terça-feira, 26 de outubro de 2021

O idioma do desejo

 


Não adianta chorar
sobre a bebida derramada
na noite dos cantores.

Bebida doce,
e a menina enrolava a língua
num púbere castelhano
e num inglês de pop sueco
moreno latino americano.

Nem teve a chance
de enrolar a língua
também por doce embriaguez!

Não adianta se desculpar
pela espanhola derramada
entre os beijos, línguas
que não queriam tradução.

Queriam apenas a luta ardente,
entre as bocas, o desejo –
único idioma então corrente.

CRiga.



quarta-feira, 20 de outubro de 2021

A egotrip da vingança

 


Vou viver no limite íngreme
da minha alma que já não é tão pura.

E se você não vier de branco
feito anjo me salvar do devaneio,
vou ser mármore tão negra.

E se você não sorrir
e se você não me ouvir
e se você não me abraçar
e se você não existir...

E se você não vier?

Se você não vier
vou renascer das cinzas do que já sou.

Eu sou as cinzas que boiam no teu ar,
que aterrorizam teus olhos sem cor
numa trágica noite de inverno,
depois do vento insano sem direção
invadir a tua casa decorada
morango de prateleira.

Só que você, metódica,
limpa a tua casa com talento,
lava o rosto petrificado
com sabonete neutro, água morna
e vai dormir,
como se não existisse o dia
que você me deu um beijo.

Como se eu não existisse,
como se eu fosse pedra vulgar
ou mármore tão negra.

Como se eu fosse ressuscitar
sem limites
no teu seguro lar tão puro.

Como se eu fosse o retrato velho
sobre a triste escrivaninha de cedro
esquecida no sótão escuro.

Como se eu fosse vírus
esperando tua hemorragia
me libertar do desespero.

Como se eu fosse o fóssil
daquele tiranossauro rex
que um dia quis ser bonzinho.

Como se eu fosse fácil,
como se eu fosse frágil,
como se eu tossisse sangue
feito poeta do Romantismo.

Vou viver no fútil limite
desta alma que só queria
ter você de fato um dia.

E se você vier assistir a meu desespero,
vou sorrir sarcástico,
dar adeus com a cabeça,
virar as costas
e voar sobre o penhasco.

E só sobrará teu eco dissonante
entre as montanhas seculares
naquela trágica noite de inverno:

“eu amo você...cê...cê...”

E ficará esperando resposta
no limite íngreme do penhasco,
e ficará esperando eu voltar de branco
feito anjo,
pra te salvar da tentação
de vir comigo devanear.

E ouvirá só o som da lágrima
contra a rocha seca,
que não ressoa eco
nem alivia a dor.

E rezará por mim
e pedirá minha proteção,

e lembrará os dias
em que nunca fui anjo
e quando roubei um beijo teu.

E desejará com a alma
eu não estar te vigiando
e continuar não sendo anjo
só pra roubar outro beijo teu.

E você viverá no limite íngreme
da tua alma então tão negra,

perdida no vale das pedras
mármores tão puras,

perdida nas noites escuras
que eu fundei
enquanto amei você.

CRiga.


terça-feira, 19 de outubro de 2021

Não deixe aquela ideia de poesia morrer

 


Está ali, ao lado do sofá
que a gente já não curte mais.

Cerca, entrou no vaso vazio
preciso comprar uma flor.

Mata, correu pra trás da cama
não durmo nunca mais com você!

Está no quarto das crianças, brinca
elas vão correr atrás de você também.

Não deixa passar pela sala sem perceber
fiz meu cabelo só pra você.

Não joga fora assim
você pode me machucar.

Queima então
mas dois peguinhas só.

Desarma a ratoeira
não precisa mais depois de tanto tempo,

faz tanto tempo que te amo!

CRiga.


segunda-feira, 18 de outubro de 2021

As horas que encolhem

 


Eu poderia morrer daqui a pouco.
Escrever uma canção de amor.
Tomar uma xícara de chá.
Esperar. Não sei bem o quê.

Viveria na marra, amarrado.
Não te daria o céu, meu bem,
nem usaria adoçante em vez de açúcar
até a hora de esquentar o teu almoço.

Quando moço eu tinha uma luz,
cantava o que viesse sendo bom.
Bebia nas esquinas, amigos meus
esperando de novo a nova noite.

Eu poderia ter morrido ontem,
mas antes eu escrevera sobre o amor.
Deixei de beber leite para crescer,
as horas encolhem. São 45 do segundo tempo...

CRiga.


domingo, 17 de outubro de 2021

Alma do tempo

 


João pergunta a Maria:
“O que temos para comer?...”
Maria, seca no olhar, responde:
“nada, não, João...”

Eis que os olhares encontram
o brilho da colher polida.
Presente de casamento
de um amigo que morreu solteiro,
sem pai nem mãe,
sem ninguém pra dividir a dor.

E eis que fala Maria a João:
“Te amo, mesmo assim...”
E João, molhado o olhar, responde:
“Te amo também, pra sempre!...”

CRiga.


sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Blues do quase abandono

 


As cadeiras e bancos estão se acabando.
Ficam tão sozinhas e sozinhos
que tão bem acompanhados.

O fogão era vermelho vermelhão.
Trincou saudades tuas um braço na panela
outro na cintura senhora cozinheira.

Dá dó quando junta pó.
Quando o nó não desata mais
e as teias viram só algodão doce.

Aquele pé de fruta esperou a água.
Na pedra da fonte o escorpião estátua
denuncia sua espera quando o sol nos salvou.   

Mas a lebre tá sempre ali!
É o espírito da terra que te olha
sorri pululando boas histórias.

Vem pro mato,
que a morte espreita!

Vem logo, deita.
O pau velho que segura a cama
ainda declama um final feliz.

CRiga.



quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Treze de outubro

 


Não levarás tua eletrobanda.
Deixarás n’água furtada calado o pecado
que dominas dedilhando um rock and roll.

Não levarás o mergulho de ponta.
Deixarás de novo o musgo vigiar teus pés
enquanto dominas a arte de calcular emoções.

Não levarás a tinta pra pintar de azul.
Apenas interiorices pra salvar o orçamento
de colorir janelas com vistas ao infinito verde.

Não guardarás tudo.
As coisas ficarão em seu lugar.
O amor toma conta dos detalhes.

CRiga.



terça-feira, 12 de outubro de 2021

Massa de manobra

 


Um punhado de gente sem cultura.
Uma xícara de assunto polêmico.
666 colheres de malícia.
Uma pitada de maledicência.

Junte tudo e bata em alguém.
Deixe o fermento da fome fazer crescer
e leve ao fogo da intolerância.

Deixe assar reputações,
depois grelhe no fogo das vaidades
e cubra com uma boa verba de jornal.

CRiga.


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O circo pelo pão

 


Tem que gostar,
fingir gostar
ou forçar-se a gostar.

Como a fotografia não mente
todos sorriem e se abraçam pra lente,
num mundo perfeito de flashes
e notas sociais.

Nesse circo,
ao lado da querida autoridade paralisada,
os pobres desdentados também sorriem
seu momento de glória maior.

Na manhã seguinte
apreciam as notícias do dia –

uns com seus brioches
rindo e falando mal,

e outros com o pão de ontem
trocado por foto
na coluna do jornal.

Tudo parte
desse grande teatro social.

CRiga.


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

o pó do rodapé

 


Entre marias-fedidas
voam saudades de você!

Maldizemos do cheiro delas,
fedidas marias!

Enquanto na volta ao mofo preto,
o apartamento nos vicia
ao CO2 do dia a dia.


CRiga.



quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Approach

 


– Quer namorar, Fabi?
– Não, eu gosto do Agostinho.
– É... Agostinho, é?...
– Agostinho, eu gosto é dele. Não gosto de você.
– Não acho que seja uma boa escolha...
– O quê?
– O Agostinho.
– Como assim? Até parece que isso vai mudar alguma coisa.
– Então tá, Agostinho, Agostinho... Boa sorte.
– Obrigada, aproveita e se manca.
– Agostinho não é bom partido. Agostinho não...
– Larga mão! Para de ser invejoso!
– A palavra certa é ciumento.
– É inveja mesmo, dele. Se é ciúme, você tá perdido, não tenho nada a ver. Se manca!
– Olha, eu não vou insistir, mas Agostinho não serve.
– O quê?
– Não serve. Gosta de outra.
– Gosta de outra? O que você tá falando? Larga a mão de ser assim!
– Tá avisada. Agostinho não vai nunca querer namorar você.
– Ah...
– Ele gosta da Lídia.
– Que Lídia?
– A Lídia, lá do fundo. A Lídia, que se veste de preto.
– Magina, Lídia nada! Para de querer botar defeito!
– Defeito, eu? Lídia é bonitona, estilosa. Você...
– Eu o quê, fala!
– Você não é assim, é meio...
– Meio o quê, fala se tem coragem!
– ...sem graça, sabe. Não tem approach...
– Apoquê?
– Não tem approach. Agostinho gosta de garotas de approach.
– Garotas de approach...
– Ele também tem.
– Tem o quê?
– Approach. Mais que eu, inclusive.
– Onde compra?
– O quê?
– Approach...
– Ah, isso não se compra. Nem se consegue de uma hora pra outra.
– Então é só eu me vestir de preto também?
– Não funciona. É mais que roupa.
– Cor de cabelo?
– Mais.
– Jeito de andar? De falar?
– Mais, mais...
– Que droga, preciso de approach! Me ajuda?
– Em casa dá pra conseguir.
– Na sua casa?
– É. Lá tem approach. É chegar e ter.
– Vamos lá, vamos lá!
– Sairá de lá com muito approach.
– Vamos, vamos!
– Vamos... é.. sei não...
– Sei não o quê?
– Acho que vou chamar Lídia.
– Quê?
– Lídia, lá do fundo da sala.
– Mas ela não gosta do Agostinho?
– Quem gosta dele é você. Ela gosta de mim.
– De você?
– De mim. Acho que é o meu approach.
¬– Mas e você, não gosta de mim?
– Gosto mais dela. Ela tem approach.
– Ah, me deixa!

***

– Quer namorar, Lídia?
– Eu não gosto de você.
– Gosta de quem então?
– Não interessa. E você nunca adivinharia.
– E Agostinho?
– Que tem?
– Ele gosta de você.
– Coitado... Acho que não...
– Na verdade eu gosto da Fabi. Ela tem mais approach.
– Então por que me pediu em namoro, ô boboca?
– Pra fazer ciúme pra Fabi. Ela diz que você também tem um certo approach.
– Approach?...
– Approach.
– Ela disse isso?
– Disse sim…
– Disse isso de mim?
– Sim…
– Então eu topo.
– O quê?
– Namorar você.
– Mas você não gosta de mim.
– Não, eu gosto dela. Me ensina a ter approach?
– Dela, da Fabi?
– Da Fabi, da Fabi!...
– Mas Fabi gosta de Agostinho.
– E Agostinho gosta de você.
– Agostinho, como assim?
– A-gos-ti-nho. Gosta de você.
– Eu, como assim, Agostinho, como assim?
– É o seu approach. Você tem, me ensina!
– Eu? Eu não, não tenho não...
– Ah, váááá!...
– Eu não gosto de Agostinho.
– De Fabi é que não é...

***

– Quer namorar, Agostinho?
– Quem?
– Escolhe. Quem tem mais approach...

CRiga.


terça-feira, 5 de outubro de 2021

A boca

 


Quando cala, instaura a dúvida.
Se fala, é preciso cuidado –
inclusive para ouvir.

Pode declamar poemas
ou xingar o motorista.
Dizer que ama,
que tome cuidado na estrada.

Quando beija
no rosto é carinho.
Nela é paixão!
Às vezes só selinho
de carinho com paixão.

Engole sapos e outras bocas,
mamilos e mangas da estação.

Faz biquinho na selfie
e não sabe se portar
sozinha no metrô.

Quando se abre gargalhando é piada boa,
ou, no desenho animado, é o vilão –
hoje criança tem medo da bruxa má?

Quando sorri é tanta coisa...
Gentileza.
Leveza.
Amor.
Sedução.
Felicidade.
Lembrança boa.
Um “olá”.
Um “tchau”.
Mal difícil ser.
Geralmente é muito bom.

É maldita, é da noite.
Cochicha preces na igreja.
Grita um nome ao portão.
Serve pra ir a Roma
ou pra puta que pariu.

Sozinha sente a lágrima correr salgada
e engole o choro disfarçando a dor.

Às vezes nunca falou
e as mãos fazem a vez
e a voz.

Às vezes fala demais
inclusive com as mãos –
que digam nossos italianos!

Bate com ela é baixaria.
Dela pra fora pode até não ser sério,
mas às vezes magoa.

Pode dizer sobre tanta coisa boa...
por que então maldizer,
querer estragar os dias?

Dos buracos da cabeça
é o único sem par.
Mas quando pareia
incendeia!

Numa ceia dizem que traiu.
Em outros tempos tristes
entregou inimigos à fogueira.
Hoje engana fiéis
com fome de Verdade.

E canta!
Inclusive, paquera...
Morde e assopra.

Dilacera
por ódio
e por amor.

CRiga.