terça-feira, 30 de junho de 2020

À minha professora


Dona Dalva,
minha professora de português.

Falava também francês!

Estrela de blush e batom sem brilho
de um lindo e amarelo Fiat 147.

Ofereceu carona
a adolescentes encharcados pela chuva
a caminho da escola.

“Por que não veio do dia da prova?”
Porque quis perder a hora
brincando com minha irmã...

“Pois então sente aqui,
faça essa prova agora por mim.”

Fiz dez, que beleza!

Dona Dalva sorria fonemas
de amor à Língua Portuguesa.  

CRiga.


Corpo celeste de luz própria


Se é cadente a gente quase nunca vê.
Mas se vê não faz a matemática
e até esquece na manhã seguinte.

Mas quem vai querer mesmo fazer conta
se cresce verruga na ponta do dedo da gente!

Havia uma noite muita gente
deitada na pedra
confundindo-as com vagalume.

Havia um nome e um perfume.
Dalva era minha professora de português.

Havia também Maria
três meninas formando fitinha no céu.

Às vezes se passa de Vênus
sangrando corações desiludidos.

Às vezes se move, é satélite!
Quando chove a gente chora de pena
quando ela grita uma pequena luz.

Na cruz é o cruzeiro.
Tem o falso e o verdadeiro.

Tem aquela que eu te dei!
E tem aquelas
que minha astrologia já exilou por bem.

Tem é todo um tipo de amor.
Porque nunca ouvi ninguém dizer
que não gosta de olhar estrelas.

CRiga.

Na multidão te reconheci


Fisguei teu cabelo vermelho
naquele show de rock.

Você virou-se louca garota fatal
pronta pra me matar
vociferando seus impropérios.

Tão linda desarmada
quando encontrou meu olhar
que sorrindo
apenas dizia um “oi”.

CRiga.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

"Ninguém é cidadão"


Enquanto a cova não chega comendo
o pátio do Paço ali pertinho,
cegueira reina.
Na sujeira das calçadas tomadas
as torneiras são abertas
pra lavar os bolsos dos fantasmas.

Mataram-se por uma marquise
na esquina,
noutra fumam bebem injetam e revelam
a verdadeira cidade do outdoor.

Suja é pouco
buracos e semáforos apagados também.
Pouco dinheiro pra tudo
pouca vontade também.

Não é Turquia nem Síria,
Etiópia, Somália, Venezuela, Haiti –
o caos do mundo também é aqui
no centro da cidade que já era feia.

Na tentativa de falar sobre o amor,
o pulso amotinou-se –
disfarçar paixões que é fácil,
difícil é conter a vida que grita
que cheira a mijo
no asfalto muito caro.

CRiga.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Ofertas de supermercado


Há o charme que chama.

A chama às vezes engana,
é novela repetida.
Vem que à tarde eu trabalho
pra caralho
preso na poeira.

A estas alturas nada é tão novo
que num segundo não se torne
apenas a toalha fora do lugar.

CRiga.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

Fórmula mágica - ou, “se vira!”


Eu vou criar o vento do rodamoinho.
O dinossauro do petróleo.

Turbinar o sistema
com um novo binário.

Vou inventar o homem
do pobre e do milionário.

Vou engarrafar o ar
da pura inspiração.

CRiga.


Um dia pro resto da vida


Tão insistentemente Vera batia na porta, como quem não tivesse nada mais no mundo a não ser o ser humano do outro lado da madeira velha. Aquela porta acinzentada que dava direto naquela avenida do centro da cidade. Às vezes incomodava ter que vencer os mendigos e putas no meio do caminho na calçada, mas vencia porque amava tanto o ser do outro lado da porta de madeira velha, insegura. Qualquer um, com um mínimo de esforço, podia arrombar a fechadura e levar o submundo pra dentro daquele lugar sempre sujo, mini sala-cozinha-banheiro-quarto, cinzeiro sempre transbordando, garrafas vazias, baratas, calor, mofo, cama desarrumada, gritos na madrugada, abrigo, prazer.

Era aquilo que Vera queria naquela noite, trazia consigo também meia garrafa do conhaque barato. Só aquilo. Batia, batia na porta feia como que suplicasse socorro ao inferno. Chovia. Vera chorava, mal sabia por que.Tanto que batia a mão sangrava, mas não deu importância à dor – só queria ver abrir-se a porta, abraçar aquele ser inatingível que sempre amara mas nunca conseguira perceber assim. Quando teve certeza que amava desesperou-se, correu pela cidade, na chuva, uma garrafa ao colo e um coração que doía uma dor que nunca sentira. Enfrentou putas e os mendigos no meio do caminho, e lá estava ela naquela porta fria. Batia, batia, chorava, sangrava. Dormiu na escada de dois degraus, a porta nunca se abriu.

Dia seguinte o agente da imobiliária com sua placa de “Aluga-se” teve um trabalho a mais: convencer Vera que ali não morava mais ninguém. Era já cedo, e Vera entendeu que era muito tarde, não tinha mais por que voltar a lugar qualquer. Chorou mais uma vez, soluçou sentada. Vera então entendeu o que era arrepender-se.

Vera envelheceu como a puta mais famosa e mais desejada do centro da cidade. Morreu sozinha agarrada a uma placa velha de “Aluga-se”, estirada numa escada de dois degraus, depois de, como dez anos antes, passar a noite batendo naquela porta.

No óbito, causa mortis: solidão.

CRiga.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Procissão de São João


Destrua os olhos roxos
querendo esconder pecado.
O mais pecado dos pecados –
ousar não ter pecado.

O suor do santinho a caminho
daquela fontezinha artificial
não purifica o asfalto caro
amanhã forrado de santinhos
de campanha eleitoral.

Os fogos do céu são bonitos
tão bonitos quanto o fogo
debaixo das saias das meninas.

Não creio em fonte, creio no fogo
que não mente nos olhos roxos
que não sente por pecar
e que vive santo, sem machucar.

O pecado mora aqui mesmo
não precisa procurar ao lado.

CRiga.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Um ar de inverno invade a festa


Eis ele dançando sobre os cílios
enquanto os olhos desafiam
a última saia que balança.

Moço de diabo gelado no corpo!
Seca a inspiração, nariz até sangra.

Lã na orelha pra não ouvir sua voz,
canto de morte arrepiando as nucas.

As frutas doem os dentes,
mas uma cerveja gelada não.

O vinho ainda nem quer combinar...

Não combina é esse casaco
que na festa se abre em boas-vindas.

Quando um jovem se desnuda
e sussurra, alto, perto da janela:

não adianta nem tramela,
é o Inverno quem tá pra chegar.

CRiga.


Call


O que dizer da noite que virá.
A reunião de amanhã.
O que dizer se amanhã ainda não há.
O que quer me dizer?
Que o hoje é agora.
Que a hora é implacável.
Que o minuto é demorado.
Que o segundo é eterno!

A noite já se veio.
A reunião é amanhã.
O que dizer se a manhã nem se veio.
Teço teias nos ponteiros:
de tão antigos que somos
seremos os primeiros.
Vamos polir os velhos relógios,
os segundos são certeiros!  

CRiga.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Vila Leopoldina


Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love ”*... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Eu demorei... um namorado viria vê-la amanhã, ele gostava de Beto Guedes e Belchior. Eu não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.


sexta-feira, 19 de junho de 2020

Amanhã se der o carneiro


Tirai os pecados inventados no mundo.
Perdoai quem nos ofende.
Rogai por nós, cheios de graça.

CRiga.

Um Novo Horizonte


Aqui estou pro que der e vier.
O aniversário é meu, mas a sorte é tua.

Vem que o cadeado eu já quebrei,
o chaveiro fiz questão de perder.

Eu sei que a data marca, a gente treme,
e pra quem acredita no caminho
na igrejinha das quartas-feiras,
eu estou no altarzinho, braços abertos.

Não precisa mais limpar o corpo,
a alma a gente cuida de salvar.

Pode esquecer a coleira, a corrente,
há um latido bem conhecido aqui comigo.

É chegada a hora. Vamos embora.

Deixa anotado o teu salmo predileto,
e vem guiando nosso Volks azul.

Vem que te espero na primeira esquina
com aquele meu sorriso de primeira vez.

CRiga.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Rimar amor com travesseiro


Há perguntas que de tão simples
armam tempestades.

Você me ama?
Por que não gosta mais de mim?

Nem flores nem dores adiantam.
A esperança, a bonança,
rima pobre, roubada poesia,
nada depois de hesitar.

Há respostas que de tão francas
devolvem as coisas no lugar.

Eu não te amo.
Eu não gosto mais de você.

Sem desvios sem rodeios,
seta que aponta firme e certeira
a estrada à beira do precipício –
rota difícil, a vontade é de pular.

Há amor que de tão confuso
não sente nem sabe
se ama de verdade –
não mente mas omite
insiste corrigir e fica sem sentido
na insônia de um coração partido.

Há amor que de tão autêntico
não mente nem acena,
é seco para o sim e para o não.
Não sente pena, diz a verdade,
dorme o sono de quem ama
simples, sem vaidade.

CRiga.


quarta-feira, 17 de junho de 2020

Tou indo (me espere)

Aqui pode tudo
menos se desesperar.

Ver o vulto da verdade
e se desequilibrar.

O sinal de quem acorda
te gritando pra dormir.

Todos nós vamos um dia.
Seja de noite
ou de dia.

CRiga.

Trabalhador noturno


Estou só, rogando paz.
Já volto atrás e vou embora.

É hora de recolher-se
aceitar a noite que boceja
e descontar na primeira manhã.

Parece mesmo que o mundo acabou.
Ou começou agora
quando preciso ir embora?

CRiga.



Conversa de canto consigo


Sem pressa.
Nossa era nem era essa,
não era nossa.
Nova era também não era.
Quem dera se fosse nova,
quem dera se fosse nossa.
Que paz é essa
se a guerra nunca cessa?
Depressa fazer uma prece
pregar uma peça
despregar da cruz.
Eu sou a luz a olhos nus,
a vergonha veste a gente.
A gente também sente
o prego de sempre nas mãos.
A gente nem sempre paga
o preço cobrado na etiqueta.
Apreço, que seja...
Você leu? Devolveu?
Seu jeito não mete medo.
Seu medo não mete gente.
O seu medo mata a gente!
A gente sempre corre,
a gente morre de medo da gente!
  
CRiga.


Pele de urso


Recolhido ao frio, é junho.
Não crio. Criam caso
quando eu vou deitar mais cedo.

Como a caminhar na neve densa
apenas cumprindo obrigações.

O meu tempo é comprado. Barato.
Brisa nas palavras ou censura velada –
que paz é essa
se a guerra nunca cessa?

Vá, veste a pele de urso.
Mas encrusta
na pele do bom cordeiro!

CRiga.

Sem ponto cardeal


A nova era já era
e o novo erro é mero acerto.

Não há caminho certo, nem perto.
Aperte o cerco
do esterco nasce a rima.

Acerte o ponteiro  
porque o poeta é certeiro
e sem direção.

CRiga.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Quermesse


Vida besta esta de procurar preocupação.
Bom é procurar no inverno novo
um tempo antigo de curtir no frio
o mesmo couro da velha jaqueta.

Vem que hoje tem fogos de São João
vinho quente e quentão.
Tem é fogo também debaixo
das saias das meninas –
por isso é que não sentem frio
nem nossos corações partidos.

Mas as intenções são as mesmas.
Uma Maria quer casar
uma Joana viuvar.
Quando Zé pescar o prêmio
a namorada vai enciumar.
A prima da cidade quer ursinho
e ela tem lindos olhos de um verde
que nem a bandeira do Brasil!

CRiga.


segunda-feira, 15 de junho de 2020

22h45


Ainda há tempo
nestes quinze minutos finais.

Fatais...
Não, descarto.

Os tais!
Muito menos não, desacato.

Morais.
Pode ser amanhã de manhã.

Mais quinze?
Pode ser, por que não?...

CRiga.


Lugar


Como sem raiz, vou me enraizando.
Depois que a quarentena passar
conseguiremos esperar outra
para sermos felizes aqui?

Como sem energia, vou me energizando.
Depois que sobrevivermos
conseguiremos sobreviver
em outro lugar?

Como sempre com você,
eu vou indo mais fundo.
Mas só até o raso do profundo
que a gente junto conhece bem.  

CRiga.

Assaltaram a gramática


Azidéia, minha querida!
Ainda com a, cento – 
sinto que revolucionárias
mais de cem ainda fervilham.

Não me abandones!

Pelo menos o velho verbo ainda flexiona
o bom sujeito que um dia eu fui.

CRiga.


sexta-feira, 12 de junho de 2020

Um olhar ao infinito horizonte de inspirações


Eu precisava só de um bolero
um lero de amor ao ouvido
a levar-me de novo pelo salão das letras.

Uma espuma clara a mais
na cerveja gelada no balcão –
a gente divide a boa rodada
e inclui o amigo garçom.

Um selo com figura de Drummond
pra carta que ainda ensaio te escrever.

CRiga.

As simples letras pepitas de acalmar


Não adianta mesmo coçar-se
coisas que não são tuas.
Níqueis sem rostos de presidentes
caem dos bolsos furados –
nada paga a paz de espírito.

Há um Brasil que tolhe direitos,
e até ser simples neste garimpo
custa caro como o desperdício
na Assembleia Legislativa.

Há valor às minhas letras,
não caras nem bancando
a coluna social.
Nem raras que sustentem
o carnê do falso lar.

Vá lá! – é preciso mesmo
muita simplicidade, meu amigo!
Mas não me venha com “o faxina
que virou empresário
e até um deputado!”

O valor que se paga é pepita d’alma,
a minha alma!
Ladrilha pedrinha de brilhante
ao meu amor que não passou. 
Se essa rua se essa rua fosse minha
eu não vendia, eu não vendia.

As letras pagam meu cobertor de ouro,
a alma é nua!
Esperança menina que orbita boba,
solta, singela num poema.

CRiga.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Alma seca feito junho


Sou capaz de encher o copo,
dar de beber à alma
assim seca feito junho?

Não é tarde
e eu te espero sem novidades.
Seus planos brilhantes me dão calma,
a alma do passageiro no melhor lugar.

Recorrer à memória é apenas correr
fugir de não sei o quê –
este bicho feio sem forma e sem letras.

Ontem eu caminhava esquinas amigos meus
desfilava um caderno azul quase roubado
por gente que não sabia fazer poesia.

Hoje sou marginal preso em mim
pelo crime maior de não aguar as plantas
e a alma seca feito junho.

CRiga.