quinta-feira, 30 de junho de 2016

Eu sou um velho palhaço


Muitas já foram as histórias de palhaços apaixonados. Aqueles que já sem a maquiagem vão à porta do circo esperar a amada, que passa lotada dizendo “que palhaço idiota”. E assim nasceu a lágrima desenhada junto à tinta colorida de um rosto que preferirá sempre esconder a dor.

Eu não espero que você me ame. Pra ser sincero, nem que você ria. Tentei ser mágico só pra poder usar smoking preto, mas o coelho da cartola mordeu meu dedo e riram de mim do mesmo jeito. Tentei acrobacias no ar, caí na rede e depois, de ricochete, no chão de pó de serra. Até o leão nem se moveu quando fui eu o domador.

A dor do palhaço ninguém vê – afinal, a ideia é ver só alegria mesmo. Pobre palhaço, não pode nem se apaixonar! Fora do circo anda de bar em bar, ainda colorido, descolando um trago aqui outro ali, até cair embriagado na sarjeta e crianças chutarem seu traseiro de manhã. Hora de ser sombra.

Minhas rugas não somem mais com a maquiagem. Agora nem minha dor. Meu número no picadeiro mudou – uma tragicomédia que ninguém entende. Ninguém mais ri. Enfadonho espetáculo, eu me equilibro nos minutos e meu olhar vago denuncia a falta de saco de fazer criança rir.

É quando vê o milésimo amor da sua vida lhe sorrindo. Pula, sacoleja, cambalhota, grita. As risadas reaparecem. Ele é o palhaço do cartaz novamente! Vem a sirene, o balde de água na cara, deveria acordar do devaneio incontrolável, mas algo de arte ainda o move. Ou seria amor?

Eu te amo, você não vê nestes olhos? Não, volte pra trás, ainda tenho truques pra te conquistar. Quem é esse rapaz loirinho do seu lado? Porque você tá de mãozinha agarrada com ele? E esse beijo, não era pra ser meu? Volte, mata essa bicha louca do caralho e vem que a gente foge com o alazão do circo!... Sua puta!...

Muitas já foram as histórias de palhaços apaixonados. Poucas aquelas que deram certo. De volta ao camarim de terceira grandeza, dois por dois, um balde d’água e um espelho trincado, já nem mais chora as desilusões de cada noite. O dono do circo lhe dá a mixaria da quinzena e mais uma bronca: “um espetáculo mais esquisito que o outro. Se endireita, seu palhaço velho!”

Eu sou um velho palhaço.

CRiga.


Vila Leopoldina


Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love”... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Ele demorou... um namorado viria vê-la amanhã, ele gostava de Beto Guedes e Belchior. Ele não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.


quarta-feira, 29 de junho de 2016

Dó, Si

Eu não tive o brinquedo que pedi,
mas vi meu Noel sem jeito
quando contava migalhas do bolso.
Ele era muito bravo,
um adulto de dar dó.

Eu comi o x-salada que queria,
ela sacou da condução a ficha no caixa.
No balcão da lanchonete
a coca-cola foi pela metade
oferecida por um adulto com dó.

Eu vi meu vô pelado na sala.
Ele assoviava, nu com sua dor.
Criança, eu não sabia
o que era sentir dó.

Dó de mim
minha vó prometeu me defender,
bola de meia em cheio, vidraça quebrada,
quando mamãe chegasse cansada.

Dó, ré, mi
faz favor de cantar pra mim
um sol lá no meu futuro?
Pode ser de si, o melhor?

CRiga.


terça-feira, 28 de junho de 2016

Poesia de computador (parte 2)


Saiu com pressa
adulto em busca de assunto
na papelaria do beco do Centro da cidade.

A mocinha crente bonitinha
já nem trabalhava mais lá.
Voltou clandestino escondendo na blusa
um novo caderno azul
brochura mais bonita
que na juventude de bar em bar.

Queria mesmo desatar novamente
aquela poderosa cachoeira poética –
água explodindo nas rochas do espírito,
cada cristal espocando no ar
marcando linhas, um poema por minuto.

Verdade
é que nenhum novo caderno azul
lhe daria de volta a vida pulsante –  
a vida já escrita
não dá segunda parte de romance.

Os petardos viraram mono letras estéreis,
a força das águas, um banho quente vulgar –
apenas dormir sem mais sonhar
com a moreninha da quinta série.

Agora apenas a sombra de um pai ausente,
é ela quem maltrata os filhos do filho;
agora apenas o sorriso de uma mãe sem sal,
descobriu-se açúcar tardio no café já frio.

Criança precisa de carinho e de caderno novo
pra rabiscar e colorir faz-de-contas.
Precisa do brinquedo escrito na carta
do papai que não o Noel,
precisa de véu de cachoeira no verão
e de bolinhas de sabão.

Eu não preciso é dos bits desbaratinando
estas tardes agora perdidas,
procurando sentido no canto das palavras.

Não preciso deste homem feito
desenterrando memórias de computador.

CRiga.


segunda-feira, 27 de junho de 2016

Qualquer coisa que se sinta

Veio procurando verdades
saia xadrez e meia preta,
eu, inventando afazeres e teorias,
só te via, só havia você.

Tua verdade corre corriqueira nos olhos,
um segundo
e uma vida inteira.
Minha verdade é papel de papelaria.
letras enlatadas pro jornal do dia.

Verdade daqui mal importa, babe,
será história descartável
pras pessoas sem histórias.

Corriqueira nos olhos, que seja,
a verdade é do tempo imemorial –
eu beijando tua orelha piercing
e tatuando um sonho
de vida inteira pela frente.

CRiga.


quinta-feira, 23 de junho de 2016

Procissão

(republicado ao amanhã, dia 24, de São João) 


Destrua os olhos roxos
querendo esconder pecado,
o mais pecado dos pecados
ousar não ter pecado.

O suor do santinho a caminho
daquela fontezinha artificial
não purifica o asfalto caro
amanhã forrado de santinhos
de campanha eleitoral.

Os fogos do céu são bonitos
tão bonitos quanto o fogo
debaixo das saias das meninas.

Não creio em fonte, creio no fogo
que não mente nos olhos roxos
que não sente por pecar
e que vive santo, sem machucar.

O pecado mora aqui mesmo
não precisa procurar ao lado...

CRiga.

(Barueri, dia 24 de junho de algum ano)




Ilhado

Garoa
agora
brinco
com teu nome
soletro
a água escorre
a boca seca
já grita teu nome.

Chove
a água corre
eu parado
molhado mais na alma
que no corpo cansado,
você não vem
tudo bem!

Vem a tempestade
na verdade
eu tenho um guarda-chuva
mas nunca tive você.

CRiga.