quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Matilha ofendida


Mesmo com a necessidade de conter
a sangria ácida e a melancolia,
nesta mais pura carência 
de falar de amor neste dia,

duques do Planalto Central
não nos deixam respirar!

São lobos vestidos em peles de lobos
nada bobos, maus é pouco.

Aliás, coitados dos lobos!
Soubessem manter suas peles
à custa de malícia matilhista,
apenas rimariam
com o deputado corporativista.

Corja! Bando! Canalha!
Não amaldiçoem os animais
e nos deixe falar 
sobre quão necessário é o amor.

CRiga.

Câmara retira 6 propostas do MPF e desfigura pacote anticorrupção


terça-feira, 29 de novembro de 2016

Proibido colher flores

(foto de Flávio Costa)

Daqui só vejo o cinza de asfalto
onde apenas pombos sujos
decoram a melancolia.

As poucas árvores que há
quase são engolidas pela “paisagem”,
são bonsais de estimação –
paisagem é palavra demais bonita,
não combina com a cidade.

Olhos vidrados no movimento dos carros,
pássaros maliciosos cortam a travessia
mudos – ou o barulho suga seu palavrão
contra o carro do ano
em excesso de velocidade.

Procuro sobreviver nisso
que se convencionou chamar-se de “selva” –
preferiria procurar cipós pra doce amiga
artista que molda apanhador de sonhos.

Procuro o sentido de Manoel de Barros,
mas aqui a simplicidade está apenas
na placa que me proíbe
e não me explica
porque não posso colher as flores
do jardim da Prefeitura.

Para o amigo Danilo Amélio


CRiga.


segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Romance de cabeceira


Eu vejo bocas marchando, eu não consigo acompanhar...

E finalmente entregue ao corredor de vozes que esperam uma resposta, eu me levanto, digo que uns remédios aí estão me fazendo mal e me retiro, fujo, sem mais. Enxaqueca seca, estresse, o que for – ouço baterem os sinos falsos da Matriz, e mais uma vez desejo morar numa cidade de verdade, onde eu não precise plantar discos ou livros. Apenas colher o que plantar, dono do meu destino, senhor de minhas linhas.

Não tenho tempo pra doença moderna. Espio neste inferno feito pecado minha arcaica dependência nos “líderes” enquanto desconheço como construir destinos. “Sem trabalho eu não sou nada”*¹. Não há fim nestes dias. Eu não quero simplesmente enlouquecer. Minha memória está falhando, eu estou cansado e não carrego pedra.

Eu vejo o dia marchando, o pelotão da ditadura. E eu me escondo num romance, me torno um Floriano sem tanto charme. E registro tudo como num diário - um dia, um outro eu pode querer ler sobre mim, num futuro qualquer de paz: 

“Despeço-me de M. em seu apartamento. Ao anoitecer ficamos longo tempo em silêncio junto da janela, vendo o fog cobrir aos poucos a cidade e a baía. Quando as luzes se acendem, M. murmura:

— So this is the end of the line...

E para minha surpresa e embaraço, põe-se a chorar de mansinho. Pouco depois me leva no seu carro até a estação, onde tomo o trem para Berkeley. Seu último beijo sabe a neblina.

Não terá sido esse o gosto de toda a nossa história?”*²

Hoje à tarde talvez eu fuja novamente - para Santa Fé!

*¹ “Música de Trabalho”, Legião Urbana (“A Tempestade”, 1996)
*² “O Arquipélago” (“O Tempo e o Vento”), Érico Veríssimo

CRiga.



Vontade de escrever? Minta um pouco…


Você pode escrever sobre o que quiser. Só não escreva sobre si mesmo – esta pessoa em que você nunca pode confiar… 

Se insistir, mentirás. Mentirás até que convenças a ti mesmo que a verdade a gente inventa só pra ser feliz. Uma verdadezinha inventada não faz mal pra ninguém, vai…

Então escreva sobre a vida dos outros. Invente vidas batendo de frente, gente morrendo no final da história. E espíritos de almas mal-resolvidas que resolvem atormentar outras tão mal resolvidas quanto. E ponha uma saída triunfal, daquelas que levam a bengala de cedro de verdade da sala – um vivo veria apenas a bengala boiando boiando atravessando a porta aberta. Isso tudo dá prêmio de literatura na cidade onde moro.

Use muita metáfora, muito código, muita escrita que parece sem nexo – parece chique não fazer-se entender, porque às vezes até dão prêmio pra isso na ABL.

Ponha uns versos no meio, tipo poeta maldito. Palavrões também parecem adequados na modernidade.

Separações, amores imperfeitos. Não esqueça da menção a uma música antiga.

Fosse escrever sobre si, a verdade é que ninguém talvez quisesse saber. E, convenhamos, não fica bem: você ficar sozinho numa tarde chuvosa, com aquele papelzinho besta às mãos, perdido num ponto de ônibus qualquer, sola e guarda-chuvas furados, um terno velho cheio de bolinhas e um conhaque pela metade. Faça-me o favor de parar com esse melodrama, batidamente lindo, mas melodrama de escritor maldito. E caia logo à sarjeta, deitado junto à centena de cacos e uma folha de papel molhada na poça. Ninguém vai chamar o resgate. Assim você vai morrer.

E se os borrões no papel permitirem, aí estará um novo sucesso de literatura. Mas você já estará morto. Mas você não deve querer morrer. Por isso, viva a vida de outrem, que morre e revive conforme a conveniência do seu acordar. Mas mate um a cada dia, e faça (re)nascer outro pra morrer no próximo amanhecer de asfalto molhado. Assim você mata a vontade de escrever outra bobagem, e não corre o risco de ser traído por si mesmo – essa pessoa em que você nunca pode confiar.


CRiga.


sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O circo pelo pão


Tem que gostar,
fingir gostar
ou forçar-se a gostar.

Como a fotografia não mente
todos sorriem e se abraçam pra lente,
num mundo perfeito de flashes
e notas sociais.

Nesse circo,
ao lado da querida autoridade paralisada,
os pobres desdentados também sorriem
seu momento de glória maior.

Na manhã seguinte
apreciam as notícias do dia –

uns com seus brioches
rindo e falando mal,

e outros com o pão de ontem
trocado por foto
na coluna do jornal.

Tudo parte
desse grande teatro social.


CRiga.


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Samba ilustrado *


O barulho daquele samba novo no rádio muito alto era como marretadas em seu espírito cansado, enquanto bundas pagodeavam no chão de cimento batido feito ritual prenunciando sua morte. Bebia sua cachaça no balcão do boteco de esquina da favela, sozinho, enquanto pensava se teria feito o correto ao cimentar a amante morta debaixo do tanque. Dariam falta dela, e uma certa neurose o avisava que iriam procurá-lo. Ele via, ou pensava ver, vários olhos o vigiando na vizinhança enquanto entrava na casa daquela negra linda que escolhera o par errado.

Conheceram-se no ponto de ônibus, de manhã. Conversavam muito no caminho ao trabalho – ele, pedreiro, branco de olhos azuis; ela, linda negra, recepcionista de um consultório de dentista. Um dia, um convite, “passa em casa na volta”. Como resistir à negra mais linda e gostosa do morro? Assim começou.

O caso é que um dia, meses depois, a nega enlouquecera. Queria que queria aqueles olhos azuis só pra ela, aquela pele polaca agarrada à dela, aquela pele de veludo quente e branca diferente dos negrinhos do morro. A nega queria que ele largasse a esposa, filhos e tudo mais, e assumisse logo aquele romance louco, ardente. E apesar da paixão vermelha, queria filhos também. Aquilo não era mais como no começo, apenas um caso, sexo, saídas, segredo – agora, depois de seis meses, tudo ficara sério demais pra ela.

E apesar de adúltero, ele era trabalhador honesto, não deixava faltar nada em casa e amava sua mulher mesmo na cama fria em que fizera algumas daquelas seis bocas a mais que comiam no barraco. Ele sabia que o chefão do tráfico no morro era o pai de pelo menos três de seus rebentos, e perdoou, o que fazer? Adotou as crianças como suas. Sua mulher um dia adúltera ganhou e ganhou presentes enquanto era aquela morena gostosa sem o corpo castigado de seis filhos. Mas o traficante cansou um dia, deu uma grana e tudo certo. O barraco tinha Cartoon pra criançada, tevê de plasma e computador de internet banda larga.

Um problema: a negra linda, a amante, era nada mais nada menos que propriedade justamente daquele mesmo traficante. Ou seja, ele estava condenado à morte por todos os lados, como escapar? Cedo ou tarde, polícia ou bandidagem descobriria a história daquele fim de tarde no barraco: ela exigindo ele só pra si, mais uma faca na mão ameaçando matá-lo e matar-se em seguida, quando ele preferiu abreviar as coisas: tomou a faca da mão no vacilo da nega, cortou o pescoço macio dela feito faca quente na manteiga, e cimentou o corpo na cozinha, embaixo do tanque adaptado do barraco. Um problema a menos pra se preocupar.

Depois, saiu vagando feito zumbi, cabeça pesada. Entrou no terreiro do samba agudo, o diabo gargalhava no canto do balcão. Bebia sua cachaça, mas não alcançava o arrependimento. Havia um certo medo, mais a preocupação de ser levado preso – ou ser morto, muito melhor. O receio maior era apenas de deixar a família sem sustento num mundo de incertezas e diabos gargalhando dos filhos e da mulher a cada esquina da favela. Pagou a conta, trombou com as bundas pagodeando no meio do boteco, e decidiu encarar o pesadelo.

Pelos becos rumo à sua casa, entregava ao acaso espremido entre barracos no meio caminho aquela sua vida mais ou menos, agora marcada por sangue e maldição. Já sem qualquer perspectiva de vida antes, agora a morte era apenas uma questão de tempo. Um cheiro de enxofre o seguia.

Foi quando viu a espera cair no beco mais sujo da favela: o chefão do tráfico e seu grupo vinham sentido contrário, apressados, de encontro, nervosos, anjos do apocalipse. Ele passou a desejar apenas uma morte sem os sofrimentos que os traficantes sujeitavam alguns inimigos, por vingança. O medo subiu pelas costas, o diabo voltou a gargalhar feroz, agora correndo em suas veias até sua cabeça panela de pressão. Mas ele não reagiu, apenas encarou o demônio. E aceitou.

O chefão meteu a mão no peito dele, com uma arma na outra mão:

– Tava na tua captura, alemão. Ouve bem...

A história foi a seguinte: o chefão estava fugindo do morro porque a polícia tinha recebido informação anônima, e ele desconfiava justamente da nega. Um dia antes ela queria se separar do traficante, confessando que tinha um amante e queria ficar com seu amor. Mas como ela sabia demais dos esquemas de crime no morro, o chefão não deu chance: foi lá, na surdina, e incendiou o barraco dela.

– Matei a nega, tava dormindo com certeza – confessou o traficante.

Meteu a mão no bolso e tirou um bolo de notas graúdas.

– Toma, isso é pra você. Se correr, tem mais lá no meu barraco, é tudo teu.

O traficante sabia que ele aceitara criar filhos que não eram seus, frutos de adultério. Dali desceu pra fora do morro, em fuga.

Dia seguinte o jornal daria a morte do principal traficante do Rio de Janeiro.

Fim de uma história. Recomeço de uma outra.

***

Numa manhã ainda madrugada, naquele bairro sem favelas, ele fazia a barba pra ir à labuta diária numa obra no centro do Rio. A esposa entrou, olhou pelo espelho ainda embaçado pelo vapor do banho. Os olhares se encontraram, as bocas sorriram uma cumplicidade etérea.

Na cozinha um café preto quentinho, pães e aquela margarina do comercial. O rádio baixinho tocava um sambinha antigo – “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima...” dando um ar de redenção junto à tinta branca ainda cheirando fresca. Dançaram agarrados, lentos, silenciosos. O sol nascia. Os filhos dando risadinha da sala, enquanto trocavam de roupa pra ir à escola. O sambinha cessou, veio o locutor dando bom dia.

Ele beijou a esposa, e beijou cada um dos seis filhos. Arrumou a marmita na mochila, abriu a porta, o sol invadiu a mesa junto do cantar de um pássaro qualquer. Atravessou o quintal de flores, abriu o portão de madeira que rangia uma vidinha tão bonita. Deus sorria na caixa de correios. Saiu pra trabalhar.

Aureliano Francisco

*3º lugar no Prêmio Barueri de Literatura 2016

CRiga.


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Compromisso caseiro de vida


Fórmulas mágicas para deixar de querer adivinhar o futuro a partir dos parcos sinais de hoje. Faz tempo que não sente a apreensão do gênero operário, a ameaça dos Brasis de hoje porém declarada apenas no silêncio dos novos vencedores. Antes, houve apenas o remoer de não se lembrar como se faz alguém feliz. A incapacidade de fazer feliz.

A incapacidade de se partir estas correntes donas do seu amanhã; de moldar o futuro dos filhos a partir de sua vontade e certezas colhidas de uma vivência plena, independente – não de favores dos vendados olhos do poder. “Dono do destino”, mas será mesmo que existe alguém assim?

Apenas ele vê a varanda ameaçada quando este vento torto faz a madeira bater-se querendo despertar da languidez. Apenas ela lembra do pito dividido da Mariquita de Drummond.

A voz dela lhe abala quando ele fala sobre seus medos. Mas a voz dela também lhe acalma, como o rio profundo que atravessa a cozinha de Adélia Prado.

“Lembre-se de nosso vinho de hoje à noite. E pare de se coçar!”

CRiga.


(auto) Terapia


Amanheceu com um grito abafado, tinha algo a dizer. A manhã chuvosa ajudaria, e mais uma vez havia o som dos pneus contra o asfalto da cidade. Não era saudade pueril, nem paixão trazida de um sonho qualquer. E não era nem tão libertário. Talvez literário – se tivesse tempo escreveria um capítulo daquele romance cuja ideia perambula pela cabeça há tempos.

Queria mesmo era enganar o dia que insistia ser comum. Havia no ar uma doce melancoliazinha, e uma certa apreensão com o futuro – que, aliás, procurava nem dar tanta bola pra não cair na vala comum das pessoas comuns que têm medo de futuros comuns.

O duro era ouvir o que queria de fato dizer. A atmosfera lhe daria o eco; o ódio o necessário e ácido tempero; e o amor a forma ideal da metáfora tradução. Nada acontecia, porém, nada desamortecia a alma. Lembrou de uma história curiosa: passou um cachorro preto pelo estúdio, e o rock zeppeliniano hoje sem clima foi denominado “Black Dog” – talvez falte algo passar e lembrar os sentidos sobre como e o que escrever. Estava mais para “The Rain Song”, mas essa já havia sido tema, várias vezes. Música nenhuma. Só o doce barulho do asfalto molhado pela chuva.

Aliás, por que sempre o barulho da chuva contra o asfalto? Começava achar de fato que precisava mesmo julgar-se louco que precisa de ajuda – mas é seu próprio terapeuta, fazendo as vezes ora no divã, ora na poltrona.

Mata o pouco trabalho sério e tenta vencer o silêncio. Está mais inspirado. As palavras lhe saem tão fáceis. Falta apenas ouvir. Falta apenas se reconhecer pessoa comum à mercê.

A manhã desaparecia aos poucos com o gosto do café. O silêncio chegava a ser pornográfico. Quais eram os pensamentos dos vagabundos pelo ar, quais suas preocupações? Eu posso ser também um deles. Movo a roda quase emperrada de uma repartição, mas tenho tempo pra escrever.

Enfim, decide de vez tapar sua boca agora sonolenta, naquela bela quarta-feira em câmera lenta, chuvosa, primaveril. Risadas dos vagabundos à espera da torcida pelo Big Brother que vem por aí, depois dos tristes ares de novembro. E uma incerteza persistente sobre o 1º de janeiro.

O que tiver de ser, que seja a base da força humana para continuar, não da humilhação; da falta do ópio, que haja então apenas o arroz e o feijão sobre a mesa dos que acordaram cedo sem as mesmas regalias. Será hora de recomeçar, ele esqueceu-se como é. Mas vai aprender. Vai ser pessoa comum, talvez meio calejado e sem tantas doces pequenices pra contar. Mas vai ser poeta decente, com um trocado pra cerveja e a certeza de um dia melhor.

Não grite hoje, então: guarda teu espírito pra velha noite de luar. E diga aos filhos que tudo é melhor assim – a macia voz da certeza aconselhando livros e canções, e o beijo nos lábios sorridentes de um amor que sempre fala mais alto que ele. Ninguém vai embora. A hora de recomeçar pode ser dura, mas a gente se reencontra. A gente se encontra quando dá voz à alma, seja ela regada pela chuva, seja ela necessariamente dura feito pedra – preciosa!

Ademais, o sol já vem saindo, e a chuva indo embora. E o futuro é agora, a hora que a gente decidir.  

CRiga.



terça-feira, 22 de novembro de 2016

Veneno


Talvez a malquerença faça ferverem na pele
as erupções – os vulcões são implacáveis.

Talvez o mundo em desacordo plante
arames farpados no semblante –
é a idade que correrá mais rápida.

Mal tens tempo de colher os lírios,
portanto faça do tempo e do vento
o voo perfeito – sem acento – à imperfeição.

E no afinal,
fora a grana escapando das mãos,
um terceiro lugar não é tão mal assim.

Fora a vagabundice que fede pelo ar,
quem mais atrapalha o teu dia
és tu mesmo, afinal.

É preciso ter um olho apenas
do que sete buracos na cabeça.


CRiga.


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Poema que saiu, foi embora


Descuido da rota, vou parar bem na porta da tua casa. Antes de bater sabendo que não atenderia, me recebe com flores às mãos. Vinho, uma vela sobre a mesa, o jantar está posto para dois. Eu me confesso, "sou pecador, te esqueci, amaldiçoei teu nome por onde andei". Por onde andei apaguei tuas pegadas me seguindo, eu era mais uma criança com medo da piscadela daquela negra Nossa Senhora Aparecida de barro da minha mãe.

Levanto a flor ao altar, comungo do sangue de Cristo mas o corpo eu mastigo, desaprendi as aulas de catecismo. Eu era mais puro. A igreja ainda é bonita, mas são apenas tijolos e cimento, imagens e vitrais, confessionário e sacristia, fria, fria. Eu tento me sentir em casa, não faço o mal educado, agradeço. Mas saio à porta aberta, sigo meu caminho deixando você mais uma vez pra trás.

Zeus também me deu o vinho de Baco, um saco essa história, um porre, me embriaguei. Não tenho mais idade pra tomar esporro beático, nem mais paciência pra sair batendo cabeça nos postes à procura de reacender luzes queimadas do caminho. Eu caminho como quem não precisa fazer mal a ninguém – nem a mim mesmo.

CRiga.

“Bom dia”


Boa tarde, na verdade...
O passo é aquele desapressado de praia,
e não tem nem como não notar – 
são vagabundos pelo ar.

Eu deveria cuidar da minha vida...
Mas há um monstrinho guardadinho
de nome “Senso de Justiça”
que durante o dia me apavora.

É hora de me purificar...
Não posso alimentá-lo demais,
mas não quero matá-lo de fome –
até que gosto desse monstrinho!

Bom dia, Godzilla.

CRiga.



quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Alma de poeta


Dá-me às vezes preguiça falar contigo. De arrancar-te os segredos, fazer-te despertar desse hipnotismo regado à seiva ácida do cotidiano. Chacoalhar-te do sono irritante. Ferir-te com a faca cega.

Dá-me trabalho te procurar. Muito mais fácil quando gritas geralmente numa manhã chuvosa, ou quando inventas de fixar o olhar num encanto fora de seu alcance, melhor assim – sangras de uma vez as letras contidas nos cabelos, nas cores da pele, entre as pernas, no jeito de ser.

Dá-me prazer abrir-me contigo. Tuas respostas nem sempre convenientes me pregam na doce cruz de um sofrer quieto, nas linhas do diário. Tu és por vezes uma romancista, outras uma irrequieta observadora, outras amante. És perfeita em tua imperfeição de psique duvidosa, este monstro que perturba a verdade dos contos de fadas sejam eles do jeito que for – psicóticos, eróticos, sociais, banais.

Embriago-me só de abrir a rolha do teu nobre vinho, me toma o corpo a forte fragrância do vidrinho do teu perfume quando o cristal se estilhaça na minha busca pelo sentido de viver. Mas às vezes o cheiro vem do campo, outras do pescoço de uma mulher, várias outras do asfalto molhado pela chuva. O gosto? Ácido sulfúrico, o vinho francês que nunca tomei, a maçã do pecado que não acredito mais. Texturas de veludo, sempre.

Enlouqueces-me quando não me respondes – daí cometo o ato derradeiro de te amaldiçoar em todas as noites e dias simplesmente parados num quadro sempre igual, mas com cores variadas; falo mal de você nos cais, boto uma rima do dicionário pra convencer a história, e me acho o tal quando tenho a certeza que matei você de vez, não mereces minha devoção...

Mas és imortal! Deliro quando vens então semicadáver, arrastando vísceras e ainda carregando um caderno azul! Tomas a adaga da minha mão, e me cravas no peito correções escritas com meu sangue. Nosso sangue. E revives, me matas de pulsos pulsantes, quase um infarto de letras que saltam. És traiçoeira quando te acho, e tu me entortas feito Garrincha – seguir-te, então, assistir ao gol e vibrar com a arquibancada completamente vazia de nossa simples imaginação.

Pronto! Já não há mais palavras. Então sorris o sorriso da marotice, borboleta de primavera, cânticos de águas cristalinas na corredeira. Uma varanda de missão cumprida, duas cadeiras de balanço, crianças crescendo no quintal.

És finalmente alguém em que se pode confiar. Ou nunca confiar. És finalmente alma. Finalmente poesia.


CRiga.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Forró das almas


Chovesse
um diazinho só a mais 
do que eles suplicam nas canções,
seria talvez enchente
inundando a arte da gente.

Por isso, na pobre terra da garoa,
melhor apenas no trio de instrumentos
continuar ignorando leis de Deus.  

Pelo menos haverá música pra cantar
num baile de um domingo agonizante –

uma esperança boba, dissonante, 
de um milagrezinho qualquer 
mas que seja molhado 
não do pranto, do triste canto
de quem tem sede só de água.


CRiga.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Panquecas


Meu bem, vamos fazer panquecas
que no mundo não há
nada mais adequado agora.

Pra uns a hora é de morte,
outros, comer num bom restaurante.
Mais outros, de armar a arma covarde
e indiferente matar de fome
ou diferente da bala doce.

Meu bem, vamos fazer simples panquecas
daquela marca muito velha:
“Faça amor não faça guerra”.


CRiga.

Melhor a ignorância santa


Melhor a ignorância santa
que canta
aos redores das tragédias,
que mente por ingenuidade,
que sente medo de perder.

Que não pensa em futuro,
que comete a bondade
na veia do desengano
sem saber desenganar.

Se for para o mundo me sugar,
e eu renascer ignorante carpinteiro,
haverá um sol,
uma varanda,
uma canção pra assobiar.


CRiga.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Doxepina


Corredor sem fim
rostos embaçados
vozes abafadas
câmera lenta
areia movediça
calafrio, frio
letras dançam
lábios moles
vida torta
vida acaba
de renascer tão morta...


CRiga.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Carta clichê


Oi,

Não sei isso me faz mal ou se me faz bem, este entorpecente chamado memória do coração. Mas ultimamente até os sonhos têm sido mais legais comigo – não têm trazido você pra me deixar boiando cinza durante o dia. 

Escrevo pra você agora pra te contar como estou indo. Eu vou bem. Sério, vou muito bem. O que esperar de alguém que tem um lugar pra voltar, contas pra pagar? Meu tempo todo está tomado, ainda bem, lembra da história velha de nossas tias sobre a oficina do diabo? 

Tem dias que boto preto no branco, mas na forma de um quarto escuro em que só eu sei onde as coisas estão, as coisas que sinto por você, bem guardadinhas, em cantinhos, protegidas. Essas coisinhas repetidas que não vou repetir agora, prometo. É que faço questão sempre de repeti-las, ressaltá-las, grifá-las, sangrá-las. Exorcizá-las. São espíritos que sorriem rangendo dentes, provocando, cheiro de jasmim e de asfalto molhado – um chamado pra acordar, reviver. Sofrer, escrever.

Então escrevo. Você, sei que entende, sempre vai. Desde aqueles dias que a gente não se reconhecia por “proteção divina”. Ou porque tinha medo. Eu tinha medo.

Já ouvi gente dizendo que chega a esquecer de rostos de pessoas queridas. Eu nunca consegui esquecer o teu. Mas é verdade, eu vou bem. É que a gente se apega em verdades que criamos pra sobreviver. Eu já elegi a minha: não esqueci teu rosto porque ele não faz só parte deste-palco-chamado-cotidiano – tão clichê como multidão. Ele, teu rosto tão lindo que não esqueço, vem do que pessoas chamam de “Plano-Maior”. Eu não me apego a religião, e este palco destrói a oficina do diabo – só por isso sobrevivo. Mas vivo porque adotei essa verdadezinha putinha de esquina – um-dia-em-outro-plano-a-gente-vai-se-encontrar.

Lá de cima, antes, já tinha pulado parágrafos pra cá, e anotei aqui: “Falar das saudades, que eu preferia aquele acordar de manhã bem cedo com nó de garganta clichezado e vazio de poeta trouxa”. E é isso. Prefiro que os sonhos não sejam camaradas, tragam você me olhando lá no fundo, mãos dadas, a gente junto como deveria ser isso não fosse assim. Prefiro as lágrimas que escorrem junto ao asfalto molhado das seis da manhã, inverno, luzes amarelas dos postes que insistem iluminar as ruas sem ninguém. E o que me dá coragem em dias como esses é saber que no pulso da memória do coração, ou no pulso de cada dedo rápido no teclado, é pra você, por você, que exercito o que de mais sagrado e querido eu tenho pra mim: escrever. Escrever-te.

Eu vou indo, mas apareço por aqui nas linhas de vez em quando pra te ver. Houve um tempo que a gente sabia partir. Eu não sei mais. Então vou indo assim, ouvindo um som no fone de ouvido, um sonzinho que serve pra todo mundo, tipo previsão de horóscopo, e agora serviu pra mim: “quando me vi, e tendo de viver comigo apenas e com o mundo, você me veio como um sonho bom, e me assustei, não sou perfeito, eu não esqueço, a riqueza que nós temos ninguém consegue perceber, e de pensar nisso tudo, eu homem feito tive medo” *.

Mas vou conseguir dormir, quem sabe sonhar.

Tchau.

* “Teatro dos Vampiros” – Legião Urbana (“V”, 1991)

CRiga.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Fácil ópio


É preciso purificar o sangue
nem que seja a base
das banalidades que odeio.

O banal tem medo de mim,
não se aproxima,
me olha de lado, de longe.

Ele não se intoxica
das verdades que lhe convêm,
e eu tenho medo de morrer
envenenado pelas minhas próprias.

Assim é preciso cortejar a massa
de um olho só, encarar,
sorrir à facilidade
fingir felicidade.

No final não há verdade,
e tudo vale, até encruar-se
ou bancar o idiota.

O que resta apenas é um aceno,
um sorriso amarelo,
o efeito da droga da falta de compromisso,
que todo dia alimenta
e aliena.

CRiga.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

A pele que ferve


Estou louco. Sou. Só agora sei. Suspeitava. Suscitam vulcões na pele. O sangue não é de todo ruim, mas não para de sangrar. Sintomático. Sinto muito, automático provoco feridas. Em mim e em quem amo. Os pés no chão me esfolam o corpo todo. Eu desaprendi a voar fugindo da dor. A fumaça ajuda a brisa, o vento traz a chuva e o doce cheiro do asfalto. De longe, o suspiro ofegante me devolve a mim.

Um rapaz se matou enforcado, na casa ao lado. A vida que é muito louca – a mãe acarinhou seu rosto perguntando-se por que, e o pai quis forrar a garagem pro morto não sentir o chão gelado. Ninguém sabe por que a corda nem sempre arrebenta do lado mais fraco...

Faço um trato – os domingos não serão mais loucos. Apenas eu, à beira dos barbitúricos que mataram Elis. Eles não vão saber por que – nem eu sei por que minhas unhas cavocam sôfregas procurando segredos nus na pele branca, agora em chamas. E me chamam a atenção. 

Eu me chamo louco. Uma pessoa então comum.

CRiga.


Corrido


Muito provavelmente, a maioria das conclusões que se tirou desta pouca história está adormecida sobre a cama que ainda deve abrigar corpos perdidos pedindo socorro, mas nós queremos parecer fortes, donos dos caminhos e das verdades inventadas, inacabadas. Há como se tirar conclusões, meu amor? Há como dizer que o caminho é este, que nãomais novidade? Que é bom pararmos no acostamento esperando a morte chegar? Ninguém nos disse isso, fomos nós que nos sugestionamos, somos seres fáceis, queremos dominar o mundo e as palavras, e nem mesmo a nós mesmos conseguimos dominar. Calma, ainda há caminho corrido nos corredores deste que chamamos lar.


CRiga.