segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Samba ilustrado


O barulho daquele samba novo no rádio muito alto era como marretadas em seu espírito cansado, enquanto bundas pagodeavam no chão de cimento batido feito ritual prenunciando sua morte. Bebia sua cachaça no balcão do boteco de esquina da favela, sozinho, enquanto pensava se teria feito o correto ao cimentar a amante morta debaixo do tanque. Dariam falta dela, e uma certa neurose o avisava que iriam procurá-lo. Ele via, ou pensava ver, vários olhos o vigiando na vizinhança enquanto entrava na casa daquela negra linda que escolhera o par errado.

Conheceram-se no ponto de ônibus, de manhã. Conversavam muito no caminho ao trabalho – ele, pedreiro, branco de olhos azuis; ela, linda negra, recepcionista de um consultório de dentista. Um dia, um convite, “passa em casa na volta”. Como resistir à negra mais linda e gostosa do morro? Assim começou.

O caso é que um dia, meses depois, a nega enlouquecera. Queria que queria aqueles olhos azuis só pra ela, aquela pele polaca agarrada à dela, aquela pele de veludo quente e branca diferente dos negrinhos do morro. A nega queria que ele largasse a esposa, filhos e tudo mais, e assumisse logo aquele romance louco, ardente. E apesar da paixão vermelha, queria filhos também. Aquilo não era mais como no começo, apenas um caso, sexo, saídas, segredo – agora, depois de seis meses, tudo ficara sério demais pra ela.

E apesar de adúltero, ele era trabalhador honesto, não deixava faltar nada em casa e amava sua mulher mesmo na cama fria em que fizera algumas daquelas seis bocas a mais que comiam no barraco. Ele sabia que o chefão do tráfico no morro era o pai de pelo menos três de seus rebentos, e perdoou, o que fazer? Adotou as crianças como suas. Sua mulher um dia adúltera ganhou e ganhou presentes enquanto era aquela morena gostosa sem o corpo castigado de seis filhos. Mas o traficante cansou um dia, deu uma grana e tudo certo. O barraco tinha Cartoon pra criançada, tevê de plasma e computador de internet banda larga.

Um problema: a negra linda, a amante, era nada mais nada menos que propriedade justamente daquele mesmo traficante. Ou seja, ele estava condenado à morte por todos os lados, como escapar? Cedo ou tarde, polícia ou bandidagem descobriria a história daquele fim de tarde no barraco: ela exigindo ele só pra si, mais uma faca na mão ameaçando matá-lo e matar-se em seguida, quando ele preferiu abreviar as coisas: tomou a faca da mão no vacilo da nega, cortou o pescoço macio dela feito faca quente na manteiga, e cimentou o corpo na cozinha, embaixo do tanque adaptado do barraco. Um problema a menos pra se preocupar.

Depois, saiu vagando feito zumbi, cabeça pesada. Entrou no terreiro do samba agudo, o diabo gargalhava no canto do balcão. Bebia sua cachaça, mas não alcançava o arrependimento. Havia um certo medo, mais a preocupação de ser levado preso – ou ser morto, muito melhor. O receio maior era apenas de deixar a família sem sustento num mundo de incertezas e diabos gargalhando dos filhos e da mulher a cada esquina da favela. Pagou a conta, trombou com as bundas pagodeando no meio do boteco, e decidiu encarar o pesadelo.

Pelos becos rumo à sua casa, entregava ao acaso espremido entre barracos no meio caminho aquela sua vida mais ou menos, agora marcada por sangue e maldição. Já sem qualquer perspectiva de vida antes, agora a morte era apenas uma questão de tempo. Um cheiro de enxofre o seguia.

Foi quando viu a espera cair no beco mais sujo da favela: o chefão do tráfico e sua gangue vinham sentido contrário, apressados, de encontro, nervosos, anjos do apocalipse. Ele passou a desejar apenas uma morte sem os sofrimentos que os traficantes sujeitavam alguns inimigos, por vingança. O medo subiu pelas costas, o diabo voltou a gargalhar feroz, agora correndo em suas veias até sua cabeça panela de pressão. Mas ele não reagiu, apenas encarou o demônio. E aceitou.

O chefão meteu a mão no peito dele, com uma arma na outra mão:

– Tava na tua captura, alemão. Ouve bem...

A história foi a seguinte: o chefão estava fugindo do morro porque a polícia tinha recebido informação anônima, e ele desconfiava justamente da nega. Um dia antes ela queria se separar do traficante, confessando que tinha um amante e queria ficar com seu amor. Mas como ela sabia demais dos esquemas de crime no morro, o chefão não deu chance: foi lá, na surdina, e incendiou o barraco dela.

– Matei a nega, tava dormindo com certeza – confessou o traficante.

Meteu a mão no bolso e tirou um bolo de notas graúdas.

– Toma, isso é pra você. Se correr, tem mais lá no meu barraco, é tudo teu.

O traficante sabia que ele aceitara criar filhos que não eram seus, frutos de adultério. Dali desceu pra fora do morro, em fuga.

Dia seguinte o jornal daria a morte do principal traficante do Rio de Janeiro.

Fim de uma história. Recomeço de uma outra.

***

Numa manhã ainda madrugada, naquele bairro sem favelas, ele fazia a barba pra ir à labuta diária numa obra no centro do Rio. A esposa entrou, olhou pelo espelho ainda embaçado pelo vapor do banho. Os olhares se encontraram, as bocas sorriram uma cumplicidade etérea.

Na cozinha um café preto quentinho, pães e aquela margarina do comercial. O rádio baixinho tocava um sambinha antigo – “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima...” dando um ar de redenção junto à tinta branca ainda cheirando fresca. Dançaram agarrados, lentos, silenciosos. O sol nascia. Os filhos dando risadinha da sala, enquanto trocavam de roupa pra ir à escola. O sambinha cessou, veio o locutor dando bom dia.

Ele beijou a esposa, e beijou cada um dos seis filhos. Arrumou a marmita na mochila, abriu a porta, o sol invadiu a mesa junto do cantar de um pássaro qualquer. Atravessou o quintal de flores, abriu o portão de madeira que rangia uma vidinha tão bonita. Deus sorria na caixa de correios. Saiu pra trabalhar.

CRiga.



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