quarta-feira, 29 de junho de 2022

Vila Leopoldina

 


Ele não sabia que, entre as suas pernas enquanto sentado no corrimão do cursinho, ela sorria pedindo sua atenção. Ele não sabia que o coração era tão traiçoeiro quanto o tempo, que não curava feridas porra nenhuma. Ela cantava aquela canção do Robert Plant, dizendo que se lembrava dele na hora em que loirão gritava “I burn in love ”*... Ele sabia inglês, mas não quis saber o que significava.

Anos depois, visitou-a sem culpas de entender. Na verdade sem mais nada – naquele coração cego e surdo por sensatez jazia o vazio de uma tristeza incomunicável, um tempo cinza chuvoso de setembro e um vagar pela cidade e parar na sua casa para um oi.

Almoçou com ela e com a mãe, o almoço do pai falecido. Ela tinha novos discos, e conseguira achar aquele do Terence Trent D’arby, com “Seven More Days”, de um velho comercial de jeans em que o cara ficava um tempão esperando a namorada se vestir, ele num carro conversível, fez sol, fez chuva, e ela sai vestida no jeans perguntando: “demorei?”, e ele responde: “não, acabei de chegar”.

Eu demorei... um namorado viria vê-la amanhã, ele gostava de Beto Guedes e Belchior. Eu não conhecia, mas sabia do “não dá mais” brusco do seu olhar. Ele a conhecia. E ela o conhecia, e sabia que saindo dali ele compraria discos do Beto Guedes e do Belchior. E comprou mesmo.

Ele foi embora não arrependido de ter ido, nem arrependido de ter se feito cego anos antes, nos corredores e corrimãos do cursinho, ou à caminho do ponto de ônibus depois das aulas encerradas tarde da noite. Foi embora arrependido de nunca ter convencido ela que sabia dos olhares pedintes, das traduções, dos códigos tão jovens. Arrependido da insistência em dizer amiga, amiga... Amiga, palavra triste quando se perde um grande amor...

CRiga.


terça-feira, 28 de junho de 2022

Procissão de São João

 


Destrua os olhos roxos
querendo esconder pecado.
O mais pecado dos pecados –
ousar não ter pecado.

O suor do santinho a caminho
daquela fontezinha artificial
não purifica o asfalto caro
amanhã forrado de santinhos
de campanha eleitoral.

Os fogos do céu são bonitos
tão bonitos quanto o fogo
debaixo das saias das meninas.

Não creio em fonte, creio no fogo
que não mente nos olhos roxos
que não sente por pecar
e que vive santo, sem machucar.

O pecado mora aqui mesmo
não precisa procurar ao lado.

CRiga.



quarta-feira, 22 de junho de 2022

Dias eternos de amores modernos

 


Lídia olhava a caixinha de música quebrada. Deveria chorar, mas não chorava. A bailarina manca e a música desafinada já não afetavam mais.

Lídia não esqueceu o batom vermelho na bolsa, nem o preservativo comprado, em segredo, naquela farmácia de esquina. A inveja da solteirona do balcão podia denunciar. “Foda-se!”, palavra da moda.

Lídia deixou pra trás uma vida de menina. Perdeu vontade de chorar por brinquedo quebrado, perdeu a atenção nos bordões da mãe, perdeu a doce virgindade lenda das conversas de chá da tarde.

Enquanto destoava nos gemidos, misto de dor e de novo prazer, uma bailarina manca fazia as malas. Não havia príncipe nessa história de amores perfeitos, porque nem Lídia esperava telefonemas de dias seguintes.

Nem mesmo aquele soldadinho de chumbo, herói de outrora a declamar poemas ao pé da caixinha, havia mais – perdeu uma perna na guerra da puberdade, e aposentou-se beberrão numa cadeira de rodas pela cidade dos brinquedos fantasmas.

E o amor, descrito num velho livro de contos de fadas, agora apenas mascava chicletes despreocupado, parado na chuva com guarda-chuva furado, esperando um ônibus qualquer.

CRiga.


sexta-feira, 17 de junho de 2022

À minha professora

 


Dona Dalva,
minha professora de português.

Falava também francês!

Estrela de blush e batom sem brilho
de um lindo e amarelo Fiat 147.

Ofereceu carona
a adolescentes encharcados pela chuva
a caminho da escola.

“Por que não veio no dia da prova?”
Porque quis perder a hora
brincando com minha irmã...

“Pois então sente aqui,
faça essa prova agora por mim.”

Fiz dez, que beleza!

Dona Dalva sorria fonemas
de amor à Língua Portuguesa.  

CRiga.


quarta-feira, 8 de junho de 2022

Poesia está de mal

 


Letras fogem
relegadas demais
ao ganha-pão.

Elas precisam
é de mais romance
e menos chantili.

Elas cantam na tua harmonia.
Mas se afinas demais a voz
perdem a graça da simplicidade.

Voam com tucanos ou urubus.
Mas se insistes só fotografar
caem bicho empalhado pra prêmio.

Sussurram sonolentas,
mas ávidas à madrugada!
Se dormes, elas roncam.

Elas tilintam nos cristais polidos.
Mas se bebes num gole
viram putas velhas das esquinas.

Elas têm gosto de batom no beijo.
Drops de cereja. Cerveja quente
se te embriagas tão facilmente.

Brilham nas palavras brancas do sorriso,
elas declamam a poesia entre os dentes.
Não mastigue – são hóstia de santificar.

Dá-lhes, então, atenção.
Não as faça apenas palavras
de uma simples profissão.

CRiga.