quinta-feira, 30 de abril de 2020

Música francesa


A moça canta tão doce
palavras que não sei –
covardia é discutir amor
com uma cantora francesa.

Triunfo nem Eiffel,
nada rima sobre o papel que assumo.
Lábios em bico pronunciam erotismos.
Olhares furtivos me convidam à alcova.

A moça canta tão segura
tudo o que quero imaginar –
varia entre Notre-Dame e uma cruz
e os becos charmosos da Cidade Luz.

Sob o arco ou a torre
a rima pobre é barco ou porre.
Covardia é faltar elegância pra te cantar
e enrolar as línguas num idioma só.

CRiga.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Um outono sem conspirações


O outono e sua faca cortante
de ódio contido.

Frio seco feito lâmina na cara que encara
o caminho, um doce crime
licor de ácido na boca da noite.

Céu de estrelas atrás da fumaça,
a feia urbanidade vira poesia.

O dia uma boba fuga prum café
subversivo, na esquina do beco.
E com a ex-secretária do velho partido
tramar revoluções embaixo de cobertores.

O outono e sua face de sensações
contra o sentido da areia da ampulheta.

Violeta murcha, rosa que não a vermelha.
Dor no peito que não o sangue
da autoritária bala de borracha.
Estanque o desejo, guarde o frio seco
quase sangrento no fio da faca.

O outono e seu eterno vinho pela metade
escondido embaixo do casaco da cidade.
Já não somos mais tão jovens,
não temos mais conspirações.

O outono agora é só a impressão
da tola importância que demos às boinas,
cadernos nos bares
e poéticas revoluções.

O outono e sua faca cortante
de tantas desilusões.

CRiga.


terça-feira, 28 de abril de 2020

Singelo


Era neve a sua pele
e sangrou o dedo
brincando de rolimã.

Não chorou, me mostrou.
Toquei de levinho o dorso
trazendo sua palma pra cima
pra poder ver melhor.

Daí viramos o rosto para a rua que subia
e ainda era dia, vamos outra.

Subimos juntos de volta a ladeira.
Mãos dadas, ela descalça,
apenas de sorrisos.

CRiga.



segunda-feira, 27 de abril de 2020

Vinte e sete do quatro de dois mil e vinte


Há 45 anos eu nascia.
Há alguns anos
eu ainda me procuro.

A 45 do primeiro tempo.
A alguns minutos de sonhar
já meu tempo de prorrogação.

CRiga.


domingo, 26 de abril de 2020

O vírus do "lado certo"


Experimente
lhe faltar o ar.

Queria ver você perdoar
o governante que fosse.

O seu lado ladeia demais das coisas.

A gente também precisa respirar.

CRiga.


Áquila

Tudo corre.

Tudo morre.

Tudo socorre
o que a gente tem de troco.

A gente faz o possível
pra você notar.

Pra você me amar.

Pra você me deixar.

Correr.

Morrer.

Reescrever
a nova história que é possível.

CRiga.

Você não vai saber


Quando eu for embora
não precisa, não,
tocar aquela minha música.

Não precisa dizer o livro
nem o filme preferido.

Quem mais me magoou.

Quem fui
e para que.

Por que fui.
Por que nasci.

Por que insisti
fazer você saber.

CRiga.


Estava escrito


Passou lotado
bem na sua frente
um descrente.

Aquele da cara torta
que apontava sorrindo
para que lado era porta.

Uma adversária no jogo de truco
na calçada do colégio.

Um colega da contabilidade, de férias.
Nunca mais contabilizei tão bem
os dias faltando de trinta dias.

Era neve a sua pele, sangrou o dedo
brincando de rolimã.
Mãos dadas às minhas, subimos de volta a ladeira.

Ele até que te chamou praquela festa,
na periferia, e você foi!
Mas na hora não entendeu a letra.

Foi furando a fila com um disco novo.
Enfrentei só vaias e só você venceu.

Fui furando o disco de tanto ouvir
que finalmente eu descobri você.

CRiga.


sábado, 25 de abril de 2020

Carta não respondida


No meio do universo caiu a estrela,
esfarelou-se o brilho
feito lágrima geada.

Desde que o homem amou
pela primeira vez,
houve muita pedra no caminho
feito cristais deslizando
pelos rostos gelados da desilusão.

No meio da guerra a bandeira branca,
e um soldado raso chorou
saudades da namorada russa.

Desde que o homem foi à Lua
não pendurou de volta a estrela.
Houve muita chuva esfarelando desejos,
estilhaços, rostos cortados
pela lágrima da solidão.

A saudade é acenar solitário aos céus
num filme antigo em preto e branco.
Ver a Lua perder encanto
estrela despencando, triste cadente
sem brilho pra um desejo.

CRiga.


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Melancolia em quatro estações


Folhas caem corações partidos
no asfalto muito caro da cidade feia.
Houve outonos em que os poetas fugiram
poetar nas mesas de outros bares.

Há um cravo amassado no bolso do casaco.
Barba a fazer, inverno no passeio público.
Um olhar entre procurar rostos conhecidos
e amores imperfeitos.

A moça que colhia flores na praça
não acha mais graça na primavera.
Ontem ela chorou uma lágrima quase seca
saudades do primeiro namorado.

No último dia do verão, dizia uma canção,
“nunca me senti com tanto frio”.
Não houve nem amor pra subir a serra,
pombos decoram o mar impróprio para o banho.

Quem sabe os céus do outono.
Quem sabe o cobertor do inverno.
Quem sabe a leve chuva da primavera.
Quem sabe a breve folga no verão.

Haverá um dia
em que a melancolia
não falará mais tão alto assim.

CRiga.


quinta-feira, 23 de abril de 2020

Enquanto o mundo acaba


A gente nunca se prepara
para o imprevisível.

O carro não quebra, milagre!
O amigo opera, volta a visitar,
enquanto o vírus toma conta do mundo.

Você perde a aliança, tudo bem,
e eu descubro que te amo mais.

Um filho esmerilha no violão,
inclusive naquele que você já abandonou.

Você passa a sofrer de insônia
e com a importância que você acha que faz.

Você enfia a mão na terra,
você estende a mão pra ela
pedindo sempre aquele mesmo perdão.

CRiga.


quarta-feira, 22 de abril de 2020

Filosofia de crise


Parado no refúgio de sua verde propriedade
pensa em ângulos diferentes
para que possa viver melhor.

Mas gente que tem fome
não tem espaço nem ângulo
muito menos comida guardada
pra pensar melhor!

Tem às vezes uma cachaça
em vez daquela sua cerveja gelada,
e nem é pra tentar enxergar diferente –
é pra encarar mais uma vez a ferrada de sempre.

Cada um tem sua missão
e oportunidade de seguir.

Mas nem todos têm oportunidade,
então seguir é questão de instinto
de sobrevivência.

Missão é pele na pele e não falar besteira
a quem arranca o couro do próprio corpo
pra fazer parte da estatística positiva
que qualquer governo gosta de positivar.

CRiga.

Água mágoa (música triste)


É preciso lavar a alma
nem que seja a base
de um balde de lágrimas selvagens.

CRiga.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Quarentena carregando pedras


Eu preciso escrever.
Rever amigos.
Construir.
Relaxar.

Eu preciso de ombros mais leves,
do sol que incendeia o verde abaixo do horizonte possível.
O que eu preciso
é de mais possíveis por aqui.

Eu não preciso de tudo
e nem tudo é tão preciso.

Nem me deixam ficar triste!
O vírus é mais contagioso
que o sonho que a gente tem
de escrever poesia o dia inteiro.

CRiga.


Poema do círculo virtuoso


Quando tirei da frente
a pedra pesada preciosa
que eu insistia carregar,

o corpo ficou mais leve
e a mente de breve foi ao horizonte
ganhar espaço pra voar.

E então vi o azul juntar-se ao verde,
vi que à frente havia mais caminho
e mais pedras a lapidar.

Mas na rocha antiga que leva ao topo,
o sopro da brisa às vezes desequilibra.

Traz dos campos o cheiro de vida
que incita, reverbera nas pedras
a sensação da idade que se nega
a obedecer ao corpo, só ao espírito.

Seremos assim
eternamente jovens
até o fim.

Pagaremos enfim o preço
à vida que nos assalta
sempre de volta ao começo.

CRiga.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Poeta de escritório


Não tenho tempo, me escute:

Há um lírio escondido na gaveta
pode ser primavera ou psicodelia.

Meu amor, me ajude a contar histórias
que não relatórios de chatas reuniões...

CRiga.

domingo, 19 de abril de 2020

O outono


Brinca de calor e frio no fim da tarde
e te obriga a correr ao guarda-roupas
até aquela velha e surrada blusa de lã.

Parece que tudo fica mais puro!
Sabe aquela água quente do verão
que virou leite quando ficou parada?

Ele vem socando com a brisa direta no rosto
feito faca cortante que congela o nariz.

Dá até vontade de ter
às vezes que fosse
aquele fogão à lenha da revista.

É encontrar estrelas!
Quando o dia elegantemente vai se apagando
dando lugar à luz da noite azul marinho.

É o jogral jogando
brincando de louco
enquanto anuncia, rouco,
o “tôu chegando, se prepara’,

daqui a pouco ela vem
a mais severa das estações.

CRiga.


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Office boy


Quando entrecortava as ruas do centro da cidade
caminhava correndo ganhando o tempo
que mal sabia se lhe devolvia vida.

A energia permitia os excessos da juventude
além de viver pendurado nas madrugadas
nos ônibus lotados.

Deixou passar tantas tantas paixões bonitas
porque tinha olhos de ainda menino
que ousava pedir olhares às meninas.

Desiludiu-se com a menina da turma da tarde
que inventou um pai brabo
pra justificar a paixão pelo menino mais bonito.

Mas teve de presente uma linda namoradinha
todo dia,
e tinha amigos e um walkman.
Tinha dúvidas de existência
que não necessitavam de psicogentes profissionais.

Comprava discos de rock and roll
e presentes pra irmã mais velha
que não sabia o que era trabalhar.

Algumas vezes perdeu pros ladrõezinhos.
Mas continuava nas ruas gastando o tênis
e tudo o que a idade lhe permitia.

Deu um Sonho de Valsa ao avô
na cadeira de rodas, tomando sopa,
numa noite de sexta cujo sábado foi de luto.

Mas foi, ganhou o mundo e até um carro
enquanto perdia um grande amor.

Bateu o carro na entrada daquela velha ponte
onde um dia com viu com a tia
um corpo retirado do rio
depois da violência da periferia.

Mais tarde encalhou o Kadett na enchente da rodovia
porque era cego de paixão.
O pai naquele Natal sabia
que nada era por mal.

Entre Anas e Marias mal resolvidas
foi bebendo uma cerveja e preenchendo seus cadernos.

Entre tantas possibilidades
foi parar na ilha.
Entrecortar caminhos entre um mar e um lar...

Quedê o garoto que pulava poças da chuva na rua?
Quedê os discos comprados vendidos
por causa da falsa sensação de vida moderna?

Que dê algo mais de positivo.
Que dê ainda sentido à correria agora calma
com a alma daquele menino.

CRiga.

Pólvora e hortelã


A veia nas ruas do Rio
urra sangue de Sampa
passa frio nas pontes do sul
e é explorada virginal
nas baías do nordeste.

Homens têm poder,
mas é só um deus que tem a força.
Com sua paciência onipresente
ele só assiste a tríades fatais.

Um caixeiro viajante desvia das balas
e leva a hortelã pras crianças da favela.
O Brasil ainda vive
o sorveteiro ainda vende o sorvete
e o traficante ainda vende a droga.

A esperança está no caixeiro que volta
destas esquinas muito loucas,
trazendo a bala de hortelã
com o doce sabor de redenção.

CRiga.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

Notícias de Hiroshima


Sobre a tranquila cidade vizinha
houve a brisa louca e cinza
trazendo notícias e encomendas.

Talvez uma boneca nova
chegando de presente
à menina que já cresceu.

Talvez a maletinha de material escolar
que o garotinho esperou
lendo uma historinha de samurai.

Talvez o relógio da moda, o vestido
talvez a cama e até um gemido de prazer.

Ou talvez apenas o noivo distante
finalmente na visita prometida,
pousando leve sobre a pele da moça
distraída na lavoura de arroz.

CRiga.


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Trailler da paz das almas


Um caminhão passava lotado na rodovia.

E ele câmera lenta. Trôpego.
Observava, ouvia o ronco louco.
Um flash da vida inteira nos olhos sem cor.
Muito pouco a dizer.
Muita vontade de avançar a linha do acostamento.

Na pista tapete de rodovia interiorana,
pouco espaço caso o acaso causasse tropeços.

Não há acasos, caso você não saiba:
na casa do desespero dos fracos,
uma mulher fumava em paz o seu cigarro
entre os braços de um amante mais amoroso.

Era um caminhão lotado de pesadelos.
Os faróis de cor amarela,
para-choque sem dor,
um ronco feroz de animal justiceiro.

E o trôpego avançou a linha do acostamento.

Desde então, justiça ou loucura,
havia mais ternura no asfalto vermelho,
uma abreviação de sofrimentos:

uma mulher que agora amava sem culpa
nos braços do amante agora novo amor,

e um buchicho no boteco da vila
com a conta ainda aberta
de um cliente que nunca mais voltou.

CRiga.


terça-feira, 14 de abril de 2020

Mágoa

Pedra crack no coração,
bad vicious... 
Envelhece, são rugas rusgas repetidas
amarga bílis
ácido na bem-vinda santa úlcera.

Um parto de dor feito pedra no rim.
Ela vem e petrifica tudo
com seu manto de morte abraçada
amarrada.

É feito macumba
tão boca de sapo
quanto boca do lixo.

Uma pedra sempre ponto de partida,
sad precious...
No sapato no caminho na cuca
não tem como britá-la jogá-la ignorá-la.

Nem vozes da brisa soprando “esquece”.
Ela é a nova sensação pós-verão
neste agora pedra coração.

É feito o amor
tão marcante
que a gente não consegue esquecer.

CRiga.

sábado, 11 de abril de 2020

A sua crença


As boas pessoas
irão sim
se salvar.

Independentemente
do que depende
pra você.

As boas pessoas
já estão a salvas
e salvando outras.

Inacreditavelmente
nem depende tanto
do que você crê
ou quer.

CRiga.


sexta-feira, 10 de abril de 2020

Cuidado com a espreita


O ritmo das coisas às vezes
é lento, lento...

E que bom!

Na vida o tempo é soberano
e a pressa só interessa
à senhora que veste preto.

CRiga.