domingo, 25 de março de 2018

Caixinha azul


Meu pai tinha uma caixinha.
Azul, azul era a caixinha.
Ele guardava na estantezinha velha marrom.
Atrás das portas tinham discos e CDs.
Tinha até uma garrafa de cachaça com cana dentro.
Lá no canto, enciminha sempre de alguma coisinha.
Uma caixinha azul.

CRiga.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Sem trabalho eu não sou nada



Infelizmente não podemos apenas sonhar
honestamente.

É preciso trabalhar, nos explorar,
a vida não nos dá o que merecemos.

É a soma: um mais um é igual
a um e meio de um amanhã talvez.

Então me deixe te dar o amor que tenho,
às vezes ele se confunde, dá um berro,
mas tem aquela mesma velha ternura
de quando via margaridas na calçada.

É o que temos e que pagamos mais caro
quando não trabalhamos pra sobreviver.

É preciso trabalhar o amor
investimento a prazo eterno.

CRiga.



quarta-feira, 21 de março de 2018

Rayban


Entre a pretensa e tola sofisticação das lentes,
prefiro a transparência azulada dos olhos
dizendo quem eu realmente sou num dia de sol.

CRiga.

terça-feira, 13 de março de 2018

Uma metáfora chamada Brasil


Eu ando assim como um Brasil,
e você sabe como anda o Brasil.
Parece um bêbado discursando pra ninguém na praça,
pendendo pelos lados, ele não cai
e não sai desse caminho torto.

Ele não se entrega morto
não gargalha a vida que vive.
Sobrevive fingindo ser protagonista
inventando verbos transitivos
escrevendo histórias paralelas.

Eu ando assim sempre me recuperando de tombos.
Há lutas contra coisas que achamos escravidão
que não são nossas, e sofrer é questão de escolha.
Porque se você tenta resgatar a vítima
ela diz preferir a casa do engenho
que a liberdade da pobreza.

Eu ando assim fazendo metáforas
porque luto pouco pelo Brasil.
Só louco mesmo pegar o pau da bandeira
pra com violência afiar a vaidade numa rede social.

Enquanto isso quem eu amo se escraviza.
Enquanto isso o amor avisa: “posso ser grande,
mas você me feriu”, e ele dorme um soninho magoado
querendo só ser acordado.

Eu sou como um Brasil que dorme um pesadelo.
Mas nunca fui vítima – comigo não funciona
jogar a culpa na história, deixe quieta a mãe gentil
e não balance a cadeira do coronel arrependido.

Eu ando assim precisando de alguém me dar amor.
É caro no supermercado? Posso parcelar no cartão?
Parece tudo questão de um preço
que a gente sempre terá que pagar.

O Brasil é grande demais, não cabe na metáfora.
Eu sou só a pena que boia escrevendo socorro
no céu cinzento, zangado,
que se chora molha o asfalto me dando carinho,
mas alaga a casa do meu vizinho.

O problema é nosso.
Quem vai largar o pau da bandeira
e apenas estender a mão?

CRiga.



quinta-feira, 8 de março de 2018

Gente tangente



Fatal: falta alma de multidão. 
Fatal pra quem?

Desconectado, julgador voraz mas calado.
Desinteressado pela massa,
não caça problemas, não compartilha também.

Feliz desconhecido, amigo do fone de ouvido.
Eremita de camisa social, hiberna na rede,
bate perna e não se importa
em por enquanto não chegar a lugar algum.

Nunca virou alvo, abomina compromissos
e eventos sociais.

Felicidade é relativa. 
Você não o verá na vitrine
nem nas selfies da vaidade.

Verdade pra ele é o que de fato faz diferença,
sem crença, lado B ou lado A.
Sua bandeira é apenas um olhar transparente 
e discreto.

Odeia convenções, cultos histéricos e acusadores.
Julgador que não condena, não fala, 
porque pra ele quem cala
também segue puro e intocado
em frente, independente.

Felicidade é relativa.

CRiga.



segunda-feira, 5 de março de 2018

Fotografando espíritos


A espera parece mais longa quando a chuva cai. Meus amores, minhas dores – no asfalto molhado todos perambulam com seus guarda-chuvas, cada um com sua cor em uma via sem volta.

A espera é fera que hiberna nas trevas da alma. Ruge uma dor que ecoa do fundo da caverna úmida e que cheira a mato molhado.

Quem espera sempre dança, uma valsa de solidão no silêncio da casa fria. Casa com o padre, reza com o bêbado caído na esquina.

Me espera, não vai agora. Eu tenho cartões postais em branco pra gente sonhar. Um vestido de festa e outro de casamento. Um baú vazio mofando no quarto, uma garrafa intocada de licor. Uma cama de solteiro, a gente joga o colchão no chão.

A chuva da espera molhou toda a minha casa, distraída deixei janela aberta pra alguém me invadir. Eu queria ter asas pra voar até alguém. A espera parece mais alta quando o céu se abre e o sol não traz mais novidades.

A espera se transforma, com as nuvens sombrias em torno da lua, na noite que cai da minha estante e se quebra mil caquinhos, um porta-retratos ainda com foto de revista. Um anjo azul de bibelô empoeirado, lembrança de um sobrinho que nasceu, cresceu e viajou ao estrangeiro.

A espera é acreditar em filho de virgem. Uma prece, me esquece, me marca num muro, prefiro ser Madalena. Me atira na vida. Mas não me espere chorar, no compasso do ponteiro do relógio parado vou te atraindo pra armadilha: serei a bruxa que vai te transformar no sapo, serás meu anfíbio de estimação, e você terá que esperar um beijo meu te libertar de novo. Só que meus lábios secarão com o ar cortante de outono. Estaremos presos um ao outro.

A espera é o brejo feio e fedido da floresta negra das fábulas que assustam as crianças. É a impossibilidade de contar belas histórias aos casacos pendurados na cadeira da sala de jantar. É a solidão dos deuses loucos. É o dedo em todas as feridas da trouxa autocompaixão. Rasgar a carne, sangrar líquidos sem cor, chorar lágrimas imaginárias e etílicas de guaraná. E dormir soluçando baixinho esperando o despertador tocar pra espera recomeçar com o dia sem as flores à porta. Café amargo, janela aberta, estou pronta – que venham as cartas em branco que ontem enviei pra mim...

CRiga.