quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

A chuva dos cinquenta

 


Enquanto a chuva cai num chavão eterno
Minha rima no inferno quer se afogar na certeza
De que o excesso vale mais que o impresso velho
Colado no poste mijado pelo vira-lata amigo.

O conhaque sob o sobretudo denuncia –
São Paulo ainda é a mesma amiga linda e traiçoeira.
Eu me apaixono e alguém me derruba fácil na sarjeta
Só com um desvio de olhar esguio.

Quando eu morrer, Mário,
Quero sirenes nas lojas de discos que não existem mais.
A inocência daquela juventude de não ter como voltar pra casa
Na madrugada depois da noitada embriagada de esperanças.

Eu acariciava seu rosto com as costas das minhas mãos,
Havia a poesia serena de um filme italiano.
No pulso fino havia um reloginho que foi roubado,
No peito lindo havia um segredo nunca desvendado.

E eu, garoto dependurado nos ônibus das madrugadas frias,
Não me importava com nada nada.
Atravessava cidades no meio da semana que não me cansava
Só pra ver você sorrir pra mim.

Hoje a chuva cai distraída, provoca um ai.
Cada gota que cai pesada
Parece uma lágrima que um dia eu chorei.

CRiga.




domingo, 8 de outubro de 2023

Fetiche

 

Enfim a gente encara porque a cara cansada
Fez a barba.

Enfim a gente se embriaga porque a bebida
É a mais barata.

Enfim a gente se encontra de novo na noite
A gente plantou encontros dissonantes.

Enfim o jardim deu aquela flor.

Como é maravilhosa a impossibilidade do amor.

CRiga.




quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Noite no sertão

 

À meia-luz a morte loira caminha tranquila
Vestido branco na cozinha ainda morna.

Vagalumes bêbados flutuam
Não há saída de emergência.

Madrugada é a brasa que se confunde
Moribunda na solidão do fogão à lenha.

A velha na cama sussurra preces de perdão
Estende a mão ao vazio do quarto escuro.

O vento leva embora lençóis surrados do varal
A rosa murcha doa pétalas perfumando o ar.

A madeira no chão range abandonos
Cinzas são o tapete da visita.

Jesus chega manso à porta entreaberta
Sorrindo a paz de um quase dia qualquer.

Indicador nos lábios sugere silêncio
O som é apenas um click de interruptor.

O sol nasce apagando a dor.
Hoje não tem cheiro de café.

CRiga.



segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Limão

 

Me esqueci no fundo de um copo
Cheio de preocupações alheias.
Não posso mais ser areia de ampulheta.

Quando eu me encontrar quero ver você
De novo de branco encanto.
Eu canto, sorrio, gargalho e te levo –
A vida não é isso que a gente fixa num quadro.

Na minha taça há um suco que me embriaga
Na minha vida há uma fome de agora,
Não há mais tempo de reclamar.

Quando chegar este domingo incerto
Quero apenas saber qual é o prato do seu dia.

Quero apenas a certeza de um tempero
Que ainda traduza aquele velho e bom amor.

 CRiga.




sábado, 30 de setembro de 2023

Rastro

 


Seguiu-me num frasco plástico mole e rosa
Era uma história de queimar fotografias.

Esses dias me deu um cheiro novo
Sobrou lá da clínica de onde voltou.

Naquele inocente barbeador de gilete de verdade
Havia pais imagináveis e imemoriais.

No pinball de madeirite há um moleque inexperiente
Que ainda empina pipa com linha de costurar.

CRiga.




Sobre o abandono

 


Carrego entre as duas mãos juntas em concha
As pétalas de uma rosa que morreu jovem demais.

Pesa bigornas. O caminho do cortejo é vasto,
As folhas secas denunciam um vacilo. 
O cimento intacto ainda guarda velhos sonhos.

Rosas secam, meu amor.
Outras nascem e o ciclo perdura,
Só a primavera sorri rangendo os dentes
Nesse sol de solidão tão quente.

Eu apenas espero a noite.
Cultivo uma vontade adolescente
de sentir aquele medo bobo de assombração.

CRiga.



quinta-feira, 11 de maio de 2023

Escalando pedriscos

 

Acho que espremi tanto tanto minh’alma
Bagaço podre pobre na sarjeta fim de feira.

Remexi lixo na esquina escura
Algo que pudesse me alimentar
Luz e calor
Queimar, me encontrar.

Virei de costas pra não revelar os meus segredos.
Bobos segredos sem tempo, quem não sabe,
Quem vai querer saber?

A amargura às vezes paga a conta
De um sono justo que revisita
O tempo da poesia.

CRiga.


A esperança é ruiva

Me deixa que estou voltando
Aos poucos, sinalizando,
Feito o cabelo fogo nos ares
Incendiando histórias de recomeçar.

CRiga.