segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Cumplicidade

Daqueles olhos que me perseguiam sóbrios, mas com sombras escondendo intenções, poderia revelar-se o fogo da insensatez. Entre o decote da moça comportada de escritório, entre a carne que queria sair para fora, peito aberto peito valente... eu queria ser da gente aventureira!

Era só incêndio, regado à lírica de prosa e poesia. Havia monstros, mas estes dormiam filhos de um deus que não queria fazer mal. A cama jazia em algum lugar, a boca também, os olhos também, a carne das mãos contidas subindo a nuca num abraço de amizade sempre nova... eu queria a prova, provar teu beijo vinho de batom vermelho!

Havia talvez cumplicidade incomunicável, transas, beijos, pura embriagues. Tudo nas cabeças decepadas, emprestadas à moral e aos bons costumes. Havia a camisa de seda leve, sentir as costas de mulher naquele mesmo abraço entre amigos. Havia o signo, a troca de textos via net, olha só, vê o que cê acha, me diz com sinceridade... eu queria a verdade, mas a verdade talvez não tivesse tanta poesia.

Melhor assim, essa cumplicidade sem jeito, esse silêncio de lábios, essa riqueza de gestos, esse tempo de a gente fugir da gente mesmo. Melhor assim, contas pagas, despesas rachadas, uma liquidação de supermercado. E quem sabe um texto novo, um conto redescoberto de Caio Fernando... eu queria tanto, eu não posso nada.

Quem sabe distância segura (e o que é seguro no escuro do desejo?), a chuva, a cerveja que você não toma... Quem sabe a certeza de que nunca nada será, e de que vale muito mais os mistérios os olhares conspirando revoluções a partir de nossas camas, inspirando os porres na solidão louca dos nossos deuses calados, alados, bem falados nas rodas das retinas das lentes artificiais, nas nossas sociedades virtuais. Nada de poetas mortos, nem de anjos tortos – só nós, discretos, sujos, imundos pecadores, amargos conspiradores, personagens de um conto cansado do fim dos anos setenta. Depois, só pegar o ônibus na manhã seguinte conversando sobre amenidades, comportados indo ao trabalho que paga aquela merda de salário, que consome toda nossa juventude, criatividade e necessária selvageria urbana... eu queria, ah como eu queria...

Me faltam caneta e papel, me faltam um céu e um inferno convincente. Sou indecente, só que você não sabe, ou não quer saber porque também é. Me falta a falta que você não me faz, sou corpo, apenas corpo, o resto de mim está escrito numa garrafa perdida por aí, quem sabe entre o seu decote... quem sabe um dia irei buscar...

CRiga.



sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Bordões da literatura

Algo em nós é algoz,
são nós que atam a alma.

Nada supera o superlativo,
então quedou-se escriba de cartório
às vezes, vis notas sociais.

Ontem reconheceu firma de Drummond.

CRiga.



Boiar até a noite acabar

Te inventei mil vezes,
as tantas que foram preciso,
e insisto te procurar na noite
como se ouvisses o meu chamado.

Precisei te inventar pra sobreviver
porém cansei de cantar,
cansei de chamar
e nada mais me afeta.

Por isso vou terminar
com um: “boa noite, meu amor,
preciso dormir, talvez sonhar,
talvez acordar do pesadelo”.

Morremos, meu amor,

e talvez esta seja a chance única
de novamente nos encontrar.

CRiga.



Alguém me livre!

Como muitos, aliás, nos comércios da vida, tem um ridículo de pensamento fraco que todo dia bota pra fora de sua lojinha de roupa uma caixa de som ligado quase no último volume, tocando música religiosa pra “atrair” clientela.

Quer impor sua crença, como se todos devessem aceitar a barulheira por se tratar de música religiosa – portanto, seria “pecado” condenar a atitude. E fraco de pensamento, empobrecedor, porque a atitude beira ao fanatismo lunático e alienado. Não há problema em crer, o problema é querer enfiar à força sua crença na cara e nos ouvidos das pessoas, feito estandarte, como se fosse normal todos quererem aceitar porque se trata de “Jesus”.

Covardia, golpe baixo – é quase a mesma coisa que dizer a um correligionário: “irmão, venha comprar na minha loja, em nome de Jesus”. É o famoso dízimo, só que em vez de pedacinho do céu, leva uma peça de roupa de qualidade duvidosa.

Sem contar, é claro, a elementar falta de educação. E ainda sem entrar no mérito da qualidade (?) da música – todas, sofríveis, repetitivas, cansativas.

E antes que você queira orar por mim, na sua infinita benevolência, paciência, sabedoria e perfeição pelo que virou moda chamar-se “intolerância”, não quero nem preciso desse teu perdão, ou de qualquer outro perdão, inclusive o “Dele”. Não perca seu tempo: prefiro arder no meu inferno pessoal. Pelo menos ele não força barras, não é mal educado e não engana ninguém, inclusive a si mesmo.

CRiga.



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Até que o pecado santifique

Ainda contigo na memória do coração
reconheci anjos no meu caminho peregrino
onde fugi, assustado e inconseqüente
como criança que tem medo de dizer
que se apaixonou pela professora mais bonita
e sonhou um beijo proibido
atrás do muro da escola.

Numa manhã
um deles sorriu pra mim como antigamente
me deu um beijo quente na minha cama:
talvez redenção
talvez tudo o que você ainda não entenda
não por culpa tua
não por culpa de ninguém.

Prometeu voltar num dia claro
na mesma chuva confortante
de uma primavera diferente.

Até lá vou confiar na sorte como bom cego
confiar no teu sorriso que me alivia o ego
confiar no teu caminho
que ainda não confia em mim.

Até lá vou assassinar noites sem fim
procurando acertar a rota,
que um anjo de asa quebrada
me cantou, com um sorriso de pena,
desviei por livre arbítrio do coração.

Até lá vou estar meio vivo, meio morto
torto mensageiro das sujas esquinas
aborto das emoções baratas
nas portas dos bares, nos ares de inverno
nos portões do inferno da grande cidade.

Até lá terei o que me resta, pouco,
uma fotografia desbotada
uma carta já borrada
com promessas de “para-sempre”.

Até lá,
sabe lá Deus quando e onde!...

Até lá poderemos ser os mesmos
ou mesmo tão iguais
que não valha a pena um dia novo
não valha a cena de cinema
não valha o beijo guardado
com sabor de mofado morango.

Não quero ser o mesmo...
quero não mais errar na estrada
quero não mais fugir de casa
nem me calar frente aos acusadores.

Quero roubar a rosa do jardim da escola
beijar sim a professora mais bonita
e sair com ela pelo portão da frente
desafiando os olhos da multidão.

Quero uma primavera sem tanta chuva
uma tarde na praia nova do antigamente
e o mesmo sorvete de morango
mas com creme e um copo d’água.

Quero a redenção dos anjos tortos
a rejeição da moda, a hora de dormir,
quero amar como sempre
e nunca amei.

Quero que você entenda
e não apague a vela que acendi
ao lado de teu leito eterno
que fundei p’ra resistir no tempo.

E até você voltar de branco
feito santo desafiando a santidade
serei cordeiro sem missão
pedreiro sem próprio chão
ópio de soldados mutilados
ronco do trovão
chuva de domingo
sono sem sonhos
pesadelo sem dormir
paz de cemitério
etéreo
vampiro
o tiro no mensageiro
o letreiro de azul neon
da boate no centro da cidade.

Quero que você volte da fumaça calma
após o incêndio do lar que não deu certo
quero estar por perto
dar-te não o vinho que guardei
mas o beijo santificado do caminho
onde pequei sem tempo
e te esperei sentado
com um novo verso –   
um verso de amor.



A tristeza é senhora

Vezes bate na gente
aquele saudosismo de moço bobo
perdido do outro lado da rua.

É só atravessar, meu velho,
desafiando motoristas loucos.
É sua vez, a gente já foi moço demais
pra correr dos carros poucos.

A solidão é que apavora
e o medo de atravessar a rua
é mais de não encontrar ninguém
do outro lado
do que ser atropelado.

CRiga.



quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Balada da nova década (p/ Caio Fernando Abreu)


(Quando li “Morangos Mofados”, do Caio F., pela primeira vez, uma energia louca tomou conta do meu pulso. E quase como um plágio à sua belíssima forma amargurada de descrever sentimentos, cometi esta “Balada” – totalmente em homenagem a “Morangos”, totalmente em adoração a Caio Fernando Abreu. Hoje, 20 anos sem ele.)




Naquela luta, eu era mais eu. Conjeturava planos infalíveis, “organizava movimentos, orientava carnavais”. Caminhava na nublada metrópole mãos dadas colegas minhas, amantes minhas. Egoísta, só devotava amor à luta. Pelos canteiros me enroscava com as pernas das moças, cada beijo um morango diferente, sempre azedo, sempre morango. Aquilo era quase tudo junto daquela luta infinita e companheira, dias estranhos em que eu caminhava pelas avenidas cinzas dos anos setenta, como que caminhasse lisérgico zumbi, cantando protestos Vandré Buarque e algo mais. Detestava um tal de Belchior que só reclamava da vida e tinha aquele instinto de quem num dia cansou de lutar. Eu não admitia, “porra, o cara é artista”, não podia assim cantar a desistência, tinha de levantar bandeiras, incendiar as cabeças pensantes. Alguma coisa naquele moço parecia com falso ar de conhecimento de causa: eu não entendia aquela atitude, porque para mim valia a luta, a guerra, a passeata. Valiam as festas todas em que os olhos embaçavam no ácido, coroavam dionísios e neros, convidavam Che Guevara para um tango à Gardel, bêbado no canto da sala exoticamente decorada, que parecia às vezes ruir numa privada velha e suja no centro da cidade, cuja população benevolente era somente de bêbados, marginais, putas e filhos das putas. E eu: saía amarrado em braços que não eram meus, me enroscava em corpos quentes nas noites de verão, dentro do apartamento com porta rosa-choque e cheio de pôsteres enormes e coloridos. A vitrola gritava Beatles, Dylan, Janis, Jimi, Chico Vandré e outros mais, aquele sonzinho, “discoteca”, pra variar, aquele tal de Belchior, pra duvidar, e mais gritos despertados da cama redonda com ar de inverno polonês.

Era uma sexta-feira, como a da semana que passara despercebida. O sábado também passou rápido demais numa carreira de pó, oceanos de álcool, túneis coloridos, sonhos psicodélicos e em câmera lenta, vez em quando preto no branco, vez em quando discurso político, vezes outras, muitas outras, um adentrar profundo sem perguntar nomes e emoções nos corpos dilacerados pelos anos setenta. Pernas abertas sem fronteiras, caminhos tortuosos feito a direita radical daquela época barbitúrica. Aliás, os anos setenta dilaceraram muitos corpos, muitos, que cada orgasmo violento e ardente era como um grito último do porão, antes de o corpo despencar e morrer pelo prazer de não sentir mais dor: inverso do sexo, quando se morria pelo prazer só pra se esquecer da dor dos abandonos. Os anos setenta compuseram hinos, assassinaram poetas e operários do Brasil teatro, coroaram reis e inverdades postas em outdoor e cartilha escolar.

Aquele sábado passou rápido, rápido demais, como o ano passado igual a este: não deixou rastro nem saudade, não plantou novas flores nem acendeu uma vela nas noites eternas. O sábado acabou, escureceu. Não sei se dormi ou se morri e nasci de novo...

...pois o domingo amanheceu violento. Eu não entendia aquele despertar atônito, um sol vermelho que cegava os olhos vermelhos. Parecia não existir mais tempo, alguma coisa como o cansaço viera sacudir a alma entrevada, e houve compenetrante silêncio: nada do que se incluíra naquela mesma velha luta viera ofuscante e vermelha naquela luz de um sol singular. Parecia uma canção nunca antes cantada, um sonho nunca antes sonhado, uma maneira de existir mais plena, a saída de um lugar estranho que na verdade nunca estivemos. E não era ressaca nem ressentimento: era aquela famosa lucidez incomunicável, que somente se tem num estalo atômico dentro da cabeça decepada, ante o sol vermelho de um domingo semigual. O mesmo sol de ontem, veja, o sol que descobrimos hoje, assim, eterno feito ele só, e veja, tudo permaneceu, nada mudou no Brasil nem na direita. De nós se perdeu aquela parte irrecuperável de nossas vidas, abandonada nos fundos dos copos vazios e trincados. Nem mesmo aquela luta vale agora, aquela guerra, protestos, aberrações. Nada valem os maços de cigarro, os discursos combinados, tudo ficou para trás, meu amor: e você é o meu amor, o mesmo de ontem, amor que deixei chorando por mim numa esquina, com um filho meu ao ventre descoberto, à lua embriagada.

Vimos na TV, mataram John Lennon, e não pudemos fazer parar a bala. Não mudamos nada e ele se foi. John, eu tentei, não sei se tarde, mas eu quis salvar você, tentei demais, todavia a bala atravessou minha mão e alcançou teu peito descoberto, desprotegido feito o ventre do meu amor. E eu chorei...

Mas, veja, veja meu filho que vai nascer, o meu filho... Talvez um dia ele ouça “Imagine” e “Instant Karman”. Ele veio abrir meus olhos tortos, que perceberam pelo caminho tortuoso até teu peito, John, muitas mãos sangrando, sofrendo, mas que precisavam cicatrizar. Nada é para sempre, John, nem o silêncio...

...quando a vitrola gritou: “a felicidade é uma arma quente”. Eu não entendia o que era, realmente, ser feliz!... Sabia o que era uma arma, sabia usá-la bem na luta, mas nunca tinha sido feliz. A luta cegou todos nós...

...quando a vitrola insistiu: “ainda somos os mesmos, e vivemos como nossos pais”. Eu era um sonhador, um vírus no copo errado, e resolvi acreditar que o sonho tinha mesmo acabado, de fato. Foi quando o tal do Belchior fez sentido, e eu o inclui na lista dos meus preferidos, até que enfim!

Tenho hoje guardado os Chicos Vandrés e outros mais, mas veja o que faz um simples sol nascente de verão, e um ídolo que morre em nossas vidas: aquela luz vermelha poliu os caminhos antes carreiras de pó e oceanos de álcool, plantando novos morangos, agora doces, na nova década, bem tarde, para uma nova vida, novas colheitas, novos ídolos, novos os caminhos.

Eu cansei da guerra, da luta, agora eram os ares da nova década, sem Lennon e lutas intensas, sem cores ou flores exóticas. Eu cansei dos caminhos cobertos por carreiras de pó e oceanos de álcool. Agora um novo sol, um novo domingo:

agora uma moça e eu, um beijo de morango vermelho. Agora meu filho que vinha me ensinar, vinha nascer naquele novo canteiro. Agora um ventre coberto, bem perto de mim. Agora eu era eu, mais do que nunca fui!

CRiga