quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O que temos hoje pra comungar


Verdade mesmo?
Falta lisergia, energia.
Um dia à procura da canção perdida,
paixão e sexo que nos acalma.

Como é chato chegar até aqui
sem certezas postas à mesa.

A primavera chove sua nobre imprecisão,
e eu não tenho flores
nem novidades pra contar.

A fuga é dos fracos.
Me dá um trago, me dá um gole,
me enrole, me engula, me esquece,
amanhã só quero dormir até mais tarde.

CRiga.


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Compromisso caseiro de vida


Fórmulas mágicas para deixar de querer adivinhar o futuro a partir dos parcos sinais de hoje. Faz tempo que não sente a apreensão do gênero operário, a ameaça dos Brasis de hoje, porém declarada apenas no silêncio dos novos vencedores. Antes, houve apenas o remoer de não se lembrar como se faz alguém feliz. A incapacidade de fazer feliz.

A incapacidade de se partir estas correntes donas do seu amanhã; de moldar o futuro dos filhos a partir de sua vontade e das certezas colhidas de uma vivência plena, independente – não de favores dos vendados olhos do poder; sermos os famosos “donos do destino” – será mesmo que existe alguém assim?

Apenas ele vê a varanda ameaçada quando este vento torto faz a madeira debater-se querendo despertá-lo da languidez. Apenas ela lembra do pito dividido da Mariquita de Drummond.

A voz dela lhe abala quando ele fala sobre seus medos. Mas a voz dela também lhe acalma, como o rio profundo que atravessa a cozinha de Adélia Prado.

“Lembre-se de nosso vinho de hoje à noite. E pare de se coçar!”

CRiga.

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Só um efeito de guitarra


Palavras em branco.
Nem no tranco estes dias.
Estanco hemorragias anêmicas.
Artes cênicas e falsas nos trens lotados.
Os subúrbios eram românticos e amados.
Periferia só dá o bom e velho hip hop.
Assopre a cinza mofada do casaco.
Tá calor e nem poesia as meninas dão.

O que falta sim é a chuva amiga e amante.
Seu cheiro de cio sobre o asfalto.
O som do pneu na noite sem clima,
lançando fagulhas elétricas molhadas
contra a luz amarela desta cidade sem graça.

Eu vejo um relâmpago de esperança.
Será que a chuva nos alcança esta noite?
Palavras negras são magia pra libertar.
Lance mão do ódio à política.
Da ode ao amor perdido na esquina.
Em cima do piano houve um copo de sereno,
ele respirou fundo a melancolia das manhãs.

Pois quando eu tragar o encanto num ua ua,
círculos de fumaça me darão corcéis voadores.
Aí eu fugirei de ti –
pegarei papel e caneta
pagarei uma promessa
e te afogarei nas tintas que correm sangue
no cateter do caráter
curando feridos
espalhando cacos de corações partidos.

Só um efeito de guitarra pra explodir o silêncio,
num novo rock, a mesma velha e boa canção.

CRiga.

Queria tanto


Metáforas são as borboletas
enfeitando as rosas que pretendo te falar.

CRiga.

sábado, 26 de outubro de 2019

Pra quem quer olhar


Os olhos não mentem. Isso é fato.
Sentem muito quando sofrem
e quando querem riem alto.

Eles olham no fundo da alma,
acalmam, eles também abraçam,
beijam e até te comem...

Os olhos se vestem de lápis e rímel,
óculos escuros e lentes mentirosas –
são perigosas as suas meninas.

Farol no caminho dos cegos,
tortos quando o amor os cega.

São pretos castanhos azuis verdes
amarelos e até vermelhos.
A morte na verdade tem olhos brancos.

São francos quando a alma os aperta.
Os olhos enxergam até a bebida
escondida debaixo do casaco.

Os olhos não negam a facilidade
e nem a doce boba felicidade
quando olham com o coração.

Flecham. Fecham a avenida.
Moem. Destroem a rival.
Sambam no feriado de carnaval.
Rezam fechados pedindo colírio
e perdão.

O padre tem olhos severos
destes que inventam o olhar de Deus.

O diabo tem olhares sinceros
destes que convertem até os ateus.

CRiga.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Toada de um amor vagabundo


Desmazelo
vovó diria
até o dia
que eu pedisse desculpas a Glorinha.

Amor cachorro…

Depois diria: “essa menininha é ouro”.
E eu dando no couro
mas evitando bisnetos dela –
no meu tempo santa é a camisinha.

Bandido!

Depois brigaria de novo.
Glorinha que era minha deu pra outro!
E vovó não sabendo de nada
disse o que parecia tudo:

Glorinha dá pra quem quer
e você que não a trate bem
que vai virar piada também
na cama de quem a comeu.

Peguei um trem.

Então matei Glorinha
e na volta chupando sorvete
apontei a mesma arma para vovó:

Mate que sou mesmo velha...
Pelo menos no inferno onde vou
ouvirei com gosto feito mãe ausente
Glorinha falando que amava você,
que doce diabinha!

Que graça que a vida tinha?

Vovó só morreu de velhice
e nem pito me trouxe na cadeia
antes de a corda amarrada no teto
dar cabo de minha vida
naquela cela fria.

Glorinha?
Virou santa e ganhou devotos
com pôsteres de borracharia.

CRiga.


quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O carteiro


Querem apenas degustar as letras
da paixão vermelha que incendeia
ou da fatídica militância da tragédia social.

O que é leve, um afago sem promessas,
não interessa ao combustível da alma
sedenta por inflamar-se coquetel molotov.

O fogo corrói, destrói.
Depois só o olhar é vermelho
acabou, a ressaca é braba
a dor de cabeça e sem heróis.

O afago fica, incita
o olhar verdadeiro
e até um singelo elogio
quando o mundo parece querer acabar.

O que é leve
Leva.
Lava a alma
acalma tempestades.

CRiga.


Qual é o louco que lhe fala?


Gozo do momento, a certeza
quando não faço mal a ninguém.

CRiga. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Meia idade

Há a perda.
Minha juventude
tua infância
nossa paixão.

Há um homem perdido.
Meio partido, meia idade
andando pela casa
procurando saídas
e porquês.

Entre a perda e o perdido
há um pedido de socorro:
me dê algo que não seja
apenas areia de ampulheta.

CRiga.


O idioma do desejo


Não adianta chorar
sobre a bebida derramada
na noite dos cantores.

Bebida doce,
e a menina enrolava a língua
num púbere castelhano
e num inglês de pop sueco
moreno latino americano.

Nem teve a chance
de enrolar a língua
também por doce embriaguez!

Não adianta se desculpar
pela espanhola derramada
entre os beijos, línguas
que não queriam tradução.

Queriam apenas a luta ardente,
entre as bocas, o desejo –
único idioma então corrente.

CRiga.


terça-feira, 22 de outubro de 2019

Púbere ventura


Enquanto ganham a vida singela
com simples ar de cachoeira
na grama que se rola,
se enrola, fuma-se!,

a gente se enrola mais
e os planos que a gente faz
são pra no máximo no máximo
um depois de amanhã talvez.

Enquanto a gente se reconhece,
a gente se vê – envelhece!
Vai até onde se avista
o pagamento à vista ainda nos segurar.

Parcelas são migalhas de um sonho.
Eu preferiria não ter idade
pra sonhar tão alto com um abrigo,
uma cachoeira de sensações
onde o tempo não pudesse me abalar.

CRiga.

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Vila Leopoldina


Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love ”*... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Eu demorei... um namorado viria vê-la amanhã, ele gostava de Beto Guedes e Belchior. Eu não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.

* “29 Palms”, Robert Plant


sábado, 19 de outubro de 2019

A egotrip da vingança


Vou viver no limite íngreme
da minha alma que já não é tão pura.

E se você não vier de branco
feito anjo me salvar do devaneio,
vou ser mármore tão negra.

E se você não sorrir
e se você não me ouvir
e se você não me abraçar
e se você não existir...

E se você não vier?

Se você não vier
vou renascer das cinzas do que já sou.

Eu sou as cinzas que bóiam no teu ar,
que aterrorizam teus olhos sem cor
numa trágica noite de inverno,
depois do vento insano sem direção
invadir a tua casa decorada
morango de prateleira.

Só que você, metódica,
limpa a tua casa com talento,
lava o rosto petrificado
com sabonete neutro, água morna
e vai dormir,
como se não existisse o dia
que você me deu um beijo.

Como se eu não existisse,
como se eu fosse pedra vulgar
ou mármore tão negra.

Como se eu fosse ressuscitar
sem limites
no teu seguro lar tão puro.

Como se eu fosse o retrato velho
sobre a triste escrivaninha de cedro
esquecida no sótão escuro.

Como se eu fosse vírus
esperando tua hemorragia
me libertar do desespero.

Como se eu fosse o fóssil
daquele tiranossauro rex
que um dia quis ser bonzinho.

Como se eu fosse fácil,
como se eu fosse frágil,
como se eu tossisse sangue
feito poeta do Romantismo.

Vou viver no fútil limite
desta alma que só queria
ter você de fato um dia.

E se você vier assistir a meu desespero,
vou sorrir sarcástico,
dar adeus com a cabeça,
virar as costas
e voar sobre o penhasco.

E só sobrará teu eco dissonante
entre as montanhas seculares
naquela trágica noite de inverno:

“eu amo você...cê...cê...”

E ficará esperando resposta
no limite íngreme do penhasco,
e ficará esperando eu voltar de branco
feito anjo,
pra te salvar da tentação
de vir comigo devanear.

E ouvirá só o som da lágrima
contra a rocha seca,
que não ressoa eco
nem alivia a dor.

E rezará por mim
e pedirá minha proteção,

e lembrará os dias
em que nunca fui anjo
e quando roubei um beijo teu.

E desejará com a alma
eu não estar te vigiando
e continuar não sendo anjo
só pra roubar outro beijo teu.

E você viverá no limite íngreme
da tua alma então tão negra,

perdida no vale das pedras
mármores tão puras,

perdida nas noites escuras
que eu fundei
enquanto amei você.

CRiga.


sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Proibido falar tirania


A surdez do antigo rei não é nova,
e como todo bom rei na barriga
do trono arrota e esbraveja soberba.

Por isso não precisa dizer ao rei
que o pântano engole o agricultor.
Que ele procura sim um ouvido
só disposto a ouvir, uma mão amiga
que o tire de lama que o envelhece.

Todo reinado acaba, mas a enxada
é só trocar o cabo – 
ninguém pensa em dar com ele
na coroa emprestada.

Só renovar o trabalho no campo
e desatolar as botas já furadas.
Colher das sementes já plantadas
a paz que pareceu um dia tão distante.

Igual àquela paz de varanda,
casal às cadeiras só olhando
almas sorrindo dentro do milharal.

Igual a um reino cujo único decreto
afixado à arvore mais velha,
seja proibir a simples menção
à palavra tirania.

CRiga.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Desculpe, poesia...


Terrivelmente assolado
por uma palavra apenas.
Não pela palavra. É por qualquer palavra!
O que falta é dividir dores incomunicáveis –
os jornais de amanhã não publicarão sentimentos.

A procura sempre cansa,
falta tempo de colher do teu sorriso
um por que dizer das coisas belas.

Eu me recolho,
um olho no sangue que corre
outro no moribundo que não morre.

Uma mão escrevendo receitas de bolo
nos espaços em branco do jornal;
outra segurando a tecla ON
do equipamento de respiração.

São dias de criatividade ao contrário,
apenas gritos abafados, nada construirá.

Falta tempo de colher da tua doce distração
um por que fugir a tempo de não me tornar
apenas
pedra peso para papéis desimportantes.

CRiga.


quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Alma do tempo


João pergunta a Maria:
“O que temos para comer?...”
Maria, seca no olhar, responde:
“nada, não, João...”

Eis que os olhares encontram
o brilho da colher polida.
Presente de casamento
de um amigo que morreu solteiro,
sem pai nem mãe,
sem ninguém pra dividir a dor.

E eis que fala Maria a João:
“Te amo, mesmo assim...”
E João, molhado o olhar, responde:
“Te amo também, pra sempre!...”

CRiga.


terça-feira, 15 de outubro de 2019

Escola (poesia Naif)


Gritaram no campinho,
fui eu que fiz o gol.
Era quase a hora de ir pra escola,
hora de decidir entre ser doutor
ou jogador da seleção.

Os pequenos todos aprendendo a ler,
na lousa, S+A=SA, P+O=PO.
Revistinha da Mônica antes me ajudou,
levantei braço e não hesitei: “SAPO”.
Palmas dos colegas – nunca esqueci...

Dona Dalva falava francês,
mas dava aulas de português – 
um dia faltei na prova
e a rígida senhora quis saber por que.
Em vez de tomar bomba
tomei na hora outra prova: nota dez.

Vi dona Izadora, feia e zarolha,
quebrar régua de madeira
na cabeça do “burrinho”.

Vi dona Marlene distribuir mini bíblia
e ensinar música evangélica durante a aula.

Professora Eliana não fez nada nada
quando na sala o brutamontezinho repetente
me deu uma cotovelada na cabeça.

Dona Claudete gostava de minha leitura
e me punha em frente à turma em fila
lendo textos cívicos antes do Hino Nacional.

Professora Rialma organizou um varal de poesia
num sábado de evento cultural.
Leu alto meu poema pros pais que visitavam:
“o autor é aquele menino ali” – orgulho!

Na última aula, enquanto não chegava,
professor Maurílio me designara na lousa
tirar dúvidas matemáticas de colegas.

Às vezes depois da aula havia futebol,
mas eu não era mais o moleque do campinho –
não era mais o jogador da seleção.

Também não segui carreira de doutor – 
a maldita da Física
nunca me deixou.

CRiga.


segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Debaixo de tua saia


Vou perdendo a veia violeta parra.
Do tinto vinho o melhor é o mais velho
só para o velho, só para o velho...

Vou perdendo a poesia na marra.
Vendendo palavras encaixadas
encaixotando os velhos versos
submersos.

Mudar é necessidade, trabalhar também.
O amor é um porto cujo interruptor do farol
está nos navios que naufragaram
e já armaram tempestades.

Vou remando o norte que as palavras me dão.
Sorte maior é não morrer na praia
na barra da linda saia violeta
da poesia que me guarda no cais.

CRiga.


sábado, 12 de outubro de 2019

Não deixe aquela ideia de poesia fugir!


Está ali, ao lado do sofá
que a gente já não curte mais.

Cerca, entrou no vaso vazio
preciso comprar uma flor.

Mata, correu pra trás da cama
não durmo nunca mais com você!

Está no quarto das crianças, brinca
elas vão correr atrás de você também.

Não deixa passar pela sala sem perceber
fiz meu cabelo só pra você.

Não joga fora assim
você pode me machucar.

Queima então
mas dois peguinhas só.

Desarma a ratoeira
não precisa mais depois de tanto tempo,

faz tanto tempo que te amo!

CRiga.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

As horas que encolhem


Eu poderia morrer daqui a pouco.
Escrever uma canção de amor.
Tomar uma xícara de chá.
Esperar. Não sei bem que.

Viveria na marra, amarrado.
Não te daria o céu, meu bem,
nem usaria adoçante em vez de açúcar
até a hora de esquentar o teu almoço.

Quando moço eu tinha uma luz,
cantava o que viesse sendo bom.
Bebia nas esquinas, amigos meus
esperando de novo a nova noite.

Eu poderia ter morrido ontem,
mas antes eu escrevera sobre o amor.
Deixei de beber leite para crescer,
as horas encolhem. São 44 do segundo tempo...

CRiga.


quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Daltônico


O diabo amassa o trigo
pra fornada patriótica,
e Deus amansa a massa
pros discursos da patrulha.

Dá de comer ao Brasil
arroz com feijão sem pimenta
um grão de conhecimento
um sorriso de criança
uma rosa perfumada
qualquer que seja a cor –

apenas flor, nada mais,
não vigie nem invada
meu daltônico jardim.

CRiga.