segunda-feira, 20 de junho de 2016

Um dia pro resto da vida


Tão insistentemente Vera batia na porta, como quem não tivesse nada mais no mundo a não ser o ser humano do outro lado da madeira velha. Aquela porta acinzentada que dava direto naquela avenida do centro da cidade. Às vezes incomodava ter que vencer os mendigos e putas no meio do caminho na calçada, mas vencia porque amava tanto o ser do outro lado da porta de madeira velha, insegura. Qualquer um, com um mínimo de esforço, podia arrombar a fechadura e levar o submundo pra dentro daquele lugar sempre sujo, mini sala-cozinha-banheiro-quarto, cinzeiro sempre transbordando, garrafas vazias, baratas, calor, mofo, cama desarrumada, gritos na madrugada, abrigo, prazer.

Era aquilo que Vera queria naquela noite, trazia consigo também meia garrafa do conhaque barato. Só aquilo. Batia, batia na porta feia como que suplicasse socorro ao inferno. Chovia. Vera chorava, mal sabia por que.Tanto que batia a mão sangrava, mas não deu importância à dor – só queria ver abrir-se a porta, abraçar aquele ser inatingível que sempre amara mas nunca conseguira perceber assim. Quando teve certeza que amava desesperou-se, correu pela cidade, na chuva, uma garrafa ao colo e um coração que doía uma dor que nunca sentira. Enfrentou putas e os mendigos no meio do caminho, e lá estava ela naquela porta fria. Batia, batia, chorava, sangrava. Dormiu na escada de dois degraus, a porta nunca se abriu.

Dia seguinte o agente da imobiliária com sua placa de “Aluga-se” teve um trabalho a mais: convencer Vera que ali não morava mais ninguém. Era já cedo, e Vera entendeu que era muito tarde, não tinha mais por que voltar a lugar qualquer. Chorou mais uma vez, soluçou sentada. Vera então entendeu o que era arrepender-se.

Vera envelheceu como a puta mais famosa e mais desejada do centro da cidade. Morreu sozinha agarrada a uma placa velha de “Aluga-se”, estirada numa escada de dois degraus, depois de, como dez anos antes, passar a noite batendo naquela porta.

No óbito, causa mortis: solidão.

CRiga.



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