domingo, 31 de dezembro de 2017

31 de dezembro


Não considero a chuva, o barro, o carro quebrado. O “há um ano” ou este ano. Fiz o que pude, o suficiente pra não lamentar. Foi preciso vencer a ladeira, o político em pele de lobo. Construir um lugar legal, reconstruir reputações. Eu vi primeiro o caminho chuvoso pra continuar; depois a secura, e então a segurança que me dá o direito de negar. Há cidades onde estou, horizontes seguros até onde a vista quiser alcançar. Há anos eu me respiro no ar, eu sou o céu azul da estiagem. Bobagem é não sentir um pouco de medo. Volto cedo, não se preocupe, todos os verões são assim. Votos de feliz ano novo e calendários de mercearia. Dia primeiro não é recomeço - é trilhar o fim, a finalidade, a sempre vontade de acertar.

Não tem caminho errado se você apenas caminhar.


CRiga.


quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Por acaso brisa


Há sempre quem te apresente salvadoras luzes,
possíveis interruptores na parede de nuvem.
Quem te ofereça participação na prece,
se apresse, ele pode morrer sem tua postiça fé.
Há até quem te ache a fonte das bonanças,
do “tá tudo sempre certo, não se preocupe”.

Não.

Luzes de Natal não me orientam,
apenas enfeitam o garrafão psicodélico.
Tenho fé é na pedra que se move
sem precisar da fé que move montanhas.
Tá tudo sempre certo, bem perto
de você não estar me dando no saco.

Sim.

Posso não ter as receitas mágicas e mesmas
de todo final de ano que precisamos encarar.
Tenho apenas o passo, a vontade retesada,
o peso de nenhuma idade,
de nenhum compromisso.

Por isso me desculpe pela mesa nunca pronta,
por planejar apenas como não muito te decepcionar.

Eu sou apenas um ensaio de esperança,
um sopro do planejar da rota.
Anota meu recado se precisar:
eu não sou santo muito menos anjo,
mas não sou o mal gosto
da tua ceia que não deu certo.


CRiga.


sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Tapete de Deus


Todos os homens a chamavam de complicada. Ela não se julgava assim, e até queria entender porque os homens achavam isso dela. Será que uma mulher de mais de trinta, com um filho de seis anos de idade, do casamento de cinco anos que não deu certo, tinha alguma coisa a ver? Não que o filho fosse “revoltado, sei lá”, ou até não compreendesse que a mãe podia achar outra pessoa p’ra ser feliz, afinal, por muitas vezes xeretando atrás da porta a viu chorar de sofrimento, e uma criança sabe quando a mãe chora de sofrimento. Daquelas vezes que ela aparecia com “novos amigos” em casa, ela tinha um sorriso daqueles que há tempos não se via. Não era bom ver a mamãe sorrir? Até ficar com a Helena, a vizinha amiga da mamãe, valia a pena para ele. E para Helena também, que adorava o garoto.

Então por que todos os homens a chamavam de complicada? Não tinham sido tantos assim depois do casamento, três sérios, apenas. Gérson, o primeiro, cansou daquele “seu jeito frio”, “não liga, não dá notícia”. Depois, com o Luiz, tentou ser diferente. Ligava no celular pra dizer que sentia saudades, e até o sexo já rolava com mais naturalidade. Só que Luiz era “do mundo”, como disse na ocasião em que terminou o relacionamento, ele gostava de sair com amigos e amigas, ir a shows de rock, puxar um baseado, “não me leve a sério, ainda mais você, vivida, com um filho. Não vai dar certo, foi legal”. Ela já tinha provado tudo isso, e mesmo que não procurasse desesperadamente um namorado, queria um cara que fosse um pouquinho, “só um pouquinho”, caseiro. “É pedir muito, meu Deus?”.

Não, não era. Gabriel, o terceiro, era um cara divertido, gostava de ir a teatro, cinema, boas festas, e gostava de almoço aos domingos em casa. Era inteligente, micro-empresário – dono de uma sex shop – e sensualíssimo. Adorava o filho dela, brincava, conversava de tudo. “Perfeito”. Poderia ser só dela, se não descobrisse mais tarde que o cara era bissexual... “Não dá, não dá! Esquece!”

Começou a pensar que o problema estava com ela. Ligou pro ex-marido pra pedir conselho. “Porra, você me acha complicada também?” Não, não achava. “O que há de errado, por que então nosso amor acabou, você casou de novo, é feliz, e eu tô na merda?” O ex não soube responder, e também nem podia, já que a esposa atual já xingava do outro lado do sofá. “Preciso desligar”.

Aquela hora seu filho dormia, no tapete da sala, depois de assistir a uma fita de desenho animado. Dormia no tapete, estirado, feito um deus grego que esquecera de crescer. “Este, sim, é um homem de verdade! Dorme no tapete, enquanto a mãe nem na cama consegue dormir”. Deitou-se ao lado dele, abraçou-o com carinho, e recostou a cabeça no canto da almofada em que o garoto dormia. “Você não ia me levar p’ra casa da Helena, mamãe?” “Hoje não, meu amor, não vale a pena sair... Vamos dormir, e amanhã a gente vai ao cinema”.

Dormiram juntos, no tapete, naquela noite de verão. Muitas daquelas noites foi à caça de um homem, buscando aprender mais. Naquela noite resolveu dormir no tapete, com o pequeno grande homem, o único, que a compreendia. Dormiu como há tempos não dormia.


CRiga.


quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Dias eternos de amores modernos



Lídia olhava a caixinha de música quebrada. Deveria chorar, mas não chorava. A bailarina manca e a música desafinada já não afetavam mais.

Lídia não esqueceu o batom vermelho na bolsa, nem o preservativo comprado, em segredo, naquela farmácia de esquina. A inveja da solteirona do balcão podia denunciar. “Foda-se!”, palavra da moda.

Lídia deixou pra trás uma vida de menina. Perdeu vontade de chorar por brinquedo quebrado, perdeu a atenção nos bordões da mãe, perdeu a doce virgindade lenda das conversas de chá da tarde.

Enquanto destoava nos gemidos, misto de dor e de novo prazer, uma bailarina manca fazia as malas. Não havia príncipe nessa história de amores perfeitos, porque nem Lídia esperava telefonemas de dias seguintes.

Nem mesmo aquele soldadinho de chumbo, herói de outrora a declamar poemas ao pé da caixinha, havia mais – perdeu uma perna na guerra da puberdade, e aposentou-se beberrão numa cadeira de rodas pela cidade dos brinquedos fantasmas.

E o amor, descrito num velho livro de contos de fadas, agora apenas mascava chicletes despreocupado, parado na chuva com guarda-chuva furado, esperando um ônibus qualquer.


CRiga.


segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Descansar carregando pedras


Luzinhas de Natal pouco dizem, meu amor,
Papai Noel é apenas um lenhador operário
e minhas florestas não dormem mais
não são os verdes da prometida paz.

É o que faço: marreto certeiro com a machada,
corto com calma, carinho e distraído
as esperanças que não são minhas.

Depois planto planta de verdade
porque ninguém mesmo vive
só de vender lenha pra queimar.


CRiga.


sábado, 16 de dezembro de 2017

Árvore de Natal


Eu pegaria o brilho que tilinta
no canto da tua pupila castanha
pra guardar à eternidade,
quando as luzes do Natal nos lembram
que temos olhos para admirar o que ainda é belo
e simplesmente bom.

Isso não é poesia.
É apenas a tão doce constatação
que estou ao lado de quem quero
e quem amo.

Para Clau

CRiga.





quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Traição


A paz não é algo tão perfeito assim.
Você a pega com carinho às mãos
feito pomba branca
mensagem da nova era.

E no dia de sol perfeito
solta na mais bela esperança
de um grande feito histórico,
um poema de livro escolar.

E ela voa, meu camarada...
E ela vai altiva, símbolo cafona.
E de repente ela olha pra baixo,
sorri de canto e apenas suja
o terno do teu domingo perfeito.


CRiga.


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

A cicatriz que diz


Mergulhe em si e crave as unhas
no touro que corre desenfreado
galopando a noite escura da tua alma.

Encare os olhos vermelhos
e cometa o ato necessário:
faça sangrar, mas não o mate
nem queira tornar-se amigo.

Arranque das entranhas do feroz
a energia pra gritar nos versos
todas as suas verdades – 
as mais maldosas também.

Serás finalmente poeta
dono das tuas letras
ferida aberta
futura bela cicatriz.


CRiga.


terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Crianças em férias


Quase alta noite vendendo letras
liquidação das chatas redes sociais,
um vento torto leva areia aos olhos –
e você nem direito a chorar mais tem.

Coça as feridas da preocupação,
nega, produto da louca rotina,
a tão linda retina do cinema diversão.

O pior é ter consciência e lamentar,
incluir a inocência em seus problemas
e roubar dela o sorriso necessário pra continuar.


CRiga.


segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Eu não estou aqui


Quero escrever cartas aos meus amigos. Não tenho medo de solidão. Armadilhas já desarmei, ensinei com o calo que às vezes é melhor se calar. Eu teria muito a fazer. A dizer. Quero escrever tantas cartas, meus amigos são espectros de luz que passam, raiam feitos sol, e acompanham o satélite cruzando a noite entre constelações docemente inventadas. Uma invenção sempre assim tão doce, uma cidade que tem forma de peixe, lá da estação dá pra ver o olho ginasial dessa menina linda. Não ter nada contra ninguém. Afundar meus mais nobres sentimentos na raiz da terra, abrigar ninhos de canarinhos que sempre terão medo, mas sabem que a casa é sua. Por que será que toda segunda-feira de sol é sempre assim?


CRiga.




quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Uma noite de cárcere



Quando a barra da cela da cadeia cravou-lhe feito pedra de bodoque o fundo do peito, a manhã foi a correria louca de volta ao lar, sem beijo de bom dia ou de desculpas à esposa. No quintal, como que o guarda que lhe abriu as grades lhe devolvendo a liberdade, correu descerrando as porteirinhas das gaiolas agora símbolos da opressão. “Você não sabe o que é estar preso!...”. Passarinhos coloriam a nova manhã.

Para o amigo Danilo


CRiga.

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

É sangue na veia, não é coca-cola


Há um muro
de olhos com pena
concreto de orelhas
desinformadas sobre mim.

Um muro cego, egos fracos
às minhas letras destino.
Um muro que insiste ouvir
lamentações que não existem.

Uma barreira transponível,
mas eu não quero me fazer visto,
nem quero me fazer ouvir.

Não quero, entenda!

Quero apenas me deixar passar
levando novidades que não são suas
pra nova-velha festa do sobreviver –  

aquela em que de fato precisem das minhas letras
bem escritas e bem faladas
num discurso de trabalhar.

CRiga.

(A vida na verdade corre, não caminha - devagar, vagar coisa nenhuma! Temia, pedia no íntimo, sem sibilar palavra: não me deixem assim para trás... Um bobo temente, tá com medo nem levanta da cama! Hoje, peço exatamente o diferente: me deixem, me esqueçam, quero apenas continuar! Veja "Sangue nos zóio")


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

“Amor, traz a toalha?...”


Marcos não viria vê-la aquela noite. Iria beber com os amigos, em plena quarta-feira. Ela ficou possessa da vida, “como, me deixar sozinha em casa numa noite chuvosa como essa? Filho da puta! Filho da puta!”. Estava cansada, brigou com o chefe, pegou ônibus lotado, quebrou, tomou chuva, só queria uma massagem. “Egoísta, os homens são todos egoístas! Nós, mulheres, que sofremos! Por que tem de ser assim?”

Desabou no sofá macio, pegou o controle remoto sobre a mesa de centro, e ligou a tevê. “Novela?... Que porre...” Mas resolveu encarar aquela trama idiota de novela das sete, afinal, há quanto tempo não assistia a uma novela inofensiva?

Dois minutos depois, xingava a personagem que acreditava na desculpa do galã, que, pouco antes, beijava a melhor amiga dela. “Será que Marcos me trairia com minha melhor amiga?” Lembrou que não tinha mais melhor amiga, pois, por cinco anos namorando o Marcos, abdicara-se de algumas amizades, tudo em nome do amor.

“Como é fácil para o homem se relacionar com outros... Tão simples...” Pensava consigo, para eles, os homens, não precisam nem de muito laço de amizade pra sair numa quarta-feira pra beber. Devem falar assuntos de trabalho – como fulano é chato, ciclano pega no meu pé, seu relatório foi do caralho, você vai ser promovido, como a secretária do chefe é gostosa e ainda deu bola pra mim. “Ah, Marcos, você que ouse!”

Como não queria ficar encasquetando minhocas na cabeça, resolveu prestar mais atenção na novela pra esquecer. “Precisava mostrar os dois na cama nas cenas do próximo capítulo? Justo hoje que estou sozinha?”.  Desligou a TV e foi tomar um banho quente.

Como Marcos dessa vez não estava ali, não esqueceu de levar a toalha. Sempre enquanto ela tomava banho depois de chegar do trabalho, Marcos ficava estirado na cama, conversando com ela, aos berros, de vez em quando, pois o barulho do chuveiro era forte. Ela sempre esquecia, mas de propósito, a toalha em cima da cama. “Amor, traz a toalha?” Este era o código para “Amor, vamos transar?” Quando os dois discutiam, e ela ia puta da vida para o banho, fazia questão de levar a toalha, como que quisesse já avisar: “Hoje, sem chance, seu canalha!” O pior é que ele também não estava nem aí. “Não vai falar nada, não, seu Marcos?” No final, era sempre ela quem tinha que procurá-lo. “Taurino é foda!”.

Secou-se rápido, afinal não queria ter que correr ao telefone, molhando todo o carpete do quarto. “Que besteira, Marcos nem deve ligar hoje...” Geralmente, depois do banho, botava só uma camiseta larga e longa, ficava à vontade, ia ao microondas com Marcos e preparava algo rápido para dois comerem juntos. Àquela noite estava sem fome, e botara, além da camiseta, uma bermuda. “Vou botar uma calça”, pois resolveu que também iria pela cidade, beber alguma coisa. “Com quem? Porra, não tenho ninguém pra chamar. Mas o Marcos tem, filho da puta!”

Ficou revoltada, de repente. “Canalha, sai pra beber com qualquer um, ou qualquer uma, e me deixa sozinha sozinha... O que você me fez comigo, Marcos?! Quem você pensa que é?”

Foi à estante e sacou uma garrafa de vinho tinto e seco, que Marcos trouxera do supermercado no domingo. Depois de ter travado uma batalha homérica com a rolha (“como Marcos consegue abrir garrafas de vinho com tanta facilidade?”), pegou uma taça (há quanto tempo não pegava apenas “uma” taça) e olhou o brilho do cristal. “Foda-se, vou beber no gargalo mesmo”.

Bebeu meia garrafa, sentada à beira da cama, ouvindo Janis Joplin (há quanto tempo não ouvia Janis Joplin, só porque Marcos “odiava”). Já meio embriagada, uma lágrima rolou pelo seu rosto (há quanto tempo não chorava sozinha?). “Marcos, está tudo acabado entre nós!”

O resto da garrafa de vinho resolveu beber sentada na calçada, em frente ao apartamento. Começou a chover novamente, e ela continuava sentada na calçada, bebendo no gargalo, chorando de vez em quando, e cantando a Janis Joplin, que ela adorava, e Marcos odiava: “You know that I need a man, but when I ask you to just tell me that may be you can...”*

Garrafa de vinho seco totalmente seca. Ela, totalmente embriagada, sozinha, seca, sentada na calçada. Junto com o vinho, o repertório também acabara, e tudo parecia ter cessado, menos a chuva, que caía incessantemente. “Marcos não me ama mais...”

Quando Marcos despontou na esquina, com seu Uno verde, modelo “sei lá, não me lembro”, ela chorou mais, soluçava, não sabia mais o que fazer. “O que você está fazendo aqui nessa chuva, meu amor?” Era meia-noite. “Você não me ama mais, você não me ama mais....”, ela dizia.

Ela mal conseguia falar, e Marcos a tomou nos braços – braços nos quais tantas vezes ela dormiu, braços fortes, abrigo, braços de homem, amigo, amante, braços do eternamente. “Vamos para dentro, está chovendo, o que está acontecendo?” Marcos nem teve a chance de deixar a garrafa vazia junto à lixeira, porque ela escorregara pela mão dela e fez-se mil cacos numa calçada da Vila Mariana. “Você não me ama mais...”, ela dizia.

Marcos não a desabou no sofá, mas a deixou como jóia demais preciosa só precisando de polimento. “Marcos, você não me ama mais?” Ele não entendia. “Vou fazer um café pra você, meu amor...”

No entanto, ela só queria saber. “Marcos, você não me ama mais?”. Ele respondeu: “É claro que amo, meu amor... Por isso estou aqui...” Ela chorava como nunca chorara em sua vida. “Marcos, Marcos...” Ele estava assustado. “Estou aqui, meu amor, espere só um pouquinho, vou pegar um café...”

As lágrimas dela, então, resolveram cessar. “Não quero café, meu amor... Só quero a toalha... Amor, traz a toalha?...”

* “Move Over”, Janis Joplin


CRiga.


sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O vale escuro


Aquele profundo puxar e soltar de ar.
Você não vê o abismo dentro dos olhos.
Uma cordinha te segura, pescoço a prêmio.
A pele vermelha diz mais que o âmago amargo.
Mal amado. Paga dívidas pesadas.
As asas imaginárias foram quebradas, amassadas.
Dentes trincados à boca aberta no asfalto
mal cuidado, cheira a mijo de mendigos.
Amigos são rimas que não rimam mais.
Aquele profundo não sei o quê
atalhos perdidos, um vagar vagabundo.
Um mundo inteiro pra se preocupar
e uma vontade imensa de dormir, sonhar.
Fugir.
Boiar.


CRiga.


quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Poesia sem adjetivos


Olha nos meus olhos, me descubra
me desnuda
mas não bata o martelo –
meu advogado se chama tempo.

Sem metáforas ou adjetivos –
apenas a verdade que sou.

CRiga.


terça-feira, 28 de novembro de 2017

Pra quem quer olhar


Os olhos não mentem. Isso é fato.
Sentem muito quando sofrem,
riem alto quando querem.

Eles olham no fundo da alma,
acalmam, eles também abraçam,
beijam e até te comem...

Os olhos se vestem de lápis e rímel,
óculos escuros e lentes mentirosas –
são perigosas as suas meninas.

Farol no caminho dos cegos,
tortos quando o amor os cega.

São pretos castanhos azuis verdes
amarelos e até vermelhos,
a morte na verdade tem olhos brancos.

São francos quando a alma os aperta,
os olhos enxergam até a bebida
escondida debaixo do casaco.
Os olhos não negam a facilidade
e nem a doce boba felicidade
quando olham com o coração.

Flecham. Fecham a avenida.
Moem. Destroem a rival.
Sambam no feriado de carnaval,
rezam fechados pedindo colírio
e perdão.

O padre tem olhos severos
destes que inventam o olhar de Deus.

O diabo tem olhares sinceros
destes que convertem até os ateus.


CRiga.


segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Amor de ficção


Entregou as flores de um amor perfeito,
ela preferia uma caixa de bombom.

Precisava falar sobre amor,
ela sobre o fim da novela das oito.

Entregou os pontos,
a voz já faltava.

Comeu o chocolate recheado
de ácido sulfúrico –
virou a vilã morta
no último e melhor capítulo.

CRiga.


sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Juventude morta


Enquanto aguardo teus seguintes passos nesta nossa conhecida multidão, vou me perdendo, imaginando, não tendo quem me dê a mão. De vez em quando cantando velhos temas inteligentes, vou tentando te seduzir – mas teus ouvidos se fazem pamonhas de Piracicaba, e tudo vira aquele trouxa discurso de mesa comunista que não comunga nunca com teu lindo cabelo falsamente ruivo.

Tento um texto de um livro de um clássico de um antigo, pra ver se as retinas brilham como num filme italiano cujo final não me lembro mais. E aí tão pura como a juventude esguia, você apenas desvia o olhar apreciando quem chega e quem sai, interessada nas novidades que não trago mais.

Tento resistente, no discreto desespero, a selvageria dos palavrões bem colocados num discurso, junto a um sarcástico sorriso que aprendi com falidos intelectuais. Mas teu smartphone fala mais alto vibrando, um Whatsapp de piada pronta, uma afronta à arte da conquista, uma farsa da modernidade, feito eu, feito nós.

O inalcançável é o agora, as noites de novo vão embora, e nada mais nos resta pra esperar – apenas um tchau, valeu, te envio o link da solidão dos modernos. E um certo nem me procure, véio, o céu tá lotado de estrelas, e daí?, por que a gente precisa se ver por aí?

CRiga.


quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Scape


Pede socorro a uma boa lembrança,
chora no escuro doenças modernas.

Roubaram a paz de espírito,
cotidiano chama pedindo emprestado
um molho de tomate pro jantar.

É que escrever significa a ela
não ter nada pra fazer.

Precisa oxigenar as engrenagens.
Deixar de molho os esforços,
deixar as dívidas pra pagar depois.

Precisa acreditar nas parcas imagens  
um vidro de carro embaçado,
um casal fazendo amor.

Reivindica cenas encharcadas 
o beijo do reencontro
na bela chuva de verão.

CRiga. 



quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Eu preciso te encontrar


Dá-me às vezes preguiça te procurar, falar contigo. De arrancar-te os segredos, fazer-te despertar desse hipnotismo regado à seiva ácida do cotidiano. Chacoalhar-te do sono irritante. Ferir-te com a faca cega.

Dá-me trabalho te procurar. Muito mais fácil quando gritas geralmente numa manhã chuvosa, ou quando inventas de fixar o olhar num encanto fora de seu alcance, melhor assim – sangras de uma vez as letras contidas nos cabelos, nas cores da pele, entre as pernas, no jeito de ser.

Dá-me prazer abrir-me contigo. Tuas respostas nem sempre convenientes me pregam na doce cruz de um sofrer quieto, nas linhas do diário. Tu és por vezes uma romancista, outras uma irrequieta observadora, outras amante. És perfeita em tua imperfeição de psique duvidosa, este monstro que perturba a verdade dos contos de fadas sejam eles do jeito que for – psicóticos, eróticos, sociais, banais.

Embriago-me só de abrir a rolha do teu nobre vinho, me toma o corpo a forte fragrância do vidrinho do teu perfume quando o cristal se estilhaça na minha busca pelo sentido de viver. Mas às vezes o cheiro vem do campo, outras do pescoço de uma mulher, várias outras do asfalto molhado pela chuva. O gosto? Ácido sulfúrico, o vinho francês que nunca tomei, a maçã do pecado que não acredito mais. Texturas de veludo, sempre.

Enlouqueces-me quando não me respondes – daí cometo o ato derradeiro de te amaldiçoar em todas as noites e dias simplesmente parados num quadro sempre igual, mas com cores variadas; falo mal de você nos cais, boto uma rima do dicionário pra convencer a história, e me acho o tal quando tenho a certeza que matei você de vez, não mereces minha devoção...

Mas és imortal! Deliro quando vens então semicadáver, arrastando vísceras e ainda carregando um caderno azul! Tomas a adaga da minha mão, e me cravas no peito correções escritas com meu sangue. Nosso sangue. E revives, me matas de pulsos pulsantes, quase um infarto de letras que saltam. És traiçoeira quando te acho, e tu me entortas feito Garrincha – seguir-te, então, assistir ao gol e vibrar com a arquibancada completamente vazia de nossa simples imaginação.

Pronto! Já não há mais palavras. Então sorris o sorriso da marotice, borboleta de primavera, cânticos de águas cristalinas na corredeira. Uma varanda de missão cumprida, duas cadeiras de balanço, crianças crescendo no quintal.

És finalmente alguém em que se pode confiar. Ou nunca confiar. És finalmente alma. Finalmente poesia.


CRiga.