sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Você precisa decorar aquela velha canção


Há um céu azul de nuvens desintegradas, morrendinho, o sol tá indo pro Japão. É quando a gente torce pro sol ficar mais um pouquinho e dar mais uns acordes no imaginário violão.

Mas vai ficando escuro, aos poucos, e a noite faceira dá aquele sorrisinho de tou chegando… É quando pinta a dúvida se você nasceu pro dia ou pra noite…

Mas logo vem o veneno: aquele ar difuso, aroma cortante na brisa fresca, musical, que nunca vai te agredir, nunca vai deixar de sorrir feito figura de mãe te sorrindo na lua. É quando a rua começa a te chamar, colega, amiga, amante! E você vai, sem pressa, sem compromisso, criança tateando aprendendo a andar, cair, levantar de novo, sorrir, cantar, amar por um segundo, chorar, tomar o sorvete e a água da madrugada - e finalmente se acalmar.

Algo parecido com sono vem te perturbar. E você reluta, nunca a tarde dessa noite vai te derrubar! E você levanta, dança feito louco na avenida vazia, até queria ouvir alguém buzinar. Amigos cantam uma velha canção, você não sabe a letra inteira, mas acompanha no refrão.

É quando você vê aos poucos a cor do asfalto mudar. Mais claro, algumas poças denunciam uma luz que não a dos postes amigos de apoio. E como fazia tempo  você não olhava mais ao céu, resolve conferir se a ampulheta ainda corre na lua e nas estrelas - mas um azulzinho marinho insiste em desbotar a noite.

O sol começa a gargalhar na sua cara, soberano, vencedor. Pra você acabou, meu chapa, o português já tá assando a primeira levada de pão.

É quando você vira de lado, vê a motinha pipocando na esquina entregando os jornais com as notícias de ontem. Mas, como sempre nunca derrotado, você toma de volta do universo louco a ampulheta parada, sequestrada. E num gesto a la mais doce revolución, fincado último soldado da trincheira, vira de novo a areia correndo a vida tudo de volta:

Cadê o violão do novo luau? Cadê a letra daquela velha canção que você ainda precisa decorar?!

CRiga.



quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Tossindo sangue



Colecionava selos
de cartas não respondidas.

Na caixa do correio um ninho,
alimentava pássaros e ilusões.

Da janela,
as estrelas cadentes que contava
eram desejos que não valiam a pena.

Na calçada,
pra cada sorriso não devolvido
mais uma moeda na cartola do artista.

Em casa, em qualquer lado,
uma parede vazia.
Um Renoir havia debaixo da cama.

Doíam amores de ficção – 
o que era verdade
virava invenção.

Viveu encostando as costas
no mofo do porão.

Morreu tossindo sangue
romancista de plantão.

CRiga.



quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Tumulto



Meus olhos procuram você
e você me acusa
de não pagar o teu passado
com a moeda do assassinato
dos meus sonhos,

e meus olhos continuam
no tumulto
ainda procurando aquela você.

CRiga.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Não mais a gente no sofá



Polir os discos que ficarão pra você.
É bom lavar de vez quando.
O tempo junta pó nos sulcos
risca solos de guitarra  
apaga sorrisos de fotografia.

Ensinar a ligar a vitrola.
Não é legal colocar no automático.
A alma vive do preciso exercício  
até a faixa certa
até o ponto G.

CRiga.



A ditadura da desconstrução



A mesma velha receita do destruir –

discursos combinados
ataques arranjados
um vale-tudo que engole
o caolho que tem fome.

CRiga.

Escritório na varanda



A cabeça ferve letras, letrinhas.
A louça grita na pia, intrigas.
E eu insisto, aumento a fervura
da panela de pressão das ideias
enquanto corro o teclado
à procura de trincheiras.

CRiga.

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Chuva de agosto



Esta sexta-feira chove o mesmo pouco
de como a milésima vez quando morri.
Isso foi há milhares de anos...
A gente se conheceu mil vezes,
mil vezes lamentamos infortúnios,
desencontros.

Nunca superamos o calor da pele
que nos envolvia pelos eriços
num abraço de calar tempestades.
Os mistérios se engoliram em furacões
que desistiram de nos gritar.

Nunca dissemos palavra que selasse
no topo da escadaria
a paz que inventamos pra chegar até ali.

A igrejinha ruiu, ficamos no meio da romaria,
ainda a cruz se arrastava na terra batida.
Era aquela quermesse que não te beijei.

Nunca olhamos nossos olhos refletidos
a cada volta no pátio da velha escola.
Éramos então mais uma vez iniciantes
fingindo primeiras vezes de se apaixonar.   

Depois éramos humanos suburbanos
levados pelos ônibus lotados a qualquer lugar.
Quando pude, perdido atrás do volante,
a carona levava também um pai que ia embora.
Não era a hora de a gente se acertar.

Aquela rua não ruiu mas ficou vazia.
Eu perdi a milésima esperança
e fui embora.

Esta sexta-feira chora
a milenar chuva que alagou o planeta.
Foi a época quando eu perdi você por aí
sem nunca de fato a gente ter-se.

Dilúvio é bobagem, meu amor.
Pior é eu chorar pouco assim pra sempre
querendo te encontrar...

CRiga.


quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Ele não era um cara legal



Eu não vi as flores nascendo do asfalto
que é só onde sei procurar.

Na mesma galeria ninguém me disse nada
algo que eu pudesse guardar.

Eu não ouvi a música da moda
nem sou o idiota popular da roda.

Eu sou é o vidro que corta
em vez do falso brilhante.

CRiga.


sexta-feira, 17 de agosto de 2018

O missivista


Meu antigo amor,
minha amiga, meu sonho que passou.
Recheado e enfeitado
com tudo o que aprendi.

Nada aprendi!

Minha doce impressão
de amor abandonado na esquina.
Por que só quando a gente envelhece
sonhos resolvem nos corroer
e os olhos aceitam o perdão?

Não me reencontrei.

Eu perdi a ideia de quem és.
Perdi rumos, ouvi rumores.
Um cabelo feito pra reconquistar
e uma juventude toda pela frente,
recomeçar.

Minha cara, meu segundo rosto.
Te escrevo o sangue inútil
deste cansado coração sem mais letras.
Aguardo novas notícias tuas
num selo carimbado de ilusão.

Triste coleção.

CRiga.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Casulo


Há uma sensação que persigo,
abrigo, dever cumprido.

Há uma sensação que devo muito.
Perigo, eterno medo de desiludir.

Ninguém nunca me viu por dentro.
Daqui saem etílicas borboletas,
secos dragões sem fogo cujos sorrisos
são sinceros e preocupados.

Haverá memórias de fogueira.
Distantes, não farão revoluções.
Dúvida é se existirá um jardim amnésico
cujas rosas não peçam documento
pros beija-flores da madrugada.

Eu tenho idade, só não tenho tempo.
Quero beijar sem culpa, de barba,
voar sem horários de museu.

Não quero crianças fingindo interesse,
nem a cor forçada na exótica fotografia
calando as verdades das minhas rugas –
elas poderão com falsa propriedade
recitar poemas e apenas te enganar.

Nunca pisei o chão da maioria dos pés.
Nunca vivi o tempo das verdades eternizadas
enlatadas numa festa de jubileu.

Eu durmo num casulo eterno.
Inferno pra mim
é me tornar.

CRiga.



sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Sessenta e seis leões


Eu vi o leão.
Feroz, forte, indestrutível.
Leão de mil patas e dentes
vencendo guerras, vencendo gente.

Leão de mil vidas, imortal.
Um leão tão lindo e tranquilo
passeando pelo meu quintal.

Da janela agora eu vejo o leão.
A juba mais curta pode não ter
aquele mesmo charme da juventude
carregando filhotes em fotos coloridas.

A força pode não ser
aquela mesma que venceu no dente
a selva de pedra indiferente.

E o rugido...
Mais para os monossílabos
que aquele eco eloquente
mudando o curso dos rios.

Aquele brilho do olhar de felino caçador
talvez esteja mais para o mar,
marejado,
que para o horizonte,
novo horizonte.

Lá no monte acima da grande praia
ensaia uma caverna
um hibernáculo.
Ensaia um leão cansado.

Mas é leão!

Leões têm este hábito tranquilo
de caminhar sobre a relva, seu reino,
como quem fosse fácil presa.
Sem pressa, um belo poeta loiro e altivo,
como se qualquer um pudesse o fotografar.

Leões têm esse jeito de se cansar às vezes.
Descansar. Até de se deitar na relva
quase querendo desistir de continuar.

Juba, força, rugido, olhar.
O leão chega até a pensar
que um bom leão pode sim recuar.

Mas é leão!

Sua intensa natureza não lhe permite.
O que seria do charme sob a juba experiente?
O que seria do rugir sem eloquência?    
O que seria do olhar
que determina o caminho do sol?

O que seria do sol sem poder brincar
de derrubar reinados,
sem brilhar sobre a velha juba
de um leão guerreiro rei?

CRiga.



quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Garotos modernos


O modernismo sempre chega
e sempre chega faltando a mesma coisa.

Porque apesar dos discursos
e conceitos modernos cheios de palavras em inglês,

Tudo gira em torno de uma inteligência
que os algoritmos nunca conseguirão depurar –

Emoção que desencanta e trava máquinas
e de fato resolve conflitos.

Quem quer crescer de verdade precisa segurar
o ritmo do encantamento com si mesmo,

Observar um pouco mais –
há um mundo inteiro de humanos de verdade
ficando para trás.

Eu não tenho in box
nem out box,

Eu tenho é uma linda caixa de problemas
que o teu chato inglês enlatado
nunca ousaria resolver.

CRiga.




Rocha lisa



Duro é quando a água para de bater na pedra, e você tem tempo de querer sentir nos olhos o sal.

O mar secou, diria Drummond, eu não sou duro, José. Eu sou a água que parou de bater na pedra. Eu sou também a pedra – rala lisa nua de cara exposta ao vento cortante que vem num assovio do leito marítimo que virou deserto.

De repente a onda (eu espero) vai me levar. Explodir como nos pesadelos. Daí posso ver teu rosto refletido na lua vermelha, enquanto submerjo levemente morto no mar do desengano, o mar tranquilo sem tempestades, tubarões e godzillas. A tal da bonança.

Será quando tarde demais os escafandros descobrirão uma carta borrada no bolso do surrado jeans, apenas uma poesia pra você, a nobre arqueologia, o dia em que eu finalmente decidi te procurar nos versos que não saíam, pois duro era quando a pedra rolava o penhasco e você, na beira do precipício, me esperava encontro marcado.

Sempre nos desencontramos. Eu não honrei canções. Não te esperei feito pedra postada à beira-mar. Eu me gastei. Virei cascalho. O vento me levou. O mar voltou a ser o mar. E você, aros pretos nos olhos cansados da lua vermelha, resolveu sangrar a lágrima que meus olhos não conseguiram chorar àquelas tardes. Era muito tarde. As letrinhas já subiam dando os créditos no final do drama. Quem ama em silêncio encrudesce a poesia.

CRiga.



domingo, 5 de agosto de 2018

Vontade de ficar



Sabe aquele lugar em que a energia é tão boa
que até a lâmpada se nega a queimar?

CRiga.

Comercial do Free (cumplicidade)



Porque quando eu fico “o louco”,
o pouco que quero
é só fazer uma poesia.

Só a paz dos discos
voadores vinis de uma briga
que já não ouço mais.

Uma viagem de volta sempre é necessária.
Te devolve as coisas e as sensações
que valem a pena carregar.

Você sabe que a paz também é singular.
E que as pazes são plural.

A gente não erra!  
rima bota a roupa no varal
com põe esta poesia pra concorrer.

CRiga.



Futuro saral


Há um radar no teu olhar
que rima com a poesia que circula
no ar de uma futura canção.

Eu te direi aqueles versos ritmados.
O relógio já parado da academia
irá querer congelar atmosferas.

Na nota cravada play atention!
vou segurar o ar na hora do grave
e apenas levantar a sobrancelha direita.

Daí que o verbo atropela!
É flor vermelha no casaco
e um pedido de perdão.

Daí que a súplica singela
é dor que caminha em cada tecla
e morre no último si.

Me dá aí de novo tua atenção!
Aquele radar que o olhar esconde:
me procura onde a alma capturada
longe, só voando consegue fugir!

CRiga.



quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Um flashback



O que não te acontece mais aos ouvidos,
muitas vezes a alma escuta, lá no fundo
pedindo um segundo da tua atenção.

Há um tapete de ácaros dores encrustadas.
Debaixo não há o pó do arrependimento,
apenas o piso frio de uma inocente solidão.

O que não te acontece mais nas pontas dos dedos
talvez seja o restinho do doce brigadeiro
que a língua adolescente não aproveitou.

Há um poema que precisa te pegar no rosto
dizer o quanto sinto muito o desperdício.

Reviro discos e canções,
e a agulha agora falha.
A ilustre amiga traiçoeira
que não deixa me sentir
mais sentimental.

Me dá uma lua risquinho no céu, um sorriso
me devolve aquele restinho de eternidade
um dia guardada confiante
na gaveta de nossa juventude.

CRiga.