que as mãos juntas
oram queimando ateus.

Na guerra
ele escondeu todo o seu tesouro
debaixo do véu da santa.
Véu transparente,
pobre santa desnuda
rogai por nós!...

Santa viva no bater dos sinos
anunciando, feito raios e trovões,
a agrura de um corpo
que só quer comungar prazer.

CRiga.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Cafajestes


Eu me vejo manchando o teu vestido de casamento com o vermelho sangue de meu ciúme doentio – calma, sem páginas policiais: apenas a taça do vinho que a gente não tomou porque você estava tão atrasada pro fatídico dia da noiva, eu te dei carona e nem cobrei a gasosa. Então vai meu bem ficar tão lindamente atrasada pra gente brincar de rasgar vestido no ato consumado da festa da tua felicidade muito bem disfarçada pela pesada maquiagem cara, champanhe e padrinhos que gastaram uma graninha besta em presentes pra te ver feliz nas fotos do futuro álbum. Nem aquela cena ridícula de novela das oito existe mais nas igrejas pra eu te condenar, aquela que o padre pergunta se há alguém que tenha algo a dizer contra esse casamento que fale agora ou cale-se para sempre – diria mataram o mensageiro do amor com um tiro certeiro no peito, e, menos poético, teu noivo comeu tua prima por trás na tua cama ainda quente de manhã enquanto você tomava banho, tua família é uma farsa de corruptos e gente de passados duvidosos, você é a única que presta um pouquinho pra uma traiçãozinha nada demais antes do casamento... Mesmo na Santa Igreja não saberia mentir tanto. Casamentinho de merda! Me devolve então a grana Maria gasolina, Maria mãe de um deus que não acredito, Maria vai-com-as-outras-foi-comigo, ah, Maria! Eu te amaria tanto se você não dissesse sim, carregaríamos garrafas pelas ruas e cairíamos esquinas pelas noites sem fim até que alcançássemos a cama mais uma noite, a gente gritando urros de prazer na madrugada até o amanhecer te chamar praquele empreguinho de merda e o meu eterno vagabundear fingindo trabalhar numa redação de jornal. E só te trairia com escritos mais românticos, não marginais. E você se ofenderia. E por vingança finalmente se casaria, certa de querer ser eternamente infeliz.

CRiga.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Garota de escritório


OK, nós não temos o mesmo naipe.

Você é boneca, eu
o velho, beberrão e safado
soldadinho de chumbo do Paraguai.

Você é seda, eu
a palha do milho, e não é tabaco
o enrolado no cigarrinho.

Você é idealista, eu
desisti de me atracar com ideais,
atracar mesmo só se for
numa cama com você.

OK, nós não temos o mesmo “taime”.

Você tem uma palavrinha em inglês
pra cada simples ação do seu trabalho,
eu, no máximo um dead line
até tirar a sua roupa depois das cinco.

Nós não temos as mesmas intenções.

Você quer subir na vida à custa
do que não consigo entender,
eu, subir teu corpo a qualquer custo
dos pés ao pé do ouvido
te dizendo as imoralidades que nos fazem,
enfim,
cada um a chama que nos mantém.

Não temos a mesma chama.

Mas me chama, meu bem,
me grita, me domina –
naipes, taimes e intenções
eu jogo no lixo
só pra te ver sorrir,
só pra te fazer feliz.

CRiga.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

terça-feira, 7 de julho de 2020

Um olhar profissional


Encontrei de novo às duas da manhã. Depois da boate, das bebidas, dos cigarros. Depois de você vender seu corpo a quem pagasse bem, loira linda que você é. Não ia pagar. Não ia querer ter teu corpo por profissão. Apesar de querer muito, como queria!... Mas pagar seria me trair e matar o seu olhar. O seu olhar brilhante naquela meia luz de boate. Olhar pra mim, sentado te amando com os olhos, uma vida inteira. Um sorrisinho meigo de canto. Fugi na noite pra encontrar você.

O mesmo olhar brilhante agora sobre aquele viaduto, você de cima, no peitoril, o decote e os seios lindos apoiados no concreto muito velho do Centro da cidade. Os meus olhos acompanhavam teu corpo, horizontal saindo do peitoril até o par de pernas, cruzadas à altura da canela, um pezinho de ponta, ao lado do outro, de apoio. Linda, de blusinha vermelha e saia jeans preta. Sapatinhos pretos também, tipo bailarina, de pano. E os olhos brilhantes olhando o nada além daquele viaduto. E mais aquele sorrisinho meigo de canto, na boca batom vermelho.

E me perguntava se valia a pena ir conversar contigo. Se me daria atenção, apesar dos olhos brilhantes lá na boate. Pensava: bobagem minha, não vi olhar pra mim. E me contrariava. Não, eram pra mim, sim! Diferente daquele olhar profissional caçando homens. Olhou pra mim de forma diferente. Olhou sim!... Olhou?... E o sorriso, aquele cantinho da boca linda vermelha era meu? Era meu, só podia ser, só eu vi!... Eu vou lá!

Daí cheguei.

Boa noite.

Oi.

Distante?...

É...

Cansada?

Não...

Esperando algo?

Já encontrei!...

Beijos. Mais beijos, fundos, profundos, ardentes. O batom vermelho borrava minha boca, minha mão já passeando por baixo da tua saia, a tua mão por baixo da minha calça. Linda, loira!... Duas da manhã, ninguém passava, você agora sentada no peitoril, eu no meio de teu lindo par de pernas, e a noite que era quente demais!... Quente. Explosão. Morno. Suor. Sorrisos. Olhar brilhante. Profissional...

Aqui é um pouco mais caro, amor. Um pouquinho só...

Um olhar profissional. O meu, de brilhante a fosco. Cor da noite quente vermelho Vênus ferido sangrando por cima da minha cabeça quente zoeira olhar profissional se apagando um empurrão um grito uma noite um olhar distante um olhar mais distante um barulho seco no asfalto quente lá embaixo. Um olhar profissionalmente morto no asfalto quente vivo.

O meu olhar era de verdade. E não mentiu nem na hora que o desapontamento vermelho apagou seu brilho. Fui embora, ninguém viu nada. Voltei pra boate. Paguei no caixa. Me deixei esquecer. Sirenes ecoavam. Eu bebia uma cerveja.

CRiga.


segunda-feira, 6 de julho de 2020

O morro que não é mais nosso


As mazelas esperneiam
e o esperma corre as pernas.
É quando o triste fecundador
desiste do mundo mundano –
um bebê morre anjo
feliz angelical.

As janelas estão fechadas
e os beirais têm rosas secas.
A cidade está de olhos cerrados,
fingindo um sono, talvez embriaguez,
para aliviar a dor.

A luz da tevê ilumina um barraco,
e o cheiro do jantar se mistura
ao pó da casa fechada
em pleno verão.

Os gritos daquelas crianças
estilhaçando as alegrias de infância,
hoje fazem parte da canção de ontem
no vinil velho comido pelo tempo.

O batom que era da camisa de seda
virou sangue de execução na mesma esquina,
onde cantava a boemia
uma vida mais bonita.

Aquela seresta virou faroeste,
e o oeste virou medo no pôr-do-sol –
é quando morre na esquina
mais um inocente trabalhador.

Não há caminho de volta ao lar –
há via crucis no chão de terra batida
onde Cristo podia bem ter caminhado,
não fosse a cruz virar arma branca
pra dar na cabeça de bandido
e de penhora à polícia.

Não há caminho aos novos fecundadores –
o espermatozoide tem medo da missão
e canta assoviando uma musiquinha
sucesso de antigamente,
pra disfarçar sua tristeza
de ter que dizer não.

CRiga.
(foto de Antonio Lacerda)

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Sob o mesmo teto


Há sorrisos e concessões, dúbio silêncio.
Há colunas que aguentaram o teto em pé
suportaram o terremoto dos erros
na velha casa hoje habitado mausoléu.

Já no teto do céu
nem as estrelas são as mesmas.
E ela observa a noite escura
esperando se apaixonar de novo
por alguém.

Duas camas. Dois quartos.
Dois fantasmas se assombrando
quebrando espelhos
em eternos anos de azar.

CRiga.


quinta-feira, 2 de julho de 2020

Entre os lábios


A língua draga com fogo de dragão,
beijo que chupa a pele do pêssego morno
ou boca caindo de boca
na doce manga de estação.

CRiga.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Viúva


Procura por algo no fundo da gaveta
e apenas o rosto coberto pelo pó
na velha fotografia
denuncia.

Você não morreu
e os barbitúricos acabaram.

Abrir de manhã a janela molhada,
o gesto simples e simbólico pra continuar:
é como amputar os braços, se salvar
procurando no brilho tímido do sol
um sorriso-motivo pra acreditar.

Trocar a cama, os lençóis, o travesseiro –
tem aquele buraco irritante que sufoca.
A cada manhã faço uma promessa nova,
minha pressa é amiga da cicatriz vermelha.

Minha reza por um triz não é lamento.
Eu quase não lembro mais o dia
em que morri junto a você.

CRiga.