Oi,
Não sei isso me faz mal ou se me faz bem, este entorpecente chamado
memória do coração. Mas ultimamente até os sonhos têm sido mais legais comigo –
não têm trazido você pra me deixar boiando cinza durante o dia.
Escrevo pra você agora pra te contar como estou indo. Eu vou bem.
Sério, vou muito bem. O que esperar de alguém que tem um lugar pra voltar,
contas pra pagar? Meu tempo todo está tomado, ainda bem, lembra da história
velha de nossas tias sobre a oficina do diabo?
Tem dias que boto preto no branco, mas na forma de um quarto escuro em
que só eu sei onde as coisas estão, as coisas que sinto por você, bem
guardadinhas, em cantinhos, protegidas. Essas coisinhas repetidas que não vou
repetir agora, prometo. É que faço questão sempre de repeti-las, ressaltá-las,
grifá-las, sangrá-las. Exorcizá-las. São espíritos que sorriem rangendo dentes,
provocando, cheiro de jasmim e de asfalto molhado – um chamado pra acordar,
reviver. Sofrer, escrever.
Então escrevo. Você, sei que entende, sempre vai. Desde aqueles dias
que a gente não se reconhecia por “proteção divina”. Ou porque tinha medo. Eu
tinha medo.
Já ouvi gente dizendo que chega a esquecer de rostos de pessoas
queridas. Eu nunca consegui esquecer o teu. Mas é verdade, eu vou bem. É que a
gente se apega em verdades que criamos pra sobreviver. Eu já elegi a minha: não
esqueci teu rosto porque ele não faz só parte deste-palco-chamado-cotidiano –
tão clichê como multidão. Ele, teu rosto tão lindo que não esqueço, vem do que
pessoas chamam de “Plano-Maior”. Eu não me apego a religião, e este palco
destrói a oficina do diabo – só por isso sobrevivo. Mas vivo porque adotei essa
verdadezinha putinha de esquina –
um-dia-em-outro-plano-a-gente-vai-se-encontrar.
Lá de cima, antes, já tinha pulado parágrafos pra cá, e anotei aqui:
“Falar das saudades, que eu preferia aquele acordar de manhã bem cedo com nó de
garganta clichezado e vazio de poeta trouxa”. E é isso. Prefiro que os sonhos
não sejam camaradas, tragam você me olhando lá no fundo, mãos dadas, a gente
junto como deveria ser isso não fosse assim. Prefiro as lágrimas que escorrem
junto ao asfalto molhado das seis da manhã, inverno, luzes amarelas dos postes
que insistem iluminar as ruas sem ninguém. E o que me dá coragem em dias como
esses é saber que no pulso da memória do coração, ou no pulso de cada dedo
rápido no teclado, é pra você, por você, que exercito o que de mais sagrado e
querido eu tenho pra mim: escrever. Escrever-te.
Eu vou indo, mas apareço por aqui nas linhas de vez em quando pra te
ver. Houve um tempo que a gente sabia partir. Eu não sei mais. Então vou indo
assim, ouvindo um som no fone de ouvido, um sonzinho que serve pra todo mundo,
tipo previsão de horóscopo, e agora serviu pra mim: “quando me vi, e tendo de
viver comigo apenas e com o mundo, você me veio como um sonho bom, e me
assustei, não sou perfeito, eu não esqueço, a riqueza que nós temos ninguém
consegue perceber, e de pensar nisso tudo, eu homem feito tive medo” *.
Mas vou conseguir dormir, quem sabe sonhar.
Tchau.
* “Teatro dos Vampiros” – Legião
Urbana (“V”, 1991)
CRiga.
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