terça-feira, 31 de março de 2020

Fora da oca


Nada vale mais que o papo jogado fora
regado a risos, olhando o rio
na hora que a alma pede paz.

Quando o doce ócio criativo
compõe até peça de teatro
ou apenas uma receita nova
pro inverno ao fogão à lenha
a contar outras histórias.

Eu ando de par com a paz
do cachimbo
de fazer nuvem no infinito.

CRiga.


Santo feijão, rogai por nós


Do alto de minha pequeneza
digo verdades intrínsecas
(como se eu soubesse o que é intrínseco)
que algoritmos não conseguem mentirizar.

O que eu sei é que o corpo vai se acabando
com o tempo que mói a gente.
Há o feijão que não deixa esmorecer,
mas não o futuro macio pra descansar
com a comida que hoje só luta sobre a mesa.

O que sei é que tem jovem e gente de roupa melhor,
que já têm e sempre terão –
comida, futuro pra descansar
do trabalho que deve dar
sorrir e falar tanto na tevê.

É que depois vem a novela
e a gente esquece do lutar.

Eu nem sei o que é algoritmo...
sei que a gente lê na tela do celular
que o mundo vai acabar
e que a gente tem é que trabalhar.

CRiga.

segunda-feira, 30 de março de 2020

Da cozinha


Acelero para ficar tranquilo...
Pego então papel e caneta!

Há um terral seco que sobe sentido nada
sem nada de vegetação.

Vejo a mesa velha
que a gente um dia tentou queimar.

Mas há outras cinzas, mais aqui pertinho:
a gente pode limpar história de fogão à lenha?

Ali em cima há aquelas árvores
que nunca sei o nome!
Elas beiram o araminho mequetrefe
desafiando propriedades.

Aí lembro que a gente planejou
um banco de madeira lá em cima...

Era quando tudo vinha em animação imaginária –
nossa casa tomando lugar
como num documentário de tevê.

Só que o espaço que a lente captura
na tevê
não é perfeito –

ela tem o defeito
de não saber viajar.

CRiga.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Apenas tristeza


Fisgadas nas já pesadas asas molhadas,
o oceano negro louco tenta te engolir
no voo contra o vento-tempestade.

Pangaré casmurro, o coração
cavalga um pulso manco
sobre as geleiras de um apocalipse.

Araponga louca que chora alto
no corredor vazio da cabeça bigorna,
a testa suada se arrasta no asfalto.

Falta a chuva de afagar a alma,
o abrigo implodiu, o sapato furou.

Aí vem o outono
seu bafo seco gelado
faca cortando rostos na noite
e um nada de bom pra sentir no dia.

CRiga.


quinta-feira, 26 de março de 2020

Sweet dream


Passei então a ver-te todos os dias
em todos os olhares, lugares
e pensamentos indecentes,
depois que acendeste em mim a juventude quase morta
num beijo adolescente.

Vi você nova colega de trabalho
uma amiga de uma amiga
uma atendente de papelaria
estudante de psicologia
ninfa sorrindo do canto da festa
mas este ano não pulei o mesmo carnaval.

Vi minha juventude dar lugar aos dias de semana
os dias que você ama matar, sedenta,
andando muito lenta pela praça sem graça
fingindo procurar alguém firme pra ficar.

E eu morri de velhice precoce,
de tosse e de frio
em pleno verão ardente.
Morri de tudo o que você possa imaginar.

Só não morri na hora de acordar de novo
ligar o carro quebrado de pneu furado
acelerando, insistindo não te matar
um pouquinho que fosse,
até o apito da fábrica de velhos
começar a me chamar.

CRiga.


quarta-feira, 25 de março de 2020

Essa história de envelhecência e de roqueiros inveterados


Pureza

Quero chegar ao ponto em que minha irmã me chamava de besta com um sorriso brilhante de cumplicidade.

O amor no volume

Estes roqueiros inveterados metem todos na sua história, e aparecem aquelas que se renovam e se reinventam naquela mesma porra de solo da guitarra! Só não me recrimine então pelo volume alto demais, era só pra te provocar...

Na foto ela agarrava minha perna

Quando comigo tinha coisa errada e você olhava, eu dizia vá cuidar da sua vida! E você jogava de volta linda matreira, na cara, com ternura: tou cuidando!...

Campos do Jordão

Na verdade a gente resolve um lance viajando junto. Lembra quando você sorriu naquela fotografia de mesa de café, pouco tempo depois do vovozão morrer?

Consideração de ortografia

E eu nem sei se o AMIGO que NÃO devolveu aquele meu Livro tá no grupo do “WhatsApp”...

Rancorzinho de temperar relacionamento

Então você não vem? Tudo bem...

Tenho certeza que você nunca esperaria essa minha tão simplória e santa e verdadeira e indecifrável resposta... 

Me perdoa

Eu sou assim.
Não sei onde você está,
mas tento imaginar.

A gente pode mesmo nunca mais se encontrar.

Mas um roqueiro inveterado inventa história
só pra você voltar
só pra você contar diferente.

CRiga.


terça-feira, 24 de março de 2020

Os assessores (empatia)


Antes do portão que isola o purgatório
do resto das pessoas sem informação,
estou como o adolescente que caminha, 
cara de paisagem,
com a camiseta do “Posso Ajudar”.

A missão não é 
não deixar que as pessoas cheguem 
ao guardião do portão –

é apenas convencê-las que o caminho 
daqui pra cima
é muito mais difícil 
pra quem acha que pode subir.

“Você foi contratado para bem-tratar!”

Você foi condenado a mentir sorrindo,
enquanto precisa apenas chorar por dentro.

CRiga.


Desejo


A entrega acaba
na morte dos sentidos.

A carne que ferve queima miolos.

Um sorriso de canto, “com licença”.
O perfume tão vivo que te encrusta,
te cimenta no banco duro da solidão.

Calafrios nas ligações elétricas.
Na pele tapete de veludo
brotam doces carocinhos,
braile de explorar
o trigal esvoaçante.

Fogo na terra, raiz que não sossega!
Brota oceano salivando a fruta
que brilha vermelha, úmida,
distraída exposta na fruteira.

Não, mantenha oca a santidade...
Melhor viver assim pela metade
afogado em si em tanto sal de mar.

CRiga.


segunda-feira, 23 de março de 2020

Quarentena


Eu estava sozinho
e com todas as nossas pessoas.
E você na consciência dizendo:
temos que nos manter cidadãos.

Mas aí eu fiz questão
de ver o sol nascer,
porque nada era mais importante
que sentir-se vivo
e único.

Unicamente dos versos
diversos
reversos
nos dias vermelhos
azuis
e todas as cores
dos amores
das pessoas
que todo dia estão comigo
distantes
amantes da vida que segue.

CRiga.


sábado, 21 de março de 2020

Sujo!


É assim que acontece.

Por causa do pecado
e da vontade
de acreditar em Deus.

Pra gente
facilmente
se sentir perdoado.

CRiga.

Me acompanha?...


Quando na madrugada me vi sozinho
assoviando uma antiga canção,

eu pensei em todos os meus amigos,
meus amores e a minha dor.

Havia felicidade em tudo, tudo!
E a tragédia que a gente constrói,
doente como todo mundo é.

Na madeira confesso sempre
os meus pecados.
Eu cansei de buscar o perdão.

Cansei.

Cantei uma canção.
Você conhece?
Você me acompanha?

A manhã está chegando
e eu tenho medo de ficar sozinho
mais esta vez...

CRiga.


sexta-feira, 20 de março de 2020

Na pressão


A corrente que corre
quase morre –
grita faíscas vermelhas
e lágrimas incandescentes. 

Mas o elo resiste
exausto, para no fim do dia
e abre uma cerveja –

o mundo não acabou
o trem não descarrilou
amanhã tem mais carvão
nessa nossa brava fornalha!

CRiga.


quinta-feira, 19 de março de 2020

Uma vírgula no tempo

A cabeça ferve letras, letrinhas.
A louça grita na pia, intrigas.
E eu insisto, aumento a fervura
da panela de pressão das ideias
enquanto corro o teclado
à procura de trincheiras.

𝐂𝐑𝐢𝐠𝐚.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Namoro

(foto de Cauê Rigamonti, 18.03.2018,
Parque Municipal Dom José, Barueri)

Procura-se alguém que diga:
“se você morrer, quero morrer também!”

Procuram-se mãos dadas
e sílabas caladas
num olhar de praça de domingo
sem ter o que fazer.

Procuram-se primeiras vezes
e desvios na rota do trabalho.
Entregar as rosas vermelhas
roubadas daquela vizinho
que fura a bola dos meninos.

Procura-se sabor morango
sorvete derretido
de tanto só olhar,
de tanto só falar de amor.

CRiga.

terça-feira, 17 de março de 2020

Bairro


Havia muitos quarteirões,
mas o trajeto automático da bicicleta
era sempre aquele quadrante exato
a rua exata, aquela casa.

Uma vez descemos a rua
mãos dadas, eu olhava pro asfalto.
Outro dia a consolei lá embaixo
dedinho machucado pelo rolimã.

Mas eu tive de mudar, tristeza,
atravessava bairros pra ver a menina.
E ela não sabia (ou fingia não saber)
por que tanto eu caminhava.

Um dia chamei a menina de “beleza”,
coisa de criança, correu atrás de mim.
Fui embora, vergonha, demorei pra voltar,
sofri as dores de moleque com saudades.

Paixão de infância falou mais alto
e voltei,
mas a casa vazia me esvaziou...
“Foi embora... pro Rio, parece...”,
disse uma amiguinha, olhos sem atenção.

Desde então cresci, vários amores.
Cresceram também as casas,
sobrados e edifícios.
Semáforos, contramão, buracos e desvios.
Tudo ficou difícil.
Tudo ficou proibido.

Estes dias passei por lá de carro,
e meu filho mal deu bola
à minha história de primeiro amor.

CRiga.


segunda-feira, 16 de março de 2020

Ampulheta


Observo e desejo ondas
apenas ondas que vão e vêm.
E não percebo que a areia
praia da juventude
um dia acaba cedo demais.

CRiga.

sábado, 14 de março de 2020

A pressa, a angústia


A pressa te deixa presa fácil.
O velhinho anda na calçada,
a criança brinca no parque.
Teu ritmo é teu, o mundo não gira
pra parar na tua urgência.

Certo dessa forma apenas
é o envelhecer mais cedo,
é a birra procurando bronca.
Tua pressa só vai te jogar mais rápido
na boca do pombo da praça,
no inferno da doce amarelinha.

CRiga.


sexta-feira, 13 de março de 2020

Psicanálise


Parece que sou mesmo assim, como todos.
Não veem a dois palmos do nariz
um em cada direção.

Eles têm seus erros
têm até seus podres, quem não?
Não é questão de perdoar
é questão de não amar.

Agora parece que é assim.
Sempre quando há palmos debaixo da terra
dizem
é que o amor grita sozinho no cemitério.

Ou quando tão frágil feito criança
numa cama ou à beira mar
inventa de contar segredos
ou pedir perdão.

Eu não sei. Eu não sinto.
Há filhos que sentem a falta dos pais.
Será que sou mal?
Será que sou pai?

Será que o coração só funciona
quando a gente vira de volta a ampulheta?
O menino que era amável
é apenas um homem perdido em si.

Ora, vamos, então me arrume um dos seus problemas
dilemas de livros empoeirados na estante
pra finalmente eu poder culpar alguém.

CRiga.


quinta-feira, 12 de março de 2020

Led contra mercúrio



O véu mais branco à noiva preferida
contra a encardida manta
que nunca protegeu ninguém.

CRiga.

Aquele novo penteado que passou pela sala


Passou a vida escrevendo coisas
que poderiam servir para algo
em algum tempo
para alguém.

Não vai morrer, não por agora.
Mas deixa ali registrado
seu profundo arrependimento.

Tem hora que a solidão é tão lucidamente companheira
que quando você pensa em fazer um chá
já está com o cálice de conhaque
nos lábios secos por novidades.

Mas não amou o suficiente.
Deixou o cabelo novo passar despercebido
pela sala da juventude, vem aqui,
deixa te dizer das coisas que não sabia...

Tem é aquela sede de beber
o sangue tão vermelho, explodir
o velho pulso no cateter do caráter
salvar feridos
colar cacos de corações partidos.

A idade traz flashes
e verdades sempre tardias.
A nova juventude não diz nada
e para quê? É apenas juventude.

Aos vinte era apenas juventude.
Aos quarenta não esperava acabar assim
tão sério, sorriso amarelo de velório.

CRiga.

quarta-feira, 11 de março de 2020

Papiro colado no poste


Andar a pé sem esperar a hora.
Falar de flores, o jardim secou
em plena primavera.

Não há muitas coisas belas pra se falar...

As flores de plástico estão caras,
O Sol nas bancas foi vendido
e agora grita mazelas
no cancelado horário de verão.

Há sempre um brasil desses aí
que nos persegue, inconveniente!
Vire logo a esquina, fuja,
brasil mendigo te dando o pão
que o presidente só sabe pisar.

O diabo amassa o trigo
pra fornada patriótica,
e Deus amansa a massa
pros discursos da patrulha.

Dá de comer ao Brasil
arroz com feijão sem pimenta
um grão de conhecimento
um sorriso de criança
uma rosa perfumada
qualquer que seja a cor –

apenas flor, nada mais,
não vigie nem invada
meu daltônico jardim.

CRiga.

terça-feira, 10 de março de 2020

Imemoriais


Desde tempos que busco na memória
nossa história não é das melhores:

algozes nos matando nas trincheiras
freiras nos amaldiçoando nos caminhos
ninhos de cobras nossa cama
lama nos campos nosso lar
mar de baleias e peixes mortos
tortos anjos bebendo cachaça
praça de guerra nossa derrota
nota fria e falsa identidade
cidade que nunca é nossa
fossa no balcão dos bares
ares de inverno polonês
inglês defeituoso na fronteira
cadeira elétrica e masmorra
que porra de mil vidas nós levamos!

Mesmo assim insistes me acompanhar
porque me amas desse jeito
feito filme
desde tempos imemoriais.

CRiga.


segunda-feira, 9 de março de 2020

Segunda-feira

Solidão é que mata!

A brisa que assovia melancólica
na fresta da porta da varanda.

O sol que ri de sua cara
numa semana que seguirá sem grandes feitos.

O barulho distante do escapamento da moto,
a raiva desses ridículos ainda é a mesma!

Daqui de cima a estrada congestionada
me dá a sensação do cárcere eterno.

Um trabalhador solitário roça o terreno
onde um dia subirão mais alguns edifícios.

Alguém irritante todo dia arrasta os móveis
na sala do apartamento de cima.

A vista que alcança o horizonte
precisa vencer prédios e casinhas mal acabadas.

O silêncio no apartamento é que mata!
Vontade de fazer tudo por você agora
e sempre um pouco mais...

CRiga.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Fotografando espíritos


A espera parece mais longa quando a chuva cai. Meus amores, minhas dores – no asfalto molhado todos perambulam com seus guarda-chuvas, cada um com sua cor em uma via sem volta.

A espera é fera que hiberna nas trevas da alma. Ruge uma dor que ecoa do fundo da caverna úmida e que cheira a mato molhado.

Quem espera sempre dança uma valsa de solidão no silêncio da casa fria. Casa com o padre, reza com o bêbado caído na esquina.

Me espera, não vai agora. Eu tenho cartões postais em branco pra gente sonhar. Um vestido de festa e outro de casamento. Um baú vazio mofando no quarto, uma garrafa intocada de licor. Uma cama de solteiro, a gente joga o colchão no chão.

A chuva da espera molhou toda a minha casa, distraída deixei janela aberta pra alguém me invadir. Eu queria ter asas pra voar até alguém. A espera parece mais alta quando o céu se abre e o sol não traz mais novidades.

A espera se transforma, com as nuvens sombrias em torno da lua, na noite que cai da minha estante e se quebra mil caquinhos, um porta-retratos ainda com foto de revista. Um anjo azul de bibelô empoeirado, lembrança de um sobrinho que nasceu, cresceu e viajou ao estrangeiro.

A espera é acreditar em filho de virgem. Uma prece, me esquece, me marca num muro, prefiro ser Madalena. Me atira na vida mas não me espere chorar. No compasso do ponteiro do relógio parado vou te atraindo pra armadilha: serei a bruxa que vai te transformar no sapo, você será meu anfíbio de estimação e terá que esperar um beijo meu te libertar de novo. Só que meus lábios secarão com o ar cortante de outono. Estaremos presos um ao outro.

A espera é o brejo feio e fedido da floresta negra das fábulas que assustam as crianças. É a impossibilidade de contar belas histórias aos casacos pendurados na cadeira da sala de jantar. É a solidão dos deuses loucos. É o dedo em todas as feridas da trouxa autocompaixão. Rasgar a carne, sangrar líquidos sem cor, chorar lágrimas imaginárias e etílicas de guaraná. E dormir soluçando baixinho esperando o despertador tocar pra espera recomeçar com o dia sem as flores à porta.

Café amargo, janela aberta, estou pronta – que venham as cartas em branco que ontem enviei pra mim.

CRiga.