quarta-feira, 23 de novembro de 2016

(auto) Terapia


Amanheceu com um grito abafado, tinha algo a dizer. A manhã chuvosa ajudaria, e mais uma vez havia o som dos pneus contra o asfalto da cidade. Não era saudade pueril, nem paixão trazida de um sonho qualquer. E não era nem tão libertário. Talvez literário – se tivesse tempo escreveria um capítulo daquele romance cuja ideia perambula pela cabeça há tempos.

Queria mesmo era enganar o dia que insistia ser comum. Havia no ar uma doce melancoliazinha, e uma certa apreensão com o futuro – que, aliás, procurava nem dar tanta bola pra não cair na vala comum das pessoas comuns que têm medo de futuros comuns.

O duro era ouvir o que queria de fato dizer. A atmosfera lhe daria o eco; o ódio o necessário e ácido tempero; e o amor a forma ideal da metáfora tradução. Nada acontecia, porém, nada desamortecia a alma. Lembrou de uma história curiosa: passou um cachorro preto pelo estúdio, e o rock zeppeliniano hoje sem clima foi denominado “Black Dog” – talvez falte algo passar e lembrar os sentidos sobre como e o que escrever. Estava mais para “The Rain Song”, mas essa já havia sido tema, várias vezes. Música nenhuma. Só o doce barulho do asfalto molhado pela chuva.

Aliás, por que sempre o barulho da chuva contra o asfalto? Começava achar de fato que precisava mesmo julgar-se louco que precisa de ajuda – mas é seu próprio terapeuta, fazendo as vezes ora no divã, ora na poltrona.

Mata o pouco trabalho sério e tenta vencer o silêncio. Está mais inspirado. As palavras lhe saem tão fáceis. Falta apenas ouvir. Falta apenas se reconhecer pessoa comum à mercê.

A manhã desaparecia aos poucos com o gosto do café. O silêncio chegava a ser pornográfico. Quais eram os pensamentos dos vagabundos pelo ar, quais suas preocupações? Eu posso ser também um deles. Movo a roda quase emperrada de uma repartição, mas tenho tempo pra escrever.

Enfim, decide de vez tapar sua boca agora sonolenta, naquela bela quarta-feira em câmera lenta, chuvosa, primaveril. Risadas dos vagabundos à espera da torcida pelo Big Brother que vem por aí, depois dos tristes ares de novembro. E uma incerteza persistente sobre o 1º de janeiro.

O que tiver de ser, que seja a base da força humana para continuar, não da humilhação; da falta do ópio, que haja então apenas o arroz e o feijão sobre a mesa dos que acordaram cedo sem as mesmas regalias. Será hora de recomeçar, ele esqueceu-se como é. Mas vai aprender. Vai ser pessoa comum, talvez meio calejado e sem tantas doces pequenices pra contar. Mas vai ser poeta decente, com um trocado pra cerveja e a certeza de um dia melhor.

Não grite hoje, então: guarda teu espírito pra velha noite de luar. E diga aos filhos que tudo é melhor assim – a macia voz da certeza aconselhando livros e canções, e o beijo nos lábios sorridentes de um amor que sempre fala mais alto que ele. Ninguém vai embora. A hora de recomeçar pode ser dura, mas a gente se reencontra. A gente se encontra quando dá voz à alma, seja ela regada pela chuva, seja ela necessariamente dura feito pedra – preciosa!

Ademais, o sol já vem saindo, e a chuva indo embora. E o futuro é agora, a hora que a gente decidir.  

CRiga.



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