quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Menina peixe

 


Quero escrever cartas a amigos meus.

Eles são espectros de luz que passam
raiam feitos sol e acompanham o satélite
cruzando a noite entre constelações
docemente inventadas.

Uma invenção sempre assim tão doce
uma cidade que tem forma de peixe.
Lá da estação dá pra ver o olho ginasial
dessa menina tão linda.

Não ter nada contra ninguém.
Afundar meus mais nobres sentimentos
na raiz da terra, abrigar ninhos de canarinhos
que sempre terão medo,
mas sabem que a casa é sua.

CRiga.





quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Tragédia não poder chorar

 



Maria
ria,
era muita tragédia pra um só dia!

Marido adúltero
barraco incendiado
demitida pela patroa
sem filhos pra dividir a dor.

Gargalhava.
Odiava.
Não amava mais nada
nem ninguém.

Maria
daria cabo de sua vida
não fosse uma esperança boba:

Poder chorar baixinho
só por um dia,
só por um dia...

CRiga.




terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Efeito colateral

 


O soldado na trincheira

chora
a saudade da terra prometida.

Ouça o vento chorar também
e tenha tempo de ouvir
cada lamento.

Folhas de árvores mortas.
Flores boiando no céu.
O ar é raro.
A paz é cara.

A moça no jardim
implora
e a chuva não chora por bem.

A velha na cama
conversa com a luz
e Deus desliga o interruptor.

CRiga.
(Caderno Azul - 2000)



segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Noêmia, a boêmia do Bom Retiro

 


Descobriram tarde:

Noêmia
era mulher de um homem só.

Se morreu trancada, tranquila
quimicamente tranquilizada,
descobriu cedo a chance de estar ao lado
do seu grande amor novamente.

O médico sugava seu dinheiro,
e o psicólogo só queria comê-la.
Todos queriam, e ela dava,
pra ela tanto fazia
cheia ou vazia:
ninguém preenchia o seu coração.

A última pílula foi abençoada
pela garrafa de vinho tinto intacta
presente do amigo Deise
de dois anos atrás:

“como Oscar gostava de vinho...”

Bebeu a garrafa inteira.
E ela caiu. A garrafa caiu.
Os cacos cortaram seus pés
e as janelas se abriram com o vento,
tempestade no apartamento.
A chuva encharcou o velho tapete
e um raio estalou entre seus olhos.

E Noêmia 
simplesmente nada sentiu.

Nem a dor nos pés
nem o frio pelo corpo todo nu
nem medo da amiga tempestade
nem castigada pela chuva colega de esquina
nem cega, nem viva, nem torta.

Nem assim tão morta...

A porta se abriu dois dias depois,
arrombada:
foto de Oscar colada ao peito
olhos estalados e um sorriso leve.

Descobriram tarde que Noêmia
que dava pra todo mundo
e que gargalhava feito trovão nos bares
e que roubava os corações dos homens,

era mulher
de um homem só.

Noêmia,
a boêmia do Bom Retiro.

CRiga.
(Caderno Azul - 2000)




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Clássico de domingo

 


Depender de rede social
para autoajudar-se,

é matar-se no silêncio
do estádio lotado:

a galera que só espera
gritar o gol contra,

tripudiar na diversão
de cancelar mais alguém.

CRiga.



quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Os garotos guerreiros

 


A vida que segue
também mede a resistência.
Se tem medo, nem vai –
fica em casa debaixo do cobertor!

Até que o barulho ensurdecedor
das crianças brincando na sala
te derrube da cama e da ilusão:

são elas as donas de sua vontade
dos seus passos, dos seus medos.

Quando eu era moleque
brinquei sozinho de matar dragões.
Meus meninos dizimam exércitos
num jogo de computador.

Diferenças não fazem diferentes.
Por eles suporto qualquer guerra,
não há terra que eu não vasculhe
procurando risadas, sorvetes
e as doces conversas do jantar.

Fossem comigo ao campo inimigo,
cantariam, contariam piadinhas.
A batalha seria mais linda e leve,
seria breve, e a gente venceria.

A gente voltaria tomando sorvete,
contando os dragões que tiveram fim.
Quando eu era moleque, faz tempo,
sempre quis guerrear assim!

CRiga.



quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Nem sempre é o fim

 


Medo que nada,
passa.

Tem gente que encara.
Tem gente que morre.

Tem gente que nada de braçada.
Tem gente que precisa de boia
ou salva-vidas.

Tem cavalo que passa.
Tem cavalo que atropela.

Ninguém vai te dar o que queres,
nem a vida e nem a morte.

Pura sorte,
devolva um sorriso no ar –
o azar é o cego
que só quer ouvir o sim.

O fim do ego
engole o ego do fim.

CRiga.



terça-feira, 22 de dezembro de 2020

O desafio

 


Quando a folha começa
em branco,
um traço, um tranco
começa a história.

Pode ser uma memória de infância
até um amor que passou.
Mas o pulso quer insistir, correr
machucar o papel com a ponta do punhal –
vale também com caneta especial.

À luz de velas, luz elétrica
vagalumes ou olhos de gato.
Sobre o apoio da mesa riscada do bar,
sobre a capa do velho vinil
do flash back que não toca mais.

Basta não ter medo do branco
ninguém é santo nem demônio
todo mundo amou e odiou
sorriu, chorou, morreu um dia
renasceu no outro contando
como é ardente aquele inferno
ou como é chato aquele céu.

A nossa vida tem todos os defeitos,
os pesos que nosso papel pode suportar.

Mesmo o borrão da lágrima que cai
escreve o tempo que o espírito precisa
pra se reencontrar.

Desafio é encontrar palavra
pra alma que é certeira,
mas sem simples tradução.

Quando a folha termina
escrita,
ela não imita
nem nunca encerra a história.

Insista.
Queremos ler-te linhas,
ver-te vencer os brancos.
Traduzir-te.

Para Danilo

CRiga.



segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

Garota de escritório

 


OK, nós não temos o mesmo naipe.

Você é boneca, eu
o velho, beberrão e safado
soldadinho de chumbo do Paraguai.

Você é seda, eu
a palha do milho, e não é tabaco
o enrolado no cigarrinho.

Você é idealista, eu
desisti de me atracar com ideais,
atracar mesmo só se for
numa cama com você.

OK, nós não temos o mesmo “taime”.

Você tem uma palavrinha em inglês
pra cada simples ação do seu trabalho,
eu, no máximo um dead line
até tirar a sua roupa depois das cinco.

Nós não temos as mesmas intenções.

Você quer subir na vida à custa
do que não consigo entender,
eu, subir teu corpo a qualquer custo
dos pés ao pé do ouvido
te dizendo as imoralidades que nos fazem,
enfim,
cada um a chama que nos mantém.

Não temos a mesma chama.

Mas me chama, meu bem,
me grita, me domina –
naipes, taimes e intenções
eu jogo no lixo
só pra te ver sorrir,
só pra te fazer feliz.

CRiga.



sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

As luzes do meu Natal

 


Quero tocar o veludo da folha
digitais em eletricidade
provocando raios sem tempestade.

Quero fugir desta cidade!

Refletida na parede branca
do alugado apartamento,
a luz que pisca no lusco-fusco
é apenas aquele Natal
que sempre chega adiantado.

CRiga.




quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Classificado de jornal

 


É preciso escrever uma poesia.
De dia, na noite quebrada
na esquina cacos de vidro
viram diamante.

Precisa-se de um poeta
dizia a placa à entrada –
o bosque verde verde
cheiro de mato molhado.

Um poema no guardanapo
caso você sinta aquela imensa necessidade
de viver de novo um pouco mais.

Um classificado de jornal:
“alugo vagalumes –
pago com letras a vista
que enxergar só poesia”.

CRiga.



quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Drummondear

 


Tudo é um poema.
Um sal diferente
ou açúcar de gente.

Um canto desencanto
bonito que dói.
Ou sutileza da beleza
quão incomunicável que arde o pulso
na busca da mais perfeita tradução.

Punhal invisível atirado à multidão
contra a alma sempre aberta.

E quem não acerta desconhece
a graça que a poesia tem.

CRiga.


Quando eu quiser

 


Está pelo par de canecas
e pela gota d’água.

CRiga.


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Sexto sentido

 


Melhor fechar a janela,
destrancar a porta.

Não se importe
pela chave no contato.

Se importe, me teleporte
quando eu sair
quando eu sentir
quando eu quiser.

E seja forte
porque sorte é uma piada.

CRiga.



Autodefesa

 


Arregimentei exércitos para te matar!
E você, covarde,
simplesmente se escondeu em mim.

CRiga.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Traição

 


A paz não é algo tão perfeito assim.

Você a pega com carinho às mãos
feito pomba branca
mensagem da nova era.

E no dia de sol perfeito
solta na mais bela esperança
de um grande feito histórico,
um poema de livro escolar.

E ela voa, meu camarada...
E ela vai altiva, símbolo cafona.
E de repente ela olha pra baixo,
sorri de canto e apenas suja
o terno do teu domingo perfeito.

CRiga.


sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Me disseram que não podia

 


Arranque d´alma aquele segredo imundo,
limpe-o com uma dose de colírio de gaveta
ou, se necessário à compreensão,
junte primeiro ao trapo de limpar o chão.

Esfregue a velha casa, maltrate as manchas.
E se elas não quiserem ir embora
faça um bolo de amora
à espera do amor bater à porta.

A tua porta que range um abandono secular,
um monstro covarde mofado no canto
com desejos e vontades de te acordar
pra não pecar sozinho na madrugada.

Pode ser o fim ou a libertação.
Árvores secas sentem falta das folhas ao vento.
Na pedra o musgo verde um dia foi água cristalina.
Me ensina a ser o seu normal.

CRiga.