sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Passado


Distribuiu poesias
entre os beijos da doce juventude.
Mãos macias dobraram a folha
nas gavetas da inexperiência.

Com o tempo que passa
as letras fizeram mais sentido,
mas os tempos eram outros:
o poeta aposentara o caderno,
não era mais o romântico jogral
belo maldito das esquinas.

Sobrou um quê de queria mais,
não soube te aproveitar.
Eu ainda tenho a poesia
que você fez pra mim naquele dia.

Cai a ligação, cai o sinal.
Tudo cai, também a ficha.
Tudo bem que a gente cai,
mas eu queria tanto você
só pra agora me segurar...

CRiga.


quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Vontade de escrever? Minta um pouco...


Você pode escrever sobre o que quiser. Só não escreva sobre si mesmo – esta pessoa em que você nunca pode confiar…

Se insistir, mentirás. Mentirás até que convenças a ti mesmo que a verdade a gente inventa só pra ser feliz. Uma verdadezinha inventada não faz mal pra ninguém, vai…

Então escreva sobre a vida dos outros. Invente vidas batendo de frente, gente morrendo no final da história. E espíritos de almas mal-resolvidas que resolvem atormentar outras tão mal resolvidas quanto. E ponha uma saída triunfal, daquelas que levam a bengala de cedro de verdade da sala – um vivo veria apenas a bengala boiando boiando atravessando a porta aberta. Isso tudo dá prêmio de literatura na cidade onde moro.

Use muita metáfora, muito código, muita escrita que parece sem nexo – parece chique não fazer-se entender, porque às vezes até dão prêmio pra isso na ABL.

Ponha uns versos no meio, tipo poeta maldito. Palavrões também parecem adequados na modernidade.

Separações, amores imperfeitos. Não esqueça da menção a uma música antiga.

Fosse escrever sobre si, a verdade é que ninguém talvez quisesse saber. E, convenhamos, não fica bem: você ficar sozinho numa tarde chuvosa, com aquele papelzinho besta às mãos, perdido num ponto de ônibus qualquer, sola e guarda-chuvas furados, um terno velho cheio de bolinhas e um conhaque pela metade. Faça-me o favor de parar com esse melodrama, batidamente lindo, mas melodrama de escritor maldito. E caia logo à sarjeta, deitado junto à centena de cacos e uma folha de papel molhada na poça. Ninguém vai chamar o resgate. Assim você vai morrer.

E se os borrões no papel permitirem, aí estará um novo sucesso de literatura. Mas você já estará morto. Mas você não deve querer morrer. Por isso, viva a vida de outrem, que morre e revive conforme a conveniência do seu acordar. Mas mate um a cada dia, e faça (re)nascer outro pra morrer no próximo amanhecer de asfalto molhado. Assim você mata a vontade de escrever outra bobagem, e não corre o risco de ser traído por si mesmo – essa pessoa em que você nunca pode confiar.

CRiga.


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Nota policial, classificado de aniversário


Dedo na garganta e apropriação devida de coisas que não são minhas. Roubo mesmo, se isso me faz bem. Todos eles roubaram de alguém, e ocultaram o crime embelezando a boneca com batom de vinho seco e barato, aquele que escorre no canto da boca de riso artificial na boca plástica manchando a pele feito espancamento pela metade.

E eu espanco mesmo neste dia, arranco sangue, crio clássicos hematomas de inocência. E um texto roubado no final não é nada que não se possa explicar na posteridade.

Enquanto isso, declaro às autoridades ter visto tua foto três por quatro, guardada culpada pelo crime, desbotada na carteira velha - meu coração não é selvagem, é apenas marginal que comete crimes, acusa inocentes e oculta cadáveres.

Inocente? Você foi embora roubando meu disco do Elvis por causa de Suspicious Mind, apropriação devida. Apropriação de vida, pra sobreviver sem mim na marginalidade...

Feliz aniversário, mas vou ter que te matar mais uma vez agora. Deixe que noticiários contem as mentiras, porque a verdade nós dois sabemos: ninguém morreu, meu bem, ninguém. Textos renascem todo dia, e os discos estão voltando à moda. Menos nós, sobreviventes sem graça, grafados perdidos sem valor moral, feitos classificado de jornal...

CRiga.


terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Panfleto poético


Eu queria escrever uma fábula, mácula,
sobre macacos que perderam seus galhos
sobre sanguessugas em jejum forçado
sobre minhocas fritando sozinhas no asfalto.

Eu queria escrever uma crônica, irônica,
sobre o revanchismo medíocre que caiu como fruta podre
sobre a ponte até a Corte que ruiu no meio da travessia
sobre vagabundos gordos emagrecendo no desespero.

Eu queria escrever uma poesia, harmonia,
mas me falta, nestes dias, apenas uma inspiração.

CRiga.


segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Segredos de pelúcia


Dali a pouco ele chegaria, provavelmente com um buquê de flores, um vinho, e depois da novela fazer amor, na sala, no quarto dos pais ou no seu, cheio de bichinhos de pelúcia nas prateleiras cor-de-rosa. Há quase um mês papai e mamãe viajavam pela Europa, e ela sozinha porque tinha de ir pra faculdade - não ia. Mas o professor ia à casa dela. Nem novo, nem tão mais velho. Chegava todo dia na hora da aula com um presentinho, um vinho, um licor, flores, jóias... Gostava muito era dos bombons e de sua boa conversa.

Até aqueles seus dezenove anos não tinha experimentado nada assim. Nem sabia o que era se apaixonar. Poucos dias atrás tinha perdido a virgindade na cama dos pais, o professor. Todo dia ele vinha, todo dia ele falava muito, e ela se perdia no olhar dele, no beijo, no sofá, na cama. Aventura. Amor.

Mas aquele dia ele não chegava. ‘Tão pontual, gosta tanto de mim...’ A impaciência dela já chegava à perturbação. Foi pra faculdade procurar por ele. Ligou o carro, acelerou forte.

Na esquina, o escuro, mas ela viu: o professor e aquela loirinha da turma de Psicologia. Beijos e mãos passeando por baixo da saia da menina, por dentro do zíper da calça social do professor. E ela viu tudo, do meio da rua. Tudo parou, menos seu carro. Acelerou forte, muito forte, muito ódio. Dali a muito pouco, menos uma árvore na rua da faculdade, menos gente enganando gente nesse mundo confuso que era cor-de-rosa agora vermelho sangue, antes ursinhos de pelúcia agora ratos de esgoto, antes bombons de licor agora de ácido sulfúrico. Deu meia volta, não voltou pro lar.

Hoje mamãe e papai não sabem em que casa noturna ela vende seu corpo. Uma cicatriz na alma, um mistério, e uma cara de menina que faz sucesso. Por vingança, cobra caro, muito caro. E muitos querem, porque ela chega atropelando com seu corpo de menina-mulher, fala pouco, os homens gostam de suas roupinhas tipo universitária de Moema. No quarto eles sorriem e sentem tesão com a prateleira e um ursinho de pelúcia encardidinho.

Mas ela exige respeito. Quem sabe um vinho, uma flor, menos caixa de bombom, muito lero ou aula de romantismo. Homem bom é o que chega, paga, come, e vai sem falar o nome. Deixa vazio o que vazio está. De manhã vai dormir, consciência tranquila e agarrada ao ursinho encardidinho. Menina-mulher que dorme enfiando a mão naquela bunda de pelúcia, contando os dólares do dia.

CRiga.



sábado, 25 de janeiro de 2020

Metrópole infarto


Pare
respire fundo
o ar imundo de São Paulo.

Em sua insana solidão transparente
procure alguém na multidão:
não há ninguém, não há saída!

Só há você, vírus abalado
e mais o rumor de um fim de mundo
oportuno
que ecoa distorcido e clássico
nessa cidade completamente confusa.

Parece explodir em seu peito
uma vontade louca de gritar
e denunciar tardio a solidão.

Mas o ar sem rumo de São Paulo
sufoca a liberdade e infarta o coração
na contramão das avenidas.

Não há vida nem sobrevivência.
Só há a cidade que não te enxerga
e a porta aberta da igreja
que não lhe serve mais.

Respire fundo
a cidade de São Paulo...

CRiga.



sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Entre Gaudino e a brincadeira



Às vezes queimam largada,
maconha na esquina quebrada.

Cortiço na cidade silenciada.
Árvore na Amazônia, queimada.
O demônio na crente, gritalhada!

Trapo no molotov,
liberdade atentada.  

Índio no banco na praça,
brincadeira de molecada...

CRiga.




Bordões de literatura


Algo em nós é algoz,
são nós que atam a alma.

Um dia quis ser escritor,
mas escondeu-se nos aros pretos
miudinho atrás de uns óculos de grau.

“Nada supera o superlativo!”
Então quedou-se apenas escriba de cartório,
às vezes, algumas vis notas sociais.

Ontem
reconheceu firma de Drummond.

CRiga.



Menina dançarina


Você dançarina rodopia,
deixa tonto o meu coração!

A dança que você sorri no salão
inebria os olhos cansados
dessa triste multidão.

A saia que roda esconde os segredos
da menina que só quis dançar
mas que também se apaixonou pelo par.

No ar, o par não sou eu
quem me dera ser e estar...

Apenas dançar assim,
apenas segurar a tua cintura
trazer-te a este corpo quente
fervente
só de te ver dançar!

CRiga.



quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Mangueira brincadeira


Houve um dia
em que o Deus que eu conheço
resolveu lavar o barro das chuteiras
no jato do novo esguicho.

Foi o dia em que pedi
ao Deus que não conheço
que não me deixasse esquecer da tarde molhada
corpo e alma
moleque menino
convertendo ateus.

CRiga.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Dissonante é a tristeza


“Da minha sacada, ouço nesse final de tarde um pedido de socorro de um passarinho preso na gaiola dentro da varanda de um apartamento. O dono pensa que ele tá cantando...” - Clau Palma

Tristeza no final da tarde
é que nem ter passarinho
preso na gaiola.

CRiga.



terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Noite de verão


Porque agora
há noite ainda.

Paladar de deuses insones
recitando estrelas
de desejos pueris.

Faz tempo que a madrugada chama
ama segura sincera silenciosa.
Boca preta cheia de dentes perfeitos
que te come a alma mastigando poemas.

Besouros não gostam da luz amarela.
Abre a janela, vem pro jardim –
tem satélite, cadente e uma brisa.

Abre a camisa, seja valente.
Dá de beber ao poeta insolente
cujo prazer no gole profundo
goza o fim do mundo
numa eterna noite quente.

CRiga.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Traí, tou na capa da revista


A plástica beleza dá
a falsa impressão
de que é o mundo que tá errado
fora da moda.

Fraqueza…
Foda é aguentar likes, fakes
banalidades e “personas”.

Tanta curva de personalidade
tanta vaidade de boneca de porcelana.

CRiga.


domingo, 19 de janeiro de 2020

Ritmo do envelhecer


Coloquei nos olhos o sal
lágrimas de fel sem gosto.

Faz tempo que a gente não chora
não cora, sem vergonha.

Faz dias que a vida corrida
é ferida que volta a coçar.

No final do mês o vil metal
nada vale o que não vi.

No final da vida o arco-íris
lado errado sem pote de ouro.

Ritmo é o barulhinho do teclado
ao lado os vizinhos fazem amor.

CRiga.



sábado, 18 de janeiro de 2020

Diminuto


Há uma solidãozinha que cutuca o peito, sabe...
Um amargorzinho de folha em branco,
um medinho de não sei o quê.

Dorzinha fria que nem ponta de faca cega.
Uma sensaçãozinha de abstinência
frio na espinha
no meio da tarde de verão.

Bolinha murchinha murchinha,
moleques gritam as férias na quadra.
Palavrinhas à brisa morna, vão-se embora
me deixam sozinho, escória.

Agorinha eu tinha onde me escorar
ainda tenho onde morar, uma casinha
um sonho, uma cidadezinha.

Putinha essa sensação de nada
nadinha nadinha...

CRiga.


sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Goo

Quando parto derrapando na curva
é porque a trilha já está roteirizada
num rock que você não gosta.

Sim,
é o disco adolescente
que você não consegue ouvir...

Sei que amor é harmonia até na agulha –
eu não me pico
e você não sabe costurar.

Mas parte de mim um conversível de ilusões
na highway que você não foi.
Sei que só é distorção
mas meu coração às vezes pulsa
pra trás, harmonizado na emoção.

CRiga.


Sapato velho


Uma das piores sensações de um homem
é o estágio em que ele sente vergonha
de seus sapatos.

É quando toda a humildade que ele sempre cultivou
não vale mais que a falta de lustre
e de couro.

Quando o engraxate se torna
padre confessor.

CRiga.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Vou guardar para amanhã


E se eu morrer hoje?
Se amanhã outra pessoa morrer?
Se amanhã eu não ter o que te dar?

Eu não vou morrer hoje.
E amanhã sempre será possível
achar o que compartilhar.

Vou gritar hoje
e para sempre
as flores letras que guardei
para te presentear.

CRiga.


Um brinde a quem caminha


Há caminhos, caminhante,
trilhas, atalhos, avenidas.

Há vidas que se cruzam, encruzilhadas,
a dúvida no passo também é normal.

Há o mal, e ao lado não o bem:
há ali você também
mãos dadas ou num adeus.

Há mágoa e um rio doce,
deixe a água pura te embriagar,
te curar, todo dia é um novo batismo.

Há remédios e receitas de bolo,
bulas, mapas, livros de poesia
e alguns manuais de pra te autoajudar.

Há máquinas que não param de trabalhar,
trabalhadores que não param de maquinar
como sair, como amar num turbilhão.

Há dívidas que a gente paga de coração,
há outras que não aceitam nosso perdão.

Há no fim do arco-íris uma sexta-feira de sol,
uma flauta doce, um Ravel e um rock and roll.

Há uma mesa reservada, a bebida é gelada,
a sede de viver permanece aquela mesma.

E há no fim um novo começo,
tropeço, joelho ralado, um lado que dói.

Mas há caminhos, caminhante,
trilhas e atalhos como antes.

CRiga.



quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A hora


Um grilo confunde a noite.
Seria a paz, não fosse a morte.

Carros batem ao passar sinais vermelhos.
O sogro sangra no punhal o genro insano
sem grana pra comprar a droga.
No parto a mãe sorri ao filho
dizendo adeus, ela sabia, operação arriscada.

Seja estúpida, rasa, sem graça.
Seja injusta, em casa, na praça.

Uma certa paz de toda a forma ressurge
dizendo verdades e besteiras no funeral,
enquanto aos poucos a morte se envergonha de você
ainda vivo, à espera ou fugindo
fingindo ser imortal.

Uma cerveja no dia seguinte, que sorte!
Mas um grilo confunde a noite...
Seria a paz, não fosse a morte.

CRiga.


terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Um suspirar profundo


Saudade é coisa que pega a gente, e a gente parece que não quer desapegar.

Uma sensação de dor gostosa, a saudade que não dói. Sabe? Cutucar o canto do dedo, bicho de pé, café meio amargo, aquela cachaça mineira que desce rasgando?

Saudade de alguém é assim, te tira um pouco do ar, você fica meio catatônico, mas gosta da sua própria cara de bobo quando vê a fotografia daquele ser que você quase esqueceu que ama. E percebe que nem o tempão que passou fez você sarar!

É coisa que remexe a gente lá dentro, parece sangue gelado cortando o coração de compasso letárgico. É sentir frio no verão do Rio. É mentir que tá tudo bem, que amanhã a gente vem pra festa, mentir com o que está escrito na testa! Ora, ora…

Saudade é coisa mesmo de curtir, mexer o gelo no copo do Scotch. Uma vontade de esticar o braço, abraçar, pousar as mãos sobre o rosto daquele ser tão distante, beijar! Ah, beijar… No beijo a saudade quase acaba. Mas sentir saudade junto a quem sente a mesma saudade é fogo na bomba!

Tem gente que fala em matar a saudade. Mata não… Deixa ela meio moribunda, mas não deixa morrer porque senão o amor perde sentido. Sentir a saudade começar a reviver é como ver aquela velha orquídea florescer.

Saudade é tocar dó ré mi fá na flauta doce, fechar os olhos e pensar no Bolero de Ravel!

CRiga.



segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Solidão dos dedos


Ácido
o passado às vezes corrói a pele
e eu sinto, sinto muito –
as mãos calejadas perderam o fogo
escondido entre as tuas pernas.

De um outro lado você passeia os dedos loucos
à meia-luz, sozinha
à frente da tela de um computador.

E eu sei, há a dor
ácida navalha sangrando lágrimas
num gozo frio de solidão.

CRiga.


domingo, 12 de janeiro de 2020

Pureza


Eu vejo uma bela história de amor
sem toda tanta dor que senti.

Mas eu nem tenho este direito...
Não se pode querer postar os pares
nos lugares perfeitos da tua fotografia.

Não adianta adiantar-lhe
o olhar aos lábios –
a boca dela por enquanto só denuncia
a pisada na marca da amarelinha.

CRiga.



sábado, 11 de janeiro de 2020

Fotografando espíritos


A espera parece mais longa quando a chuva cai. Meus amores, minhas dores – no asfalto molhado todos perambulam com seus guarda-chuvas, cada um com sua cor em uma via sem volta.

A espera é fera que hiberna nas trevas da alma. Ruge uma dor que ecoa do fundo da caverna úmida e que cheira a mato molhado.

Quem espera sempre dança a valsa da solidão no silêncio da casa fria. Casa com o padre, reza com o bêbado caído na esquina.

Me espera, não vai agora. Eu tenho cartões postais em branco pra gente sonhar. Um vestido de festa e outro de casamento. Um baú sem nada ainda, uma garrafa intocada de licor. Uma cama de solteiro, a gente joga o colchão no chão.

A chuva da espera molhou toda a minha casa, distraída deixei janela aberta pra alguém me invadir. Eu queria ter asas pra voar até alguém. A espera parece mais alta quando o céu se abre e o sol não traz mais novidades.

A espera se transforma, com as nuvens sombrias em torno da lua, na noite que cai da minha estante e se quebra mil caquinhos, um porta-retratos ainda com foto de revista. Um anjo azul de bibelô empoeirado, lembrança de um sobrinho que nasceu, cresceu e viajou ao estrangeiro.

A espera é acreditar em filho de virgem. Uma prece, me esquece, me marca num muro, prefiro ser Madalena. Me atira na vida. Mas não me espere chorar, no compasso do ponteiro do relógio parado vou te atraindo pra armadilha: serei a bruxa que vai te transformar no sapo, serás meu anfíbio de estimação, e você terá que esperar um beijo meu te libertar de novo. Só que meus lábios secarão com o ar de outono. Estaremos presos um ao outro.

A espera é o brejo feio e fedido da floresta negra das fábulas que assustam as crianças. É a impossibilidade de contar belas histórias aos casacos pendurados na cadeira da sala de jantar. É a solidão dos deuses loucos. É o dedo em todas as feridas da trouxa autocompaixão. Rasgar a carne, sangrar líquidos sem cor, chorar lágrimas imaginárias e etílicas de guaraná. E dormir soluçando baixinho esperando o despertador tocar pra espera recomeçar com o dia sem as flores à porta. Café amargo, janela aberta, estou pronta – que venham as cartas em branco que ontem enviei pra mim...


CRiga.