O barulho
daquele samba novo no rádio muito alto era como marretadas em seu espírito
cansado, enquanto bundas pagodeavam no chão de cimento batido feito ritual
prenunciando sua morte. Bebia sua cachaça no balcão do boteco de esquina da
favela, sozinho, enquanto pensava se teria feito o correto ao cimentar a amante
morta debaixo do tanque. Dariam falta dela, e uma certa neurose o avisava que iriam
procurá-lo. Ele via, ou pensava ver, vários olhos o vigiando na vizinhança enquanto
entrava na casa daquela negra linda que escolhera o par errado.
Conheceram-se
no ponto de ônibus, de manhã. Conversavam muito no caminho ao trabalho – ele,
pedreiro, branco de olhos azuis; ela, linda negra, recepcionista de um
consultório de dentista. Um dia, um convite, “passa em casa na volta”. Como
resistir à negra mais linda e gostosa do morro? Assim começou.
O caso é que
um dia, meses depois, a nega enlouquecera. Queria que queria aqueles olhos
azuis só pra ela, aquela pele polaca agarrada à dela, aquela pele de veludo
quente e branca diferente dos negrinhos do morro. A nega queria que ele largasse
a esposa, filhos e tudo mais, e assumisse logo aquele romance louco, ardente. E
apesar da paixão vermelha, queria filhos também. Aquilo não era mais como no
começo, apenas um caso, sexo, saídas, segredo – agora, depois de seis meses, tudo
ficara sério demais pra ela.
E apesar de
adúltero, ele era trabalhador honesto, não deixava faltar nada em casa e amava
sua mulher mesmo na cama fria em que fizera algumas daquelas seis bocas a mais
que comiam no barraco. Ele sabia que o chefão do tráfico no morro era o pai de
pelo menos três de seus rebentos, e perdoou, o que fazer? Adotou as crianças
como suas. Sua mulher um dia adúltera ganhou e ganhou presentes enquanto era
aquela morena gostosa sem o corpo castigado de seis filhos. Mas o traficante
cansou um dia, deu uma grana e tudo certo. O barraco tinha Cartoon pra criançada, tevê de plasma e computador de internet
banda larga.
Um
problema: a negra linda, a amante, era nada mais nada menos que propriedade justamente
daquele mesmo traficante. Ou seja, ele estava condenado à morte por todos os
lados, como escapar? Cedo ou tarde, polícia ou bandidagem descobriria a
história daquele fim de tarde no barraco: ela exigindo ele só pra si, mais uma
faca na mão ameaçando matá-lo e matar-se em seguida, quando ele preferiu
abreviar as coisas: tomou a faca da mão no vacilo da nega, cortou o pescoço
macio dela feito faca quente na manteiga, e cimentou o corpo na cozinha,
embaixo do tanque adaptado do barraco. Um problema a menos pra se preocupar.
Depois,
saiu vagando feito zumbi, cabeça pesada. Entrou no terreiro do samba agudo, o
diabo gargalhava no canto do balcão. Bebia sua cachaça, mas não alcançava o
arrependimento. Havia um certo medo, mais a preocupação de ser levado preso – ou
ser morto, muito melhor. O receio maior era apenas de deixar a família sem
sustento num mundo de incertezas e diabos gargalhando dos filhos e da mulher a
cada esquina da favela. Pagou a conta, trombou com as bundas pagodeando no meio
do boteco, e decidiu encarar o pesadelo.
Pelos becos
rumo à sua casa, entregava ao acaso espremido entre barracos no meio caminho aquela
sua vida mais ou menos, agora marcada por sangue e maldição. Já sem qualquer
perspectiva de vida antes, agora a morte era apenas uma questão de tempo. Um
cheiro de enxofre o seguia.
Foi quando
viu a espera cair no beco mais sujo da favela: o chefão do tráfico e seu grupo
vinham sentido contrário, apressados, de encontro, nervosos, anjos do
apocalipse. Ele passou a desejar apenas uma morte sem os sofrimentos que os
traficantes sujeitavam alguns inimigos, por vingança. O medo subiu pelas
costas, o diabo voltou a gargalhar feroz, agora correndo em suas veias até sua
cabeça panela de pressão. Mas ele não reagiu, apenas encarou o demônio. E aceitou.
O chefão
meteu a mão no peito dele, com uma arma na outra mão:
–
Tava na tua captura, alemão. Ouve bem...
A história
foi a seguinte: o chefão estava fugindo do morro porque a polícia tinha
recebido informação anônima, e ele desconfiava justamente da nega. Um dia antes
ela queria se separar do traficante, confessando que tinha um amante e queria
ficar com seu amor. Mas como ela sabia demais dos esquemas de crime no morro, o
chefão não deu chance: foi lá, na surdina, e incendiou o barraco dela.
–
Matei a nega, tava dormindo com certeza – confessou o traficante.
Meteu a mão
no bolso e tirou um bolo de notas graúdas.
–
Toma, isso é pra você. Se correr, tem mais lá no meu barraco, é tudo teu.
O
traficante sabia que ele aceitara criar filhos que não eram seus, frutos de
adultério. Dali desceu pra fora do morro, em fuga.
Dia
seguinte o jornal daria a morte do principal traficante do Rio de Janeiro.
Fim de uma
história. Recomeço de uma outra.
***
Numa manhã ainda
madrugada, naquele bairro sem favelas, ele fazia a barba pra ir à labuta diária
numa obra no centro do Rio. A esposa entrou, olhou pelo espelho ainda embaçado
pelo vapor do banho. Os olhares se encontraram, as bocas sorriram uma
cumplicidade etérea.
Na cozinha
um café preto quentinho, pães e aquela margarina do comercial. O rádio baixinho
tocava um sambinha antigo – “Levanta,
sacode a poeira e dá a volta por cima...” – dando um ar de redenção junto à tinta branca ainda cheirando
fresca. Dançaram agarrados, lentos, silenciosos. O sol nascia. Os filhos dando
risadinha da sala, enquanto trocavam de roupa pra ir à escola. O sambinha
cessou, veio o locutor dando bom dia.
Ele beijou
a esposa, e beijou cada um dos seis filhos. Arrumou a marmita na mochila, abriu
a porta, o sol invadiu a mesa junto do cantar de um pássaro qualquer.
Atravessou o quintal de flores, abriu o portão de madeira que rangia uma
vidinha tão bonita. Deus sorria na caixa de correios. Saiu pra trabalhar.
Aureliano Francisco
*3º lugar no Prêmio Barueri de Literatura 2016
CRiga.
*3º lugar no Prêmio Barueri de Literatura 2016
CRiga.
Surpreendente...Que conto !!!! Adorei o começo meio e o fim é muitooooo bom!Você é magico com as palavras.......
ResponderExcluirObrigado, Nê! Super beijo!
ResponderExcluirAdorei todo o enredo! Final surpreendente! Parabéns!!!!
ResponderExcluirValeu, Lu! Beijão!
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