sexta-feira, 30 de abril de 2021

Melancolia em quatro estações

 


Folhas caem corações partidos
no asfalto muito caro da cidade feia.
Houve outonos em que os poetas fugiram
poetar nas mesas de outros bares.

Há um cravo amassado no bolso do casaco.
Barba a fazer, inverno no passeio público.
Um olhar entre procurar rostos conhecidos
e amores imperfeitos.

A moça que colhia flores na praça
não acha mais graça na primavera.
Ontem ela chorou uma lágrima quase seca
saudades do primeiro namorado.

No último dia do verão, dizia uma canção,
“nunca me senti com tanto frio”.
Não houve nem amor pra subir a serra,
pombos decoram o mar impróprio para o banho.

Quem sabe os céus do outono.
Quem sabe o cobertor do inverno.
Quem sabe a leve chuva da primavera.
Quem sabe a breve folga no verão.

Haverá um dia
em que a melancolia
não falará mais tão alto assim.

CRiga.


quinta-feira, 29 de abril de 2021

Filosofia de crise

 


Parado no refúgio de sua verde propriedade
pensa em ângulos diferentes
para que possa viver melhor.

Mas gente que tem fome
não tem espaço nem ângulo
muito menos comida guardada
pra pensar melhor!

Tem às vezes uma cachaça
em vez daquela sua cerveja gelada,
e nem é pra tentar enxergar diferente –
é pra encarar mais uma vez a ferrada de sempre.

Cada um tem sua missão
e oportunidade de seguir.

Mas nem todos têm oportunidade,
então seguir é questão de instinto
de sobrevivência.

Missão é pele na pele e não falar besteira
a quem arranca o couro do próprio corpo
pra fazer parte da estatística positiva
que qualquer governo gosta de positivar.

CRiga.



quarta-feira, 28 de abril de 2021

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Poeta de escritório

 


Não tenho tempo, me escute:

Há um lírio escondido na gaveta
pode ser primavera ou psicodelia.

Meu amor, me ajude a contar histórias
que não relatórios de chatas reuniões...

CRiga.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Office boy

 


Quando entrecortava as ruas do centro da cidade
caminhava correndo ganhando o tempo
que mal sabia se lhe devolvia vida.

A energia permitia os excessos da juventude
além de viver pendurado nas madrugadas
nos ônibus lotados.

Deixou passar tantas tantas paixões bonitas
porque tinha olhos de ainda menino
que ousava pedir olhares às meninas.

Desiludiu-se com a menina da turma da tarde
que inventou um pai brabo
pra justificar a paixão pelo menino mais bonito.

Mas teve de presente uma linda namoradinha
todo dia,
e tinha amigos e um walkman.
Tinha dúvidas de existência
que não necessitavam de psicogentes profissionais.

Comprava discos de rock and roll
e presentes pra irmã mais velha
que não sabia o que era trabalhar.

Algumas vezes perdeu pros ladrõezinhos.
Mas continuava nas ruas gastando o tênis
e tudo o que a idade lhe permitia.

Deu um Sonho de Valsa ao avô
na cadeira de rodas, tomando sopa,
numa noite de sexta cujo sábado foi de luto.

Mas foi, ganhou o mundo e até um carro
enquanto perdia um grande amor.

Bateu o carro na entrada daquela velha ponte
onde um dia com viu com a tia
um corpo retirado do rio
depois da violência da periferia.

Mais tarde encalhou o Kadett na enchente da rodovia
porque era cego de paixão.
O pai naquele Natal sabia
que nada era por mal.

Entre Anas e Marias mal resolvidas
foi bebendo uma cerveja e preenchendo seus cadernos.

Entre tantas possibilidades
foi parar na ilha.
Entrecortar caminhos entre um mar e um lar...

Quedê o garoto que pulava poças da chuva na rua?
Quedê os discos comprados vendidos
por causa da falsa sensação de vida moderna?

Que dê algo mais de positivo.
Que dê ainda sentido à correria agora calma
com a alma daquele menino.

CRiga.



segunda-feira, 19 de abril de 2021

Pólvora e hortelã

 


A veia nas ruas do Rio
urra sangue de Sampa
passa frio nas pontes do sul
e é explorada virginal
nas baías do nordeste.

Homens têm poder,
mas é só um deus que tem a força.
Com sua paciência onipresente
ele só assiste a tríades fatais.

Um caixeiro viajante desvia das balas
e leva a hortelã pras crianças da favela.
O Brasil ainda vive
o sorveteiro ainda vende o sorvete
e o traficante ainda vende a droga.

A esperança está no caixeiro que volta
destas esquinas muito loucas,
trazendo a bala de hortelã
com o doce sabor de redenção.

CRiga.


sexta-feira, 16 de abril de 2021

Notícias de Hiroshima

 


Sobre a tranquila cidade vizinha
houve a brisa louca e cinza
trazendo notícias e encomendas.

Talvez uma boneca nova
chegando de presente
à menina que já cresceu.

Talvez a maletinha de material escolar
que o garotinho esperou
lendo uma historinha de samurai.

Talvez o relógio da moda, o vestido
talvez a cama e até um gemido de prazer.

Ou talvez apenas o noivo distante
finalmente na visita prometida,
pousando leve sobre a pele da moça
distraída na lavoura de arroz.

CRiga.


quinta-feira, 15 de abril de 2021

Trailler da paz das almas

 


Um caminhão passava lotado na rodovia.

E ele câmera lenta. Trôpego.
Observava, ouvia o ronco louco.
Um flash da vida inteira nos olhos sem cor.
Muito pouco a dizer.
Muita vontade de avançar a linha do acostamento.

Na pista tapete de rodovia interiorana,
pouco espaço caso o acaso causasse tropeços.

Não há acasos, caso você não saiba:
na casa do desespero dos fracos,
uma mulher fumava em paz o seu cigarro
entre os braços de um amante mais amoroso.

Era um caminhão lotado de pesadelos.
Os faróis de cor amarela,
para-choque sem dor,
um ronco feroz de animal justiceiro.

E o trôpego avançou a linha do acostamento.

Desde então, justiça ou loucura,
havia mais ternura no asfalto vermelho,
uma abreviação de sofrimentos:

uma mulher que agora amava sem culpa
nos braços do amante agora novo amor,

e um buchicho no boteco da vila
com a conta ainda aberta
de um cliente que nunca mais voltou.

CRiga.


quarta-feira, 14 de abril de 2021

Mágoa

 


Pedra crack no coração,
bad vicious... 
Envelhece, são rugas rusgas repetidas
amarga bílis
ácido na bem-vinda santa úlcera.

Um parto de dor feito pedra no rim.
Ela vem e petrifica tudo
com seu manto de morte abraçada
amarrada.

É feito macumba
tão boca de sapo
quanto boca do lixo.

Uma pedra sempre ponto de partida,
sad precious...
No sapato no caminho na cuca
não tem como britá-la jogá-la ignorá-la.

Nem vozes da brisa soprando “esquece”.
Ela é a nova sensação pós-verão
neste agora pedra coração.

É feito o amor
tão marcante
que a gente não consegue esquecer.

CRiga.



sexta-feira, 9 de abril de 2021

Lírica acidental

 


Pus letras
puzzle
quebrei cabeça.

Veia à louca
sangue violeta
e letras pus.

No momento estanque
louca sobre a mesa:
a lírica perfeita!

CRiga.


terça-feira, 6 de abril de 2021

Praia do Forte

 


Foi quando eu quis capturar o teu olhar
fazendo o tipo alma do mundo
totalmente careta por você.

Mas era verdade, eu empunhava
uma certa paz impregnada até na roupa
depois da guerra rasgar os meus trapos.

Caminhamos madrugada em direção à praia
e no primeiro sol do dia sorrimos juntos num beijo
naquela ilha de perder noção do tempo.

Havia guerras (duas guerras e centenas de batalhas)
que nas pegadas se deixaram dormir na areia
levada pelo vento da curva no monte.

Areia que não volta nunca mais
feito jura
que a natureza te devolve na brisa.

CRiga.

“Quem sabe isso quer dizer amor
Estrada de fazer
o sonho acontecer”

(Bituca e Lô)


sexta-feira, 2 de abril de 2021

Santa sexta-feira

 


– Salve Nossa Senhora Mãe de Cristo, o Nosso Senhor!
– Só os documentos, por favor.
– Tem certidão de batismo também.
– Por enquanto é só a Carta, senhor.
– Um dia de bons cristãos este!...
– Dia de trabalho. Responsabilidade, senhor.
– Ainda bem que a gente lembra o dia da morte de Nosso Senhor Salvador!
– O senhor bebeu?
– Não. Comunguei. Sangue de Cristo. Tem poder.
– Assopra, senhor...
– Não é derrama?
– Senhor, por favor...
– ... então vamos, vamos então orar...
– Senhor, por favor...
– ... não me livre do meu carro duzentas prestações vexame na família.
– Senhor, por favor...
– Morreu na sexta pra ressuscitar no sábado, aleluia!
– Soldado, me ajude aqui.
– Domingo ele voltou aos céus pros braços de nosso Senhor.
- Braços pra trás, o senhor está preso.

CRiga.



quinta-feira, 1 de abril de 2021

Em uma nota, só

 


Em cima do piano
um copo de veneno.

Piano da sofisticação
pretão, sério demais.

Embebido morreu em si
menor.

CRiga.