segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Quarenta


Agulha travada
na sujeirinha do velho vinil –
uma nota só no solo triste de uma guitarra
e num grito mixado de solidão.

Meio emeéle
no vidro do perfume francês –
um cheiro só na fragrância de perder os rumos
insistindo em guardar lembranças.

Fotografia desbotada
no bolso do surrado jeans –
uma cor de pó gritando no assoalho comido,
um nome rangido, abafado.

Botão de rosa pendurado
no caule quebrado do abandono –
plantas revirando em nó no sedento jardim do quintal de pedra
invadindo a casa, um dia lar.

Morri, vivo,
procurando tolos atalhos
nas coisas que mofaram,
nos objetos sem objetivos.

Um dia desistiram de mim,
sem me avisar, não foi por mal –

sexta-feira eu programo
meu próximo inferno astral.

CRiga.


sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Já que estou aqui


Meu dedo nem um dia congela
no medo da pressão ao ar.

Nada me faz mais falta
do que sentir a falta de alguém.

Aproveita agora
amanhã teus planos serão tapetes.

Aproveita sempre.
Ontem os teus sonhos
foram só desenhos de computador.

A memória sempre falta, meu amor...
Vamos então trocar a roupa
e sair de noivos na noite nova?

No reduto reciclamos discursos
e só levamos um níquel de reconhecimento.

O capital marca com arte
a arte de esconder como capitalizar.

A morte é pena capital
e ela é tão mais fácil...

Afinal o que mais valia
senão viver enganando o não?

CRiga.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Conselho


No que a gente concebe com experiência
nasce o desafio com a cara do padrinho.

Vai na marcha que o asfalto permite.
Vai um pouco além no limite
que a curva sempre quer te dar.

CRiga. 


quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Entrevista com amigos


Alegria contida é experiência.
Medo é experiência virar vício.

Honra é poder escolher
não fazer mal a ninguém.

O tempo avermelha o seco
enquanto sangra meu nariz.

Não quero fazer o que me dá na telha
nem nas coxas ou no telhado bicolor.

Eu quero perguntar para o meu tio construtor
qual feitiço faz pra ficar igual.

Só com tempo.
Com tempo pesquisa...

Abandonei meus leões?
Parece que sim, eu sei.

Tenho medo de ser devorado
ou devorar as emoções?

Não sei como se chama isso.
Se de sorte loucura ou de cisma.

Já fiz gol contra que não valeu.
Já fiz gol de mão na prorrogação.

CRiga.


Tumulto


Meus olhos procuram você
e você me acusa
de não pagar o teu passado
com a moeda do assassinato
dos meus sonhos,

e meus olhos continuam
no tumulto
ainda procurando aquela você.

CRiga.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

A ditadura da desconstrução


A mesma velha receita do destruir –

discursos combinados
ataques arranjados
um vale-tudo que engole
o caolho que tem fome.

CRiga.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Tossindo sangue


Colecionava selos
de cartas não respondidas.

Na caixa do correio um ninho,
alimentava pássaros e ilusões.

Da janela,
as estrelas cadentes que contava
eram desejos que não valiam a pena.

Na calçada,
pra cada sorriso não devolvido
mais uma moeda na cartola do artista.

Em casa, em qualquer lado,
uma parede vazia.
Um Renoir havia debaixo da cama.

Doíam amores de ficção –
o que era verdade
virava invenção.

Viveu encostando as costas
no mofo do porão.

Morreu tossindo sangue
romancista de plantão.

CRiga.


sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Trama de vanguarda


Onde foi parar o nosso sonho
de sermos jornalistas musicais?

Nós somos é o que nos resta
depois da festa da juventude.

Nós somos musicais!

Onde foi que o trem da CPTM
mudou nosso destino?

“Espero mais amigos meus
nas linhas do diário,
na linha do trem que passa ainda estuprando
as frágeis casinhas de madeira
daquela favela de Carapicuíba.”

Mas nós também fomos de carro,
porque a vida tem é que ser simples.

No teclado de uma Hamilton.
No trompete daquele jazz.
Na voz de uma má dona.
Num pó de Quest.

Ou só
em Deadline.

Para Gustavo Negrón

CRiga.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Aparelho portátil (elegia ao excesso)


Então vamos conversar.

Escuta aqui um negócio.

O sucesso dá muito trabalho.

E eu trabalho.

Eu gosto do meu trabalho.

Eu tenho um sistema de guardar emoções!

Um filme de ação
em que o cara não pode se mover.

Eu tenho medo é de olhar para o relógio!

Eu quero estar acordado
quando o trem voador passar.

Minha licença poética
é morrer em mim.

Não te disseram que o rádio
ainda é o teu melhor amigo?

Você é aquilo
que você clica.

As ideias não são minhas,
a poesia talvez sim.

Eu tenho um segredo
que está na agulha da tecla play.

A liberdade de escolher o click
pra ir dormir.

Eu já tive medo de olhar pro relógio
até o dia em que morri!

Esperando sozinho na esquina
a relojoaria abrir na pandemia.

Bom conservar o medo
de olhar para o relógio.

Conservar-se
pra ficar bonito com a roupa da vitrine
ou caber bem no terno de madeira.

CRiga.

Ele não era um cara legal


Eu não vi as flores nascendo do asfalto
que é só onde sei procurar.

Na mesma galeria ninguém me disse nada
algo que eu pudesse guardar.

Eu não ouvi a música da moda
nem sou o idiota popular da roda.

Eu sou é o vidro que corta
em vez do falso brilhante.

CRiga.


quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Um protesto bem organizado


A gente tá é em guerra.
A terra é úmida, tem muito barro
mas a gente não é triste
assim, tão triste.

A gente insiste plantar árvore no asfalto.
A gente sabe que salto alto acaba no vão.

A gente também tem um coração
que bate fazendo rir o coveiro
mas que vive enganando o não.

A gente também ganha jogo
no fogo do bar
com o Rei e com a Az.

A gente tá é na paz!
A gente sabe fazer muito bem
o que a gente sempre faz.

CRiga.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O missivista


Meu antigo amor,
minha amiga, meu sonho que passou.
Recheado e enfeitado
com tudo o que aprendi.

Nada aprendi!

Minha doce impressão
de amor abandonado na esquina.
Por que só quando a gente envelhece
sonhos resolvem nos corroer
e os olhos aceitam o perdão?

Não me reencontrei.

Eu perdi a ideia de quem és.
Perdi rumos, ouvi rumores.
Um cabelo feito pra reconquistar
e uma juventude toda pela frente,
recomeçar.

Minha cara, meu segundo rosto.
Te escrevo o sangue inútil
deste cansado coração descompassado
sem mais letras.
Aguardo novas notícias tuas
num selo antigo carimbado de ilusão.

Triste coleção.

CRiga.


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Atalhos


Atrás do cuco esconderam a ponte.
No meio a casa bonita
tem carpete de pele malhada.

Noutra cozinha meninos dançam
e ainda compõem
a mais nova comunicação do mundo
que dura apenas um segundo.

Eu perdi o meu cavalo no escuro.
Mas eu consigo cavalgar outros sonhos
imaginado chegar a você.

CRiga.

A Danada da Jazz Rock


Noite de boas-vindas, sorridente
ao único inseto em volta da luz.

Longe. Mas eu consigo
chegar mais longe
por aqui por tão perto.

Coisas quando soam pra você igual poesia,
não espere o dia seguinte.

Desentupa os ouvidos do coração,
levante da cadeira
e cante uma canção.

CRiga.


Arrasta-se a vida

Eu vi as mãos desatarem.
Corações descompassarem.
Rimas desrimarem.

Malas intactas vazias no armário –
não vão levar as roupas embora
mas também não farão mais as viagens.

Eu vi amigos caminhando pelos cômodos
do grande apartamento,
como se nunca os quartos tivessem sido um dia
por eternas noites
um só.

É certo que uma hora até aquele amor cansa.
A dança nos terraços vira patética lembrança.
A vida vira o dia a dia do “bom dia” de um estranho
e nada mais.

CRiga.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Você precisa decorar aquela velha canção


Há um céu azul de nuvens desintegradas, morrendinho, o sol tá indo pro Japão. É quando a gente torce pro sol ficar mais um pouquinho e dar mais uns acordes no imaginário violão.

Mas vai ficando escuro, aos poucos, e a noite faceira dá aquele sorrisinho de tou chegando… É quando pinta a dúvida se você nasceu pro dia ou pra noite…

Mas logo vem o veneno: aquele ar difuso, aroma cortante na brisa fresca, musical, que nunca vai te agredir, nunca vai deixar de sorrir feito figura de mãe te sorrindo na lua. É quando a rua começa a te chamar, colega, amiga, amante! E você vai, sem pressa, sem compromisso, criança tateando aprendendo a andar, cair, levantar de novo, sorrir, cantar, amar por um segundo, chorar, tomar o sorvete e a água da madrugada - e finalmente se acalmar.

Algo parecido com sono vem te perturbar. E você reluta, nunca a tarde dessa noite vai te derrubar! E você levanta, dança feito louco na avenida vazia, até queria ouvir alguém buzinar. Amigos cantam uma velha canção, você não sabe a letra inteira, mas acompanha no refrão.

É quando você vê aos poucos a cor do asfalto mudar. Mais claro, algumas poças denunciam uma luz que não a dos postes amigos de apoio. E como fazia tempo  você não olhava mais ao céu, resolve conferir se a ampulheta ainda corre na lua e nas estrelas - mas um azulzinho marinho insiste em desbotar a noite.

O sol começa a gargalhar na sua cara, soberano, vencedor. Pra você acabou, meu chapa, o português já tá assando a primeira fornada de pão.

É quando você vira de lado, vê a motinha pipocando na esquina entregando os jornais com as notícias de ontem. Mas, como sempre nunca derrotado, você toma de volta do universo louco a ampulheta parada, sequestrada. E num gesto a la mais doce revolución, fincado último soldado da trincheira, vira de novo a areia correndo a vida tudo de volta:

Cadê o violão do novo luau? Cadê a letra daquela velha canção que você ainda precisa decorar?

CRiga.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Não mais a gente no sofá


Polir os discos que ficarão pra você.
É bom lavar de vez quando.
O tempo junta pó nos sulcos
risca solos de guitarra
apaga sorrisos de fotografia.

Ensinar a ligar a vitrola.
Não é legal colocar no automático.
A alma vive do preciso exercício
até a faixa certa
até o ponto G.

CRiga.


quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Garotos conectados


A modernidade sempre chega –
e sempre chega faltando com as mesmas coisas.

Porque apesar dos discursos
e conceitos modernos cheios de palavras em inglês,

Tudo gira em torno de uma inteligência
que os algoritmos nunca conseguirão depurar –

Emoção que desencanta e trava máquinas
e de fato resolve conflitos.

Quem quer crescer de verdade precisa segurar
o ritmo do encantamento com si mesmo,

Observar um pouco mais –
há um mundo inteiro de humanos de verdade
ficando para trás.

Eu não tenho in box
nem out box,

Eu tenho é uma linda caixa de problemas
que o teu chato inglês enlatado
nunca ousaria resolver.

CRiga.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Quando ela bate na bunda


Sentado ao lado do Panema
cinema
olhando só o verde me colorir.

Mas a água sobe, meu amigo,
com um singelo aviso pra você.

Época não é de abrigo,
sarta banda!

Agora o tempo anda
só de chuva de trabalhar!...

CRiga.


Aulas de violão


Está nas pontas dos meus dedos
o ritmo da música que resgatará
o fogo entre as tuas pernas.

Tocarei a nova que hoje eu aprendi.
Se errar de novo eu continuo, é a dica.
Vida é valsa que continua valsando
mesmo no pé trocado do salão.

E no grad finale,
as pontas dos meus dedos aprendizes
tocarão explosivas mais uma vez
as cordas no ponto quente certeiro –
a linda flor em sol maior! 

CRiga.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Setenta e três


Não consegue mais rugir. É uma leoa cansada.
Lutou muito na selva. Não tem cadeira de balanço.
Deixava a casa desarrumada.
Não me lembro de muito amor.

No começo corria corredores dos ônibus,
tudo limpo, trazia pra casa o pó do mundo.
Depois de novo subia andares,
guiando novos elevadores –
pra vida não tem mesmo guia de bolso.

Cansou. É uma leoa deitada sobre a relva.
Não tem cadeira de balanço mas tem um xale.
Não tinha tempo nem de se arrumar, um rouge.
Um dia eu acordei com ela me botando os sapatos,
peguei no sono antes da escola, ela não brigou.
Acho que isso é amor.

Para Ermina, minha mãe, que neste dia 10 de agosto completa seus 73 anos.

CRiga.


domingo, 9 de agosto de 2020

o dia dos pais


Quem me fez inseguro assim?
Eu preciso comprar uma guitarra
pro meu filho que toca violão.

Quem me tapou a visão?
Quem me deu a mão?
O jantar?

O violão quem me deu foi uma namorada.
Um dia um filho o quebrou na marra.

E o cara agora toca uma guitarra!

Eu quando quebrei uma coisa
só levei beliscão sim.

Quem me fez inseguro assim?

CRiga.


sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O fogo, a chama


O fogo é bom,
mantém quente a cama da gente.

Cabe a nós atiçar a brasa junto à lenha
que a gente ainda precisa caçar.
Cabe sim a gente ver também
que tem gente que nem fogo tem.

Ou tem fogo congelado pela fome.
Comida gelada na lata do lixo não machuca –
fere mais quem esbraveja tendo teto
e alimento sobre a mesa.

Ou tem fogo contido por percalços genéticos.
Um filho que não conversa, não caminha
apenas assiste – é só amor,
mas difícil é acender fogueira qualquer
até pra comemorar um São João.

Ou nem sabe que o fogo queima –
quem não tem ninguém,
que não ama nem a si.

O fogo é bom,
mantém quente a cama da gente.
Acendamos a lenha, cuidemos de nós,
pra podermos cuidar de alguém também.

CRiga.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Precisamos de novo nos apaixonar



Prefiro apaixonar-me novamente
pelo mesmo amado ser.

Preguiça enfrentar novos defeitos
ao relevar os que já conheço bem.

CRiga.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Futuro sarau


Há um radar no teu olhar
que rima com a poesia que circula
no ar de uma futura canção.

Eu te direi aqueles versos ritmados.
O relógio já parado da academia
irá querer congelar atmosferas.

Na nota cravada play atention!
vou segurar o ar na hora do grave
e apenas levantar a sobrancelha direita.

Daí que o verbo atropela!
É flor vermelha no casaco
e um pedido de perdão.

Daí que a súplica singela
é dor que caminha em cada tecla
e morre no último si.

Me dá aí de novo tua atenção!
Aquele radar que o olhar esconde:
me procura onde a alma capturada
longe, só voando consegue fugir!

CRiga.