sábado, 30 de novembro de 2019

Os olhos ingênuos


Leve a cinza que é leve.
Peça compreensão que é peça
de teatro.

A poesia que toca
não precisa de canção
nem de explicação.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Home office


Aqui ninguém entende da solidão.

Tempo para lavar a louça
é ácido sulfúrico na criatividade.

Dividir palavras
apenas com estranhos de rede social.

Eu olho a varanda
o sol sorri uma sexta-feira sem graça.
Não há o que conforte a alma
penada alma
que nem socorro sabe pedir.

Alerta ao telefone, nova tarefa.
Fácil fácil a tarde se esvai
num sorriso amarelo
de missão cumprida.

Sem elo que valha
com os dias que passaram
e os que ainda estão por vir...

CRiga.



O crime perfeito


Talvez eu não tivesse o direito
de enterrar assim o velho amor.
Talvez ele nem estivesse morto.
Talvez ainda respirasse moribundo
dentro do caixão.

Mas antes que eu pudesse me arrepender
no cemitério, no meio do caminho,
feito ressureição,
lá estava ele, o amor – 
imponente
inegável
jovem e belo.

O que fazer?
Correr, ignorar?
Eu não sei rezar...

Olhei no fundo de seus olhos claros
como quem se esforçasse
em reconhecer um rosto esquecido
depois de muito tempo.

E então
ressuscitei!

Eu não sabia, mas me enterrara também
naquela mesma tumba cujo epitáfio
trazia em letras garrafais:

“JAZ AQUI
O AMOR QUE É ETERNO”

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Colcha de retalhos


Não há em mim o encontro
qual cigarras numa noite de verão
qual folha e raiz na idosa estação.

Não tenho em que me agarrar.
Tudo escorrega de minhas mãos
ou me machuca mais.

O problema é que amo
e amar não faz muito sentido
apenas na primeira pessoa
do singular.

Nada faz sentido
quando um coração
está partido.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



quarta-feira, 27 de novembro de 2019

All Star vermelho


Dos poemas bonitinhos eu tiro sangue.
Caquinhos de porrada na boneca de porcelana.
O ácido vermelho aduba a terra seca.

As ervas daninhas enrolo e fumo.
Depois, a pele esfolada
denuncia a cama de agora.

Reviro entranhas
à procura de uma bela selvageria nova...

E simplesmente não consigo enterrar
aquele tonto all star vermelho
largado à beira do jardim.

CRiga.


A tristeza natural


Se a vida acabasse nesse instante
o céu ofegante
cansado de trovões gritar,
só poderia chovendo
apenas fazer chorar.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Desvirando besouros


Quando a vida tá assim pro ar
adianta pouco apenas querer
desvirá-la –
ela continua meio trôpega
e tomba logo, virada de novo,
esperando a luz da sala se apagar.

Melhor esperar a noite seguinte
a lua que muda de fase
e você que me sorri
mais uma vez.

CRiga.



Tortura


Daqui de cima vejo rostos de ponta-cabeça,
nervosas e amarelas gargalhadas.
Gritam gol de Pelé, gritam me exigindo respostas,
e feito criança só faço chorar,
sibilo, babo
e perco a inocência.

Dissonante, uma canção elétrica agarra meus ouvidos,
enquanto a manivela roda minha sorte num bizarro realejo
que não o da minha infância.
De repente é aquela corrente
salve a mim, não a seleção.

Antes era brincadeira de criança
a disputa n’água pra ver quem tinha mais fôlego.
Estou quase perdendo disputa e fôlego,
mas a mão que agarra meus cabelos
insiste em me salvar no jogo.

Resta de mim numa cela fria
apenas um farrapo, corpo marcado,
machucado, encharcado, queimado.
Mas este é o meu corpo, a exata soma
dos sentimentos que você quase conseguiu moer.

CRiga.






segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Um tombo na madrugada


Mergulhado
se esquece que a morte vem
trotando, avisando.
Uma voz rouca ao telefone.

Às vezes apeia o cavalo
deixa aproveitar o chá das cinco
com as rosquinhas de leite
que enganam o espírito.

Mas uma hora volta no pó da estrada
chega de madrugada, silencia os grilos.

Põe as cartas marcadas sobre a mesa
e não adianta protestar –
é sua assinatura ali grafada
as fotos então queimadas
num canto do velho quarto.

Caem ao chão o rosário,
a Nosso Senhora negra que dava medo
e o livro de Alan Kardec –
deixa quem fica defender quem vai,
leva quem nunca perdeu a fé.

Mergulhado nas gotas diárias do ácido,
se esquece que o seu corpo também padece.
Antes a morte leva alguém.
Depois, leva você também.

CRiga.



domingo, 24 de novembro de 2019

Vestimenta do dia


Lapido letras que valem o dia de cada leão morto.
Vejo espíritos refletidos no vidro da sacada.
A censura sobre as letras que não dão dinheiro.
Então me escondo, revejo prazos, e me flagro alma incompleta.
Dedicar-se, quanto tempo pra cada coisa?
Planos me fogem do controle feito areia solta ao vento.

Rápido, letras fogem para marcar o papel!
Leões rugem da cova que eu tapei com o rascunho.
Não havia o sobrenatural pra me assustar, inspirar.
O dia acaba, a noite vem com seu ar de ordinária.
Dedicar-se a que se a calma convém?
Panos de prato secam os pratos.
Roupas de escritório escondem o pranto.

Até a tecla off ainda foge de mim...

CRiga.



sábado, 23 de novembro de 2019

Lente de contato


Estes dias em que vejo espíritos
representam de fato
alguma certeza:

Um dia eu ainda escrevo
o livro desse nosso amor.

CRiga.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Sob o jazigo, a pena e o tinteiro


Nem sei pra quê nasci,
mas vou morrer escritor.

Nem sei qual é a dor,
mas vou morrer sob analgésicos versos
e antibióticas histórias.

Nem sei se dá tempo,
mas vou viver escritor.

Nem sei se sei escrever tão bem assim.
Mas vou morrer
acreditando que sim.

CRiga.



quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Rapadura


Para o sonho acontecer
você tem mesmo que encarar o sol.
Receita de bolo, escuta rapaz:
se desandar, a culpa é da mão.

Tem bolo pra entregar às 4 da manhã.
Não tem pão hoje, estou atrasado.
Ônibus lotado, tem gente que conversa
sobre algumas doces felicidades.

O atalho machuca o joelho.
Ouse na letra, que você convence!
É andando que a dor às vezes
sente vontade de sorrir.

Diga o bom dia da madrugada
com aquele sorriso de sol de meio-dia.
Dê um pó guaraná que seja
pra que ele atenda todos os seus fregueses.

É que depois daquele morro de florestas incertas,
há o vale aberto do teu sonho te sorrindo
e te dizendo

“vem que eu só venho se você for junto”.

CRiga.



Descobrir


Ela também gosta de mim!

Não vem desta vez...

Atrasou a menstruação.
Será menino!

As pessoas amadas também morrem.
Também crescem, criam asas.

Uma fotografia faz chorar.

Pior é machucar o coração, traição.

Eu também posso fazer.
Eu também posso esquecer.
Eu também posso me apaixonar.
De novo
pela mesma pessoa que já amo.

Novidades cobrem a trilha pela frente,
tente não ficar nervoso nem virar o rosto:
a descoberta tem sempre um gosto.

Sabor maior é aprender.

CRiga.



Eterna terra


Tanta gente erra o alvo
e eu, sem-terra, fui acertado.

Tanta gente é herói de guerra
e eu, sem-terra, virei aberração.

No meu bolso, semente da liberdade.
O meu solo foi estuprado
nele plantado um balaço disparado
por quem eu deveria confiar.

Agora tenho terra pra morar
plantado nela feito semente
somente pra brotar injustiça.

Condecorado ignorante da Terra
sem terra, sem teto,
sem moral e sem dinheiro.
Dizem alguns,
brasileiro.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Render-se


Um velho perde o filho.
Um filho perde a namorada.
Uma namorada perde o encanto.
Um encanto perde a pureza.
Uma pureza perde a esperança.
A esperança fica velha
e um velho morre junto ao filho.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



terça-feira, 19 de novembro de 2019

Amaresia


João de Nada nadava no mar
tentando juntar
os cacos de sua vida –
pedaços de uma fotografia
rasgada por insensatez.

João de Nada não amava mais
e resolveu abraçar o mar,
feito quem abraçava pela primeira vez
o primeiro amor de uma vida inteira.

João de Nada nadava no mar, lutava –
a vida parecia o horizonte perfeito
e então nadou, nadou e nadou...

João de Nada em sua última braçada,
a fotografia rasgada colada na pedra do cais,
não precisava procurar mais nada.

Porque a vida já não era nada
e João era todo o desencontro existente.

Quando o sol se pôs no horizonte
e João de Nada não era nada mais,
ele também já não nadava mais.

Foi uma última brisa que viera lhe soprar
que sua vida já era tempo
de acabar.

Soprou
que João de Nada
não sabia nadar.

Mas que João de Nada
sempre amou o mar.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)




segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Ponto de fuga


Eu procuro mais!

O que não traz a pessoa ao sorrir.
O que não mostra o corpo ao se despir.
Eu não quero gesto nem carnaval.
Não quero o que completa o plural.

Eu procuro olhos que falem.
Eu procuro vozes que vejam.
Eu procuro um cais na tempestade.
Eu procuro o caos na sanidade.

Vivo sempre a trancar portas pelo caminho.
Vivo sempre a procurar as chaves atiradas.
As aves não me acompanham na viagem
em suas dores de fuga no horizonte.

Na verdade eu também fujo.
Talvez eu seja um velho bruxo
correndo da Santa Inquisição.

Sempre há também aquele tórax nu
e os braços abertos, tão pertos.
Agora não é paz, é a tormenta.
É um morto que tenta
me levar também.

Daqueles olhos me privaram.
Desviaram seu sentido numa obra de arte
tão humana quanto à pluralidade.
Foi quando desaprendi as orações.

E eu procurava aqueles olhos...
Mas um dia eles se cansaram
de me dar as mais simples respostas.

Eu procuro na intolerável distância
o que é distante
e intocado.

Eu procuro a fragrância de um perfume
que perdi na intimidade do ar.
Eu procuro o arrependimento do voluntário
na fragata em alto mar.

Eu me procuro, é tão difícil...
No escuro
tudo parece tão igual.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



domingo, 17 de novembro de 2019

Jukebox


A paz existe
talvez acoplada
entre as pernas de uma virgem
talvez aplacada
no azul severo de um vestido
talvez embriagada
no verde dissonante de um olhar.

Talvez já muito próxima do fim
numa canção baixando preguiçosa
indo embora devagar no fade out
até a lúcida surdez corrosiva.

Até a incapacidade de renová-la
recriá-la mais bonita
em mais uma canção.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



sábado, 16 de novembro de 2019

Interiorurbano


Nesta terra
quem mais se ferra
colhe menos.

Do meu chão tapete de asfalto
brotam apenas enganos e desilusões
santos falsos e mitos confusos
parafusos soltos das inseguras engrenagens
aragens que britam o solo bruto.

Nesta terra
quem menos faz
ganha mais.

Esta terra
encerra qualquer sonho interiorano
planta metal nas criativas cabeças
e erosão nas almas apaixonadas.

Cheiro de terra
aqui
deslizamento na favela.


CRiga.
(Caderno Azul, 1997)



sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Conviver com os erros


A vida acordou atrasada
e procurou por você
que foi embora.

A vida
é simples agora.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Fronteira


O trem no subúrbio passa implacável
como um monstro de aço.
Estremece feito terremoto
as casinhas de papel.
Sacode os frágeis tapumes
em forma de abrigos
da favela fantasma.

Mas a arquitetura improvisada,
arte eternamente sem dinheiro,
não cai.
Imponente (do seu jeito) joga nas caras
a sofrida sobrevivência.

Porque a pobreza é assim:
enquanto não descarrila o trem
pra dentro da favela fantasma,

tudo é
cotidianamente
apenas transparente.

CRiga.
(Caderno Azul, 1997)


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Bienal


Palavras me roem o calcanhar,
eu caminho sílabas acertando o passo.

Comem pela beirada,
correm licor pelo canto da boca.
Corroem, ácido sulfúrico,
o recheio do bombom.

Palavras se movem se inovando
a cada segundo, eu respiro frases
filtrando a poluição.

Palavras morrem no fim do dia
no fio do cabelo
silabando
sibilando baixinho
obrigado
uma poesia.

CRiga.


terça-feira, 12 de novembro de 2019

Ladrões


Desde tempos que busco na memória
nossa história não é das melhores –

algozes nos matando nas trincheiras
freiras nos amaldiçoando pelos caminhos
ninhos de cobras nossa cama
lama nos campos nosso lar
mar de baleias e peixes mortos
tortos anjos bebendo cachaça
praça de guerra nossa derrota
nota fria e falsa identidade
cidade que nunca é nossa
fossa no balcão dos bares
ares de inverno polonês
inglês defeituoso na fronteira
cadeira elétrica e masmorra
que porra de mil vidas nós levamos!

Mesmo assim
insistes me acompanhar.

Porque me amas desse jeito
feito filme
desde tempos imemoriais.

CRiga.

Juventude indiferente


Vida inteira pela frente.
Passou aqui em frente
e não parou.

Tinha milhões de conselhos
de velho pra lhe dar.
Não saberia por onde começar.

Melhor guardar no ar
fingir que ela não existe.

Resiste.

À tarde será melhor.
Lembrará que é velho.
Na verdade sem muitas verdades.
A verdade desencanta.

Desiste.

Urubus urubuzam.
Não sabe admitir fraquezas.
Vá com Deus e o Diabo.
Amanhã refaz o discurso.
Amanhã se apaixona outra vez.

CRiga.